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Piratas dos tempos modernos

Ladrões do mar desafiam autoridades policiais, armadores e turistas

MILU LEITE


Arte PB

Esqueça o capitão Gancho, o inseguro pirata criado pelo escritor James Matthew Barrie. Esqueça também Peter Pan, seu antagonista sonhador. Hoje em dia, os casos de pirataria marítima estão muito longe do romantismo literário dos primórdios do século 20, quando ainda era possível depositar na figura de um herói menino as esperanças de justiça do mundo.

Munidos de GPS e fortemente armados, os piratas modernos miram o lucro imediato, tal qual antigamente, mas não se amedrontam com facilidade; pelo contrário, causam medo e ansiedade em suas vítimas, que nunca sabem como a história vai acabar. Tristemente, muitas vezes ela não termina bem.

A pirataria existe desde que o homem começou a navegar. É um ato de roubo como tantos outros que ocorrem em terra. Os ladrões chegam de surpresa, armados, e querem saber onde está o dinheiro. Ou buscam outros valores – e estes podem ser as próprias embarcações, no caso dos ataques marítimos feitos por grupos organizados. Em suma, a pirataria é um caso de polícia, mas por envolver nações distintas, o combate a ela é feito em colaboração entre os países, com órgãos de informação agindo, muitas vezes, de maneira conjunta.

Contudo, nem ações planejadas de enfrentamento parecem surtir o efeito desejado. As estatísticas indicam um crescimento dessa modalidade de roubo em alguns pontos do planeta, notadamente em águas do oceano Índico e do Atlântico. Conforme dados da Organização Marítima Internacional (IMO, na sigla em inglês), em 2007 (considerado um ano crítico, com crescimento de 10%) foram contabilizados 263 ataques piratas no mundo. A situação se agravou em 2008, com 135 ataques somente na porção leste da África e 44 barcos capturados. Calcula-se que nos últimos dez anos cerca de 4 mil pessoas foram feitas reféns e mais de 150 delas tenham morrido em decorrência dos ataques.

Esses dados englobam todo tipo de pirataria marítima ou fluvial. Isso quer dizer que são enquadrados como piratas tanto os miseráveis que roubam para obter algum dinheiro ou equipamentos quanto os grupos organizados, que planejam suas ações e sequestram embarcações para exigir o pagamento de resgate.

Delito internacional

No âmbito do direito internacional, “pirataria é o apoderamento ilícito de embarcação, isto é, toda e qualquer ação violenta praticada em alto-mar por um navio contra outro, com o intuito de auferir lucro”, explica a professora de direito internacional da Faculdade Estácio de Sá em Florianópolis, Mônica Moraes Godoy, mestre em direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Para que se configure a ação pirata, complementa, são necessários os seguintes elementos: atos de violência ou de depredação; ausência de autorização da parte de um Estado para a perpetração desses atos; espírito de lucro; prática dos atos de violência em lugar que escapa à jurisdição exclusiva de um Estado determinado (mar internacional); atos que, por sua natureza, ponham em perigo a segurança e a circulação nos lugares que escapam à jurisdição exclusiva de um Estado. “É um delito internacional, dado que atinge a livre comunicação entre os povos e a seguridade da navegação”, explica Mônica.

A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, realizada em 1982 em Montego Bay, codificou as leis específicas aplicadas aos atos de pirataria marítima no mundo. A IMO, organização vinculada à ONU e sediada em Londres, tem como objetivo centralizar informações e pautar ações conjuntas dos países membros (entre eles, o Brasil) de combate à pirataria. De certo modo, ela enfoca também os interesses de armadores, uma das pontas da intrincada rede de interesses envolvidos na solução do problema.

Preocupados com os crescentes prejuízos, armadores de vários países, sobretudo europeus, passaram a adotar medidas de segurança nos navios que precisam navegar pelas áreas de maior risco. Quais são elas? Na costa africana, as águas do Índico, perto da Somália; a área do golfo de Áden, o Canal de Suez, via mar Vermelho; a costa da Nigéria, no oceano Atlântico. Na América do Sul e na América Central, os pontos mais temidos estão no Peru, na Venezuela, no Brasil (nas proximidades da ilha de Marajó e nas baías de Santos e da Guanabara) e no mar do Caribe. Calcula-se que cerca de 22 mil embarcações mercantes cruzam anualmente o Canal de Suez, representando 8% do comércio mundial. Globalmente, os prejuízos causados pela pirataria são estimados em US$ 16 bilhões.

A cifra astronômica justifica facilmente o aumento dos custos da navegação. Para fugir aos ataques, a marinha mercante (o principal foco dos piratas) arca com seguros mais caros, gastos com envio de embarcações para assegurar a proteção ao tráfego, com o maior consumo de combustível (os barcos passam pelas áreas de perigo em velocidade máxima), com o desvio de rotas habituais (mais milhas a percorrer) e com o esgotamento da frota (em decorrência da sobrecarga).

Mas se, por um lado, os piratas despertam a ira dos armadores, por outro amedrontam os tripulantes das embarcações. Afinal de contas, são eles que sofrem o desgaste de ter de lidar com a iminência de um ataque que pode, na melhor das hipóteses, terminar apenas com o roubo do cofre. Ocorre, porém, que o número de ataques violentos é transmitido em boletins enviados a todo momento aos capitães, gerando insegurança na tripulação. Obviamente, é melhor estar informado do que não estar, mas o fato é que, ao ser surpreendidos por ladrões, os marujos sempre esperam pelo pior.

“Em abril de 2006, quando ainda era aluno e navegava pelo golfo de Áden no navio Sierra Nava, da empresa Marítima del Norte, passei por uma situação engraçada”, conta o oficial espanhol Genaro Cao Feijoo. “Era hora da comida, quando o segundo oficial comunicou que duas embarcações aproximavam-se a grande velocidade. A tripulação saiu prontamente para dar cobertura, mas observamos que eles queriam apenas comerciar ou, antes, pedir combustível. Não fizemos caso, e eles logo partiram. Suponho que se fossem piratas teriam mostrado armas e subido a bordo.” Ainda que relatado em tom de anedota, o episódio é um bom exemplo do temor vivido pelos marinheiros em alto-mar.

O fato é que os casos se acumulam e raras vezes terminam da maneira descrita por Cao Feijoo. Os piratas da Somália, por exemplo, tornaram-se extremamente temidos. Conhecidos desde a década de 1990, quando começaram a agir em meio ao caos de uma recém-terminada guerra civil, esses piratas cresceram em número e agilidade. Em 2008, tinham sob a mira de armas 200 tripulantes de nacionalidades diversas. As centenas de ataques empreendidos nas proximidades do golfo de Áden em 2007 e 2008 os colocam também entre os mais organizados. A explicação é simples: quanto mais ganham com as ações, mais investem em armamentos e equipamentos. A notícia ruim é que, na maioria das vezes, os armadores acabam cedendo. Num caso que ficou famoso pela demora nas negociações, foi pago depois de três meses o resgate de US$ 1,5 milhão pelo navio mercante dinamarquês Danica White, capturado na costa da Somália.

Cifras milionárias

A motivação para os ataques nessa região tem origem sociopolítica. Analistas suspeitam que os piratas sejam “financiados” por grupos detratores do atual governo somali. A informação, embora não oficial, é velha conhecida dos marinheiros. No Chifre da África – como é conhecido o nordeste africano, hoje a zona mais perigosa – está sendo implementada a Operação Atalanta, aliança entre diferentes países para impedir a pirataria e garantir uma linha de navegação segura às embarcações europeias. “Nessa área, o problema vem do próprio Estado. Um governo títere e sem poder, junto com a corrupção e a miséria, faz da pirataria um negócio lucrativo”, opina Cao Feijoo. Ele relembra, por exemplo, o caso Alacrana, em que barcos de bandeira espanhola carregados de atum foram aprisionados a 400 milhas da costa da Somália, em 2009. As negociações para pagamento de resgate chegaram ao fim com uma alta cifra, € 5 milhões (informação nunca confirmada pelo governo espanhol).

A costa da Nigéria também tem sido palco de investidas terríveis. Em 2009, foram contabilizados 25 ataques (13 deles de Lagos), a grande maioria levada a cabo por ladrões munidos de armas de calibre pesado. Um deles, por exemplo, segundo boletim divulgado aos navegadores, ocorreu contra um cargueiro de petróleo. Os piratas roubaram o cofre e fugiram rapidamente quando notaram que o oficial tinha acionado o aviso de socorro. Antes, porém, o mataram.

Apesar de preferir os navios de carga, os ladrões não fazem vista grossa às embarcações turísticas, ainda mais se os turistas forem endinheirados. Foi amplamente divulgado pela imprensa, por exemplo, o ataque a um luxuoso iate que conduzia 150 turistas americanos às ilhas Seychelles, no oceano Índico, em 2005. Os piratas chegaram munidos de fuzis e granadas e levaram o que puderam. Em 2008, no entanto, o objetivo dos 12 ladrões que subiram a bordo de um veleiro de luxo, surpreendendo 30 marinheiros, era outro. Os piratas não estavam interessados nos 64 turistas que embarcariam quando o veleiro aportasse, e por isso tomaram o barco quando ainda estava fundeado nas águas do golfo de Áden. Anunciaram o sequestro, fizeram toda a tripulação refém e exigiram um resgate de US$ 2 milhões, que foi pago pelo armador.

A violência, é claro, não é ingrediente exclusivo de ações de organizações mafiosas. Os ataques menores, feitos por bandos isolados que têm em mira toda e qualquer coisa que possa ser trocada por dinheiro ou que resulte em melhorias em seus próprios barcos, podem resultar em desgraça. Despreparados, acuados, tensos, os piratas pés de chinelo não pensam duas vezes antes de atirar, quando há risco de serem capturados. Isso sem contar aqueles que agridem por prazer, fato bastante comum em roubos de qualquer espécie, sejam em terra ou no mar.

Baía de Santos

No Brasil, os crimes de pirataria marítima são menos frequentes e os piratas menos audaciosos. A baía de Santos é considerada a área de maior perigo, de acordo com os boletins transmitidos aos navegadores europeus. Entre 2007 e 2008, as investidas ocorreram contra navios fundeados. Foram 18 no total, o que levou a reativar o esquema de policiamento preventivo, feito com duas lanchas blindadas e metralhadoras.

A ilha de Marajó, por sua vez, ganha má fama a cada dia que passa. O capitão José Luiz Lima nunca teve de enfrentar piratas em seus 25 anos de navegação, mas mostrou-se preocupado com a viagem que fará em breve à ilha. “Dizem que é a região mais perigosa hoje em dia, mas só indo para ver”, afirma. Os jornais não o desmentem. Notícia publicada no “Diário do Pará” online no dia 29 de março informava que integrantes de duas quadrilhas de piratas fluviais tinham sido presos pela Divisão de Repressão ao Crime Organizado (DRCO) da Polícia Civil do Pará, e o produto do roubo recuperado. O que eles haviam levado? Cem cestas de alimentos, tambores com combustível, um gerador de energia, 120 quilos de carne e três motores.

No final do ano passado, contudo, a história não terminou tão bem, quando cerca de 40 piratas fortemente armados subiram a bordo de duas embarcações da transportadora Reicon e fizeram toda a tripulação refém. Depois de ameaçar as pessoas por cerca de 11 horas, os ladrões fugiram com toda a carga. Esse foi o quinto assalto sofrido pela empresa no período de um ano na região, mas não foi o ataque mais violento. Em um deles, os piratas mataram o comandante.

Conter a escalada da pirataria, como se vê, exige investimento dos governos em policiamento preventivo. Na falta dele, os armadores recorrem a alternativas variadas. “Na Espanha se fixou uma lei que permite a contratação de segurança privada e o aumento do calibre do armamento destinado a repelir os ataques”, conta Cao Feijoo.

No Brasil, os navegadores que não podem pagar por segurança têm de se contentar com o que o governo federal põe à disposição da guarda: 20 lanchas de 45 pés, blindadas e aparelhadas com metralhadoras 7.62, segundo matéria publicada no site “Defesa Brasil.com” em outubro de 2009. Desnecessário dizer que para coibir o crime em 8 mil quilômetros de costa marítima e 40 mil de vias fluviais, o contingente é ridículo. “Creio que a frota de nossa marinha ainda é muito pequena para fazer frente ao desafio de fiscalizar toda a linha costeira. Isso sem falar nas 200 milhas que correspondiam a nossas águas, que, depois da extensão autorizada pela Comissão de Limites da Plataforma Continental, têm agora mais de 700 mil quilômetros quadrados somados à sua área inicial”, diz a professora Mônica Godoy.

A região referida foi batizada de Amazônia Azul, devido a sua biodiversidade. A área fica no oceano Atlântico e tem importância estratégica para a economia brasileira. “Garantir a soberania de exploração depende de fiscalização eficiente, um grande desafio para a Marinha”, conclui Mônica.

No âmbito mundial, a identificação e punição dos piratas é outra tarefa a ser enfrentada pelos governos. Em primeiro lugar, porque o navio pirata está muitas vezes escondido sob uma falsa bandeira, e isso, por si só, já pode gerar um conflito internacional. “Eles geralmente não estão submetidos a nenhum Estado. Como forma de disfarce usam bandeiras e inscrições falsas ou compram bandeiras de países conhecidos por essa prática, como a Líbia, cuja má-fé, entretanto, não foi provada”, ressalta Mônica.

No quesito punição, a questão não se simplifica. A Convenção de Montego Bay diz em seu artigo 100 que todos os Estados devem cooperar na repressão à pirataria em alto-mar ou em outro lugar que não se encontre na área de jurisdição de algum Estado, também chamada de mar territorial, correspondente a 12 milhas náuticas. “Todo Estado pode apresar, em alto-mar ou em qualquer outro lugar não submetido à jurisdição de nenhum Estado, um navio ou aeronave pirata, ou aqueles capturados por atos de pirataria ou em poder dos piratas, e prender as pessoas e apreender os bens que se encontrem a bordo”, informa a professora de direito internacional. Aos tribunais do Estado que efetuou o apresamento cabe decidir as penas que serão aplicadas e as medidas a tomar no que se refere à embarcação.

No Brasil, com o objetivo de complementar a proteção ao mar, foi criada uma comissão composta por representantes da Marinha e dos ministérios da Justiça, Relações Exteriores, Transportes e Fazenda. Essa comissão deve elaborar planos e implantá-los visando a proteção em relação a atos ilícitos nos portos, entre eles a pirataria, e sua repressão. Enquanto isso não acontece, são aplicados aos piratas os dispositivos do Código Penal e da Convenção de Montego Bay.

Sem fronteiras, julgados ou não, os piratas de hoje são um retrato do desequilíbrio social planetário. Há, ironicamente, classes sociais também no mundo da pirataria. De sardinhas a tubarões, as motivações de ataque variam. Há os que roubam por necessidade, os que o fazem para enriquecer e até mesmo os que investem pesado na pirataria para derrubar governos, bons ou maus.

E há, em todos os casos, os marinheiros. Pessoas que mantêm uma secreta relação com o mar e que, talvez por isso, ainda enfrentam corajosamente a vida num barco.

 

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