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Uma revolução cinquentenária

Há 50 anos nasceu a pílula que mudou a vida das mulheres

LÚCIA NASCIMENTO


Foto: Júlia Toro/Célia Thomé

Cerca de 16 milhões de mulheres, nas Américas Central e do Sul, tomam pílula anticoncepcional diariamente para evitar uma gravidez indesejada. No mundo, são 80 milhões. Esses números, entretanto, já foram muito menores. Em 1960, quando as primeiras cartelas chegaram às farmácias dos Estados Unidos, país onde foram liberadas inicialmente, apenas mulheres que apresentassem receita médica e certidão de casamento podiam levar uma delas para casa.

Assim, por algum tempo, poucas tiveram acesso ao método. Contudo, tal revolução na maneira de encarar a condição feminina não podia ficar presa a amarras e, em poucos meses, mulheres de todas as idades e condições sociais, casadas e solteiras, puderam compartilhar da novidade. As pessoas que aderiram ao método pularam de 400 mil, no primeiro ano, para mais de 4 milhões em 1965.

“Sem dúvida, o contraceptivo oral foi um dos principais atuantes da revolução sexual ocorrida naquela década. Pela primeira vez na história a fertilidade pôde ser controlada independentemente da vontade do homem”, lembra Antônio Aleixo Neto, professor aposentado do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Desde o início, o medicamento foi responsável não só por essa, mas por uma série de revoluções.

Foi o primeiro remédio feito para ser tomado diariamente por pessoas que não tinham nenhum problema de saúde. E, em sua origem, possuía uma semente de contradição. Um de seus criadores, o cientista americano John Rock, era católico conservador. “Ele buscava um tratamento para estimular a fertilidade”, lembra o ginecologista Vicente Renato Bagnoli, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). No meio do caminho, porém, em trabalhos realizados junto com o biólogo Gregory Pincus, também dos Estados Unidos, encontrou o oposto: um comprimido que provoca a infertilidade temporária.

Persistência

A história, no entanto, não seria a mesma se não fosse pela participação de uma mulher. As pesquisas realizadas pelos dois cientistas só saíram do papel graças à insistência de Margaret Sanger, uma enfermeira e feminista americana. Desde o início dos anos 1900 ela lutou contra leis que restringiam direitos e se empenhou na busca de um método barato e simples que pudesse impedir a gravidez quando ela não fosse desejada. O movimento que defendeu com todas as forças obteve os primeiros avanços quando o funcionamento do ciclo ovariano, que controla a ovulação, começou a ser descoberto. A largada foi dada com testes feitos em animais e, a partir daí, foi questão de tempo – e de persistência.

“Em 1921, o pesquisador austríaco [Ludwig] Haberlandt conseguiu induzir a infertilidade temporária em coelhas ao implantar nelas os ovários retirados de outras fêmeas da mesma espécie”, conta o ginecologista Alexandre Pupo Nogueira, do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Esse experimento permitiu que os pesquisadores da época chegassem a uma conclusão importante, ou seja, que a chave da contracepção poderia estar em secreções produzidas mensalmente pelos ovários. Essa relação está mais do que clara desde a década de 1930, quando a estrutura do estrogênio e da progesterona (as tais secreções) foi identificada, permitindo que esses hormônios fossem reproduzidos sinteticamente.

Vinte anos se passaram e diversos estudos foram feitos, até que, no início da década de 1950, já havia as condições necessárias para a criação da pílula anticoncepcional. Margaret Sanger procurou Gregory Pincus e pediu que ele investigasse as possibilidades de produzir um contraceptivo efetivo e seguro. O biólogo aceitou o pedido e, em 1955, conseguiu evitar a ovulação em mulheres que tomaram doses diárias de progesterona sintética. Esse foi o ponto de partida para que melhores combinações fossem descobertas, para garantir a contracepção por via oral. Por fim, no dia 11 de maio de 1960, a primeira pílula anticoncepcional foi aprovada pela Food and Drug Administration (FDA), órgão do governo americano responsável pela segurança de medicamentos.

Mudanças

No Brasil, o anticoncepcional começou a ser vendido em 1961, com a mesma aceitação obtida entre as americanas, mas com uma diferença: “Aqui, assim como em outros países do então Terceiro Mundo, a divulgação dos métodos contraceptivos modernos, entre eles a pílula, fez parte de políticas internacionais voltadas para a redução da população”, afirma a historiadora Joana Maria Pedro, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em seu artigo “A Experiência com Contraceptivos no Brasil: Uma Questão de Geração”.

De acordo com a pesquisadora, “a situação brasileira foi muito diferente da que ocorreu com mulheres de países europeus. Assim, enquanto em lugares como a França o medicamento somente foi liberado para consumo em 1967, no Brasil o anticoncepcional foi comercializado sem entraves desde o início da década de 1960”, atingindo seus objetivos de controle da natalidade, como provam os censos demográficos feitos há décadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 1960, as brasileiras tinham, em média, 6,3 filhos. Na década seguinte, o número médio caiu para 5,8 e, em 2007, foi reduzido a 1,95.

O aumento nas taxas de contracepção pode não ter sido o único motivo para a redução do tamanho das famílias brasileiras, mas foi fundamental. Segundo o Guttmacher Institute, organização americana de pesquisa em saúde reprodutiva, o uso de anticoncepcional nas Américas Central e do Sul passou de 15% para mais de 70% entre 1970 e 2000. “As brasileiras que pertenciam às camadas médias aderiram ao consumo da pílula imediatamente, representando um mercado em crescimento acelerado. Em 1970, 6,8 milhões de cartelas anticoncepcionais foram vendidas e, em 1980, o número subiu para 40,9 milhões”, diz Joana.

Contribuíram para isso as revistas e jornais voltados ao público feminino, que na época publicaram artigos com informações sobre as potencialidades do anticoncepcional. “Porém, muito da divulgação foi realizado por representantes comerciais que atuaram entre os médicos”, ressalta a historiadora. Para se ter ideia de como era desconhecido o assunto, Joana lembra que, até a década de 1960, a contracepção não fazia parte da grade curricular das faculdades de medicina brasileiras.

Novas versões

As transformações foram profundas não apenas na saúde, mas na sociedade. O uso intensivo do anticoncepcional coincidiu, por exemplo, com o aumento da força de trabalho feminina. Entre 1970 e 2007, a proporção de brasileiras presentes no mercado profissional passou de 18,5% para 52,4%. Entretanto, para que hoje possa ser usada por tantas pessoas, em todo o mundo, a própria pílula também teve de se modificar, já que os primeiros exemplares não eram livres de efeitos colaterais.

No começo, as dosagens de hormônios sintéticos similares ao estrogênio e à progesterona eram muito elevadas, e por isso causavam distúrbios como náuseas, corpo inchado, dores nas pernas e na cabeça, além de problemas circulatórios que podiam levar à trombose, principal problema decorrente de seu uso. Em 1961, um médico britânico revelou à revista científica “The Lancet”, uma das mais reconhecidas pelos profissionais da área, que uma paciente havia desenvolvido trombose e morrido durante o período em que tomava pílula.

Essa relação fatal acabou dando origem a diversas pesquisas em busca de aperfeiçoamento, que levaram ao aparecimento de versões com menores doses hormonais. “A primeira cartela tinha mais de 150 microgramas de estrogênio. Hoje, a dose foi reduzida em mais de 90%. Além disso, o progestógeno inicial (como é chamada a versão sintética que imita a progesterona) foi substituído por outros, desenvolvidos posteriormente, o que também ajudou a diminuir os efeitos colaterais”, afirma Luis Guillermo Bahamondes, professor de ginecologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Até 1970, no entanto, as mudanças que ocorreram não foram tão significativas. Foi desenvolvido um novo progestógeno, o levonorgestrel, mas seus benefícios se mostraram escassos, limitando-se à regulação do ciclo hormonal. Na década seguinte, porém, outras vantagens se associaram ao uso do contraceptivo oral: com progestógenos aperfeiçoados, a pílula foi capaz de, além de controlar melhor o ciclo, reduzir o sangramento mensal, diminuindo também as cólicas, a tensão pré-menstrual (TPM) e a retenção de líquidos, e melhorando ainda pele e cabelos. Com testes incessantes, descobriu-se que as quantidades hormonais podiam ser bastante reduzidas, sem prejuízo para o efeito anticoncepcional. Ainda na década de 1980, os níveis hormonais chegaram perto dos que são usados atualmente, até dez vezes menores que os iniciais.

Benefícios

Hoje em dia a trombose, principal problema relatado no início da comercialização, pode ser considerada página virada na história da pílula. Com as novas versões, o índice da doença entre mulheres que se protegem contra a gravidez com esse recurso e entre as que não o usam se tornou praticamente igual. As vantagens foram se somando a cada década e, pouco antes de completar meio século de existência, nos anos 2000, o uso do anticoncepcional sofreu outra transformação: foi lançada a primeira cartela com 24 comprimidos ativos, em vez de 21, como vinha acontecendo desde sua criação.

Desse modo, a mulher passa menos dias sem a ingestão dos hormônios sintéticos, garantindo eficácia ainda maior do método. “O remédio é bem aceito e sua margem de erro, atualmente, é menor que 0,7%. Porém, sabemos que nos dias de pausa o sistema reprodutivo feminino (interrompido com o uso do anticoncepcional) volta a funcionar e falhas mínimas podem ocorrer. Reduzindo a pausa para quatro dias, não há tempo suficiente para o ovário produzir um óvulo e a chance de gravidez é menor”, explica Fernando Caron, ginecologista de São Paulo.

Os benefícios, hoje, são amplos. “Antigamente, a única preocupação se relacionava à prevenção da gravidez. Agora, existe a busca por um método que possa ajudar a impedir a retenção de líquidos, diminua o fluxo menstrual, evite cólicas, controle a época em que ocorrerá a menstruação, diminua a oleosidade da pele. Tudo isso é alcançado com o uso das pílulas atuais”, afirma a ginecologista Rosa Maria Neme, membro da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e diretora do Centro de Endometriose São Paulo. Problemas de saúde provocados pela alta ingestão de hormônios também ficaram registrados como parte da história. Quem toma contraceptivo oral regularmente tem menos chance de desenvolver câncer de ovário, cistos ovarianos e uterinos, miomas e endometriose, que é considerada a maior causa de infertilidade feminina.

Futuro

Antes de completar um século de existência, mais transformações devem marcar esse método contraceptivo, embora a tendência seja apenas continuar aperfeiçoando o que já foi feito. “As mulheres têm exigido medicamentos mais suaves”, afirma Bagnoli. É provável, portanto, que os contraceptivos orais se tornem cada vez mais parecidos com os hormônios que o próprio corpo produz, de modo a ser menos agressivos ao organismo e causar cada vez menos efeitos indesejáveis. Especula-se que outra das mudanças futuras seja o surgimento do anticoncepcional oral masculino, que vem sendo estudado há anos.

A principal modificação, no entanto, relaciona-se ao ritmo de vida da mulher atual, que realiza diversas tarefas ao mesmo tempo e não quer sofrer com os incômodos da TPM todos os meses. “Elas querem, cada vez mais, tomar o remédio continuamente e evitar a menstruação”, afirma o ginecologista Eduardo Zlotnik, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.

Isso deve se tornar possível em pouco tempo. Já estão sendo testadas cartelas de 120 dias, em que os comprimidos hormonais seriam tomados ininterruptamente por quatro meses, para só depois ser feita uma pausa, na qual ocorreria a menstruação. Por enquanto, segundo os especialistas, seria complicado testar períodos maiores que esse, pois não se sabe se a dose hormonal constante por intervalos maiores que 120 dias seria segura para a saúde das mulheres. Tendo sido protagonista de tantas mudanças médicas e sociais, não surpreenderá se a pílula, tomada sem pausas, trouxer benefícios além de simplesmente interromper o sangramento mensal.


No dia seguinte

Liberada na década de 1990 pelo FDA como método para evitar a gravidez depois do sexo sem proteção, a pílula do dia seguinte não é igual às tradicionais. “Ela se destina a uso emergencial. Falha mais e tem uma dose de hormônios muito maior, podendo causar efeitos colaterais como náuseas e dores de cabeça”, afirma Eduardo de Souza, professor do Departamento de Obstetrícia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenador científico de ginecologia e obstetrícia do Hospital e Maternidade São Luiz. Outra desvantagem desse recurso é tornar o ciclo irregular, por causa da alta concentração hormonal ingerida em uma única dose.


Como funciona a pílula

Cada ciclo ovariano tem início com a menstruação. Nessa fase, a hipófise – no cérebro – secreta o hormônio folículo estimulante (FSH), que provoca o desenvolvimento e amadurecimento de pequenas estruturas que abrigam os óvulos – os folículos. São eles os responsáveis por produzir estrogênio, nos primeiros dias do ciclo. A quantidade de hormônio aumenta gradativamente até o 14º dia e, entre o 12º e o 13º dia, um segundo hormônio secretado pela hipófise entra em ação, o luteinizante (LH). Ele proporciona o amadurecimento final do folículo dominante e provoca sua ruptura, liberando o óvulo (imagem abaixo). Assim se dá a ovulação, por volta do 14º dia. O óvulo fica à espera do espermatozoide por cerca de 24 horas – chegando a viver por no máximo 72 horas – e, caso não haja fecundação, ocorre uma nova menstruação, após alguns dias.

As mulheres nascem com cerca de 1 milhão a 2 milhões de folículos com óvulos, que vão se degenerando com o passar dos anos e não são repostos pelo organismo. Na puberdade, esse total cai para algo entre 300 mil e 500 mil e, com a chegada da menopausa, o número vai a zero. A cada mês, durante o período fértil, cerca de dez folículos começam sua maturação, processo que ocorre mesmo na gestação ou com o uso de contraceptivos orais. Porém, quando tomado regularmente, o anticoncepcional faz com que o ciclo ovariano se interrompa porque, apesar de os folículos serem parcialmente maturados, nenhum deles chega a liberar o óvulo. A pílula contém versões sintéticas de hormônios e, ao ser ingerida, leva o cérebro a interpretar que o estrogênio e a progesterona presentes na circulação foram liberados pelos ovários. Dessa forma, o organismo deixa de produzi-los. O estrogênio em alta impede a secreção de FSH, que estimularia a maturação dos folículos até o final. Com a progesterona em circulação também não há secreção de LH, evitando que haja ovulação. Sem um óvulo liberado não pode haver fecundação e a gravidez não acontece. Além disso, a pílula aumenta a quantidade de muco no colo uterino, de modo a evitar que os espermatozoides consigam chegar ao óvulo – caso o primeiro e principal efeito do anticoncepcional, que é impedir a ovulação, não ocorra.


Menos hormônio

A pílula tradicional é composta de versões sintéticas dos hormônios estrogênio e progesterona, mas existem variações, como a minipílula. “Ela contém apenas progesterona e é indicada para mulheres em período de amamentação ou aquelas para as quais é contraindicado o uso do outro hormônio, como em alguns casos de tumores estrogênio dependentes”, diz Afonso Nazário, chefe do Departamento de Ginecologia da Unifesp.

 

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