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O que não está nos autos

Patriarcalismo e costumes bárbaros alimentam a tolerância em relação à violência

CECILIA PRADA


Arte PB

Em julho passado, iniciada a febre jornalística relativa ao “Caso Bruno”, ou antes, “Caso Eliza Samudio”, a ombudsman da “Folha de S. Paulo”, Suzana Singer, criticou a precariedade da cobertura que o órgão de imprensa estava dando ao caso, perguntando se seus repórteres não haviam descoberto nada mais para alimentar os trabalhos do que depoimentos de delegados e fofocas já desgastadas. E indagava: “O que dá para se tirar de um caso como o de Bruno e Eliza, para além dos detalhes sórdidos?”

Tinha razão, pois cada vez que um crime hediondo é cometido contra mulheres e crianças temos assistido a verdadeiras enxurradas de divulgação sensacionalista, na imprensa e na mídia televisiva – até o ponto de saturação. Mas o tema transcende, neste momento histórico, qualquer outro referente a questões de gênero – não é mais possível estudar as causas, a incidência de episódios de violência contra a mulher, incluindo até o assassinato, sem inserir esses crimes em um quadro mais complexo – o da sociedade humana global, em todo o seu atraso, suas tradições patriarcalistas enraizadas, eivadas de costumes ainda bárbaros.

A grande e incômoda pergunta que persiste vai além do âmbito nacional e deveria ser levada – certamente por alguma ressuscitada liderança feminista – à esfera das Nações Unidas: poderão os países ditos civilizados tolerar por mais tempo que metade do gênero humano continue a sofrer discriminações e violências que chegam até ao assassinato institucional nos países fundamentalistas, onde “a vida da mulher vale a metade da vida do homem”, sem que sanções e punições sejam adotadas contra os bárbaros assassinos?

O chamado “respeito devido a tradições religiosas e princípios de soberania” – expresso por exemplo pelo presidente Lula a propósito da perspectiva de apedrejamento no Irã de Sakineh Ashtiani, por crime de adultério – continuará a prevalecer impunemente quando há a sistemática eliminação de seres mais fracos e indefesos? Casos de mulheres violentadas de todas as formas, apedrejadas, enforcadas, enterradas vivas, sufocadas pelos parentes no próprio lar, continuarão a acontecer sem que um movimento universal de protesto se levante? E poderá ser tolerada a ocorrência maciça de pedofilia, como os casamentos coletivos de muçulmanos com meninas até de quatro anos – divulgados amplamente pelos próprios líderes palestinos? E que dizer da menina de 13 anos que na Somália, em 2008, após ter sido brutalmente estuprada por três homens, foi morta por apedrejamento diante de uma multidão contida por milicianos armados?

Os “defensores dos direitos humanos” que não hesitam em monitorar países que mantêm presos políticos – tarefa sem dúvida da maior importância – por que não vigiam e denunciam com a mesma energia os que espezinham os direitos dos seres femininos, que constituem pelo menos metade da humanidade?

Os defensores das baleias assassinadas no Ártico, dos pobres tigres em extinção na Índia, do gorducho peixe-boi da Amazônia, não poderiam reservar uma parte de sua louvável preocupação ecológica para fazer campanha também pelas mulheres e crianças assassinadas em todo o planeta?

As estatísticas são impressionantes. E não precisamos ir longe: nosso Brasil democrático, católico, oitava potência econômica do mundo e aspirante a uma vaga no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) está em 12º lugar em um ranking internacional relativo a casos de violência contra a mulher. Alguns deles são mais rumorosos e acabam por se constituir em sinalizadores na enxurrada histórica de atos brutais, ou mesmo em turning points de importantes mudanças nas leis e nos costumes nacionais – e assim os recordamos aqui.

“Onde está Idalina?”

Em 1907 o caso de Idalina Stamato, uma menina de sete anos que desapareceu para sempre do Orfanato Cristóvão Colombo, no bairro do Ipiranga, onde estava internada, transformou-se em um dos mais famosos e polêmicos episódios da crônica policial de São Paulo. Foram acusados de estupro e assassinato dois padres italianos da Congregação Scalabriniana, ou Carlista, Conrado Stefani e Faustino Consoni. O primeiro teria estuprado a órfã em um banheiro do internato, quando ela tomava banho. A menina chorava alto pelos corredores da instituição, queixando-se de dores nos órgãos genitais, mas padres e freiras cúmplices tentavam fazê-la se calar. Em dado momento em que a porta da rua estava aberta, Idalina fugiu correndo. Logo mais foi alcançada e arrastada de volta pelo superior da instituição, padre Faustino – em cujo escritório o crime teria ocorrido, servindo-se ele, secundado pelo estuprador, de uma pá para matá-la. Os que viram o filme Educação, de Almodóvar, se lembrarão de cena semelhante ocorrida em um colégio de padres.

O corpo de Idalina, porém, nunca foi encontrado, embora várias buscas tenham sido empreendidas no local durante o inquérito policial, decorrente da denúncia feita pelo comerciante Domenico Stamato, que era o tutor (e possivelmente pai) da menina e de um seu irmão, Sócrates (também chamado Santo), dois ou três anos mais velho. Ele costumava ir ver as crianças, internadas em 1905, mas não com muita frequência. Em julho de 1907, em uma dessas visitas, verificou que Idalina não estava mais no internato – segundo os religiosos, ela havia sido levada, uns dois meses antes, por uma senhora que seria sua mãe. A pergunta principal do inquérito, nunca respondida satisfatoriamente e que também nunca calou nos anos subsequentes, foi esta: como a menininha fora entregue sem mais a uma suposta “mãe” se fora internada justamente por ser órfã?

A fundamentada suspeita de que ela teria sido eliminada foi com o correr do tempo alimentando uma verdadeira batalha de imprensa travada, de um lado, por um bom número de jornais “alternativos”, onde se reuniam principalmente anarquistas e anticlericais dispostos a esclarecer todos os detalhes do misterioso desaparecimento, e de outro por tradicionais órgãos da imprensa paulistana, empenhados na defesa da ordem estabelecida e da religião. Na época a Cúria Romana expressamente recomendava que o clero, por intermédio de seus prelados, procurasse o apoio explícito das famílias abastadas e dos empresários de grande porte. Era o que certamente fazia, à perfeição, o arcebispo dom Duarte Leopoldo e Silva, que se orgulhava até de ter um aristocrático brasão de família.

Entre ires e vires processuais, muros pichados com a pergunta que passaria à história da cidade, “Onde está Idalina?”, diatribes inflamadas, o crime seria usado também para fins políticos, pelas duas facções – na batalha destacaram-se dois anarquistas históricos, o italiano Oreste Ristori, que morou em São Paulo em dois períodos (de 1904 a 1917 e de 1925 a 1936) e o brasileiro Edgar Leuenroth (1881-1968).

A congregação dos padres acusados manteve-se sempre em silêncio, e a Cúria Metropolitana envidou todos os esforços para desviar a atenção do público. Foi até mesmo arranjada uma menina para ser apresentada como a desaparecida Idalina, mas provou-se logo a fraude. Um estudo documentado desse caso pode ser encontrado na biografia Oreste Ristori Uma Aventura Anarquista, de Carlo Romani (Annablume, 2002) e de forma mais completa no livro Anarquismo, Estado e Pastoral do Imigrante, de Wlaumir Doniseti de Souza (Editora Unesp, 2000), que considera o Caso Idalina o fulcro da verdadeira batalha ideológica, que se desenvolvia na época dos dois lados do Atlântico, entre a Igreja Apostólica Romana ultramontana, que pretendia a todo custo manter o controle sobre os imigrantes vindos para a América, e os anarquistas e liberais estabelecidos principalmente no estado de São Paulo.

Conta Doniseti como a população participava ativamente dessa campanha, definida por muitos quase como “uma guerra santa”, e como panfletos eram distribuídos nas portas das igrejas. Mesmo durante os ofícios religiosos era comum alguma voz elevar-se, com a pergunta fatídica “Onde está Idalina?”, em português ou em italiano.

No dia 12 de março de 1911 o conflito atingiu o auge com a organização de um colossal comício no centro da cidade – uma das maiores aglomerações já vistas até então na capital. O grito de guerra era: “Abaixo a polícia e o orfanato, morra o padre Faustino!” Com o uso da cavalaria, a polícia obrigou a multidão a correr de um lado para outro do centro, tentando se reunir ora em uma praça ora em outra, até ser dispersada, com um saldo de um morto e de 70 a 90 detidos. A cidade foi transformada em verdadeira praça de guerra e houve prontidão nos quartéis. Os anarquistas cogitaram deflagrar uma greve geral para protestar contra a violação do direito constitucional de reunião, enquanto a sociedade bem-pensante enrijecia suas defesas tentando legitimar a todo custo a inocência dos padres.

O processo judicial foi encerrado em 1912, com a absolvição dos padres. Os anarquistas continuaram a lutar até 1919 – prazo para a prescrição do crime – pela reabertura do inquérito, mas em vão. Historiadores tentaram levantar mais provas entre os antigos moradores do bairro do Ipiranga, mas elas foram inconclusivas.

Quis o acaso, porém, que me fosse dado espontaneamente um depoimento importante, que divulgo agora pela primeira vez. Por volta de 1995, uma pessoa de minhas relações, o corretor de imóveis Benedito Furquim, então com 63 anos – falecido neste ano de 2010 –, nascido e criado no Ipiranga, conhecendo-me como escritora e jornalista me sugeriu escrever “a história de Idalina Stamato”. Era Benedito Furquim sobrinho de Domenico Stamato, que foi casado com uma sua tia materna, Lídia, e quando menino ouvira dele próprio a narração detalhada do caso, com as provas acumuladas, inclusive a referência a um depoimento do menino Sócrates (Santo Stamato): este vira o padre Faustino arrastar a irmã para matá-la. A polícia marcou dia para registrar seu depoimento, mas – sempre segundo Benedito Furquim – na véspera um dos padres deu uma surra de chicote no menino, deixando suas costas marcadas de vergões. No dia seguinte, Domenico levou o menino e mostrou as marcas para os policiais. Apesar de todos os depoimentos, tanto dele como de internas e de uma funcionária do orfanato, as provas da violência foram escamoteadas e o assunto encerrado.

Tradição jurídica

Em 1976, um assassinato ocorrido em Cabo Frio (RJ) – o da socialite Angela Diniz, por seu companheiro Raul (Doca) Street – abalou a opinião pública e tornou-se um marco na sucessão de crimes passionais que ensanguentaram toda a nossa história, respingando até hoje, “talvez mais ainda do que antigamente”, como diz a socióloga Eva Alterman Blay, fundadora e coordenadora do Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero (Nemge) da Universidade de São Paulo (USP).

A versão oficial dava como causa do crime “a legítima defesa da honra”, isto é, os ciúmes do amante rejeitado, Doca, após três meses apenas de ligação sentimental. Por sua história pregressa, Doca era conhecido como libertino, violento e explorador de mulheres, mas mesmo assim foi absolvido porque – como disse o chefe de polícia de São Paulo, delegado Sergio Paranhos Fleury, “o único crime que não condenaria é o passional. Crime passional qualquer um comete, até eu”. Esse era o modo de pensar e a tradição jurídica que até aquela data buscava inocentar quem assassinava a mulher.

O ano anterior (1975), porém, fora justamente definido pela ONU como o Ano Internacional da Mulher. A mobilização pela equiparação dos direitos e pela liberação sexual já fora iniciada havia uma década nos Estados Unidos e nos anos 1970 chegara ao Brasil. Não somente participei ativamente desse movimento mas tive, em relação ao Caso Angela Diniz, atuação marcada: estava em casa uma tarde, quando ouvi a notícia de que Doca Street – defendido por um dos maiores advogados do país, Evandro Lins e Silva – fora absolvido por um júri popular e colocado em liberdade, como “defensor de sua honra”.

Minha indignação foi tão grande que resolvi fazer qualquer coisa, e fiz: tenho orgulho de ter encabeçado em São Paulo, na minha qualidade de jornalista e de escritora, uma grande onda de protesto que acabou por conseguir (fato inédito até então) a revisão do processo e novo julgamento que condenou o assassino. Telefonei imediatamente para minha grande amiga e parceira de lutas, a jornalista Irede Cardoso, da “Folha de S. Paulo” – falecida no ano 2000 –, e, incorporando um grupo de decididas feministas, conseguimos que a direção da TV Bandeirantes nos desse acesso imediato ao público no programa feminino de Maria Tereza Gregori, que naquele momento estava no ar.

Essa foi a primeira vez que integrantes do movimento puderam expor sem censura e com espontaneidade seus pontos de vista. Surpreendemos o público e até a nós próprias: juntamos nossas reivindicações ao brado indignado de um jovem promotor público (que logo foi proibido de falar por seu órgão de classe) e redigimos um abaixo-assinado aberto ao público – dois ou três dias mais tarde havíamos recolhido 5 mil assinaturas. Um comitê do Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, entrou para valer na luta, chefiado pelo acadêmico Fabio Feldmann – a absolvição de Doca Street, diziam, condenava o sistema judiciário do país e ameaçava invalidar o estudo dos princípios gerais de direito que regem as sociedades civilizadas.

Nova batalha pela imprensa, semelhante à do Caso Idalina, ocupou os jornais do país – era a primeira vez que se contestava de maneira sistemática a prática do “crime de amor”. Enquanto o advogado Lins e Silva se irritava com a repercussão que, a seu ver, “transformava uma briga entre amantes em acontecimento nacional”, os jornalistas Paulo Francis e Tristão de Athayde (quem diria!...) indignavam-se com os protestos das feministas. Tentando ser racional, Carlos Heitor Cony não rilhava os dentes como seus colegas, mas procurava passar a ideia de que a verdadeira vítima seria Doca Street. Houve revisão do julgamento, e o menino de boa família passou alguns anos (poucos, na verdade) atrás das grades.

Em nome do amor

A própria legislação que tivemos no Brasil, desde a Colônia, favorecia a violência contra a mulher e até mesmo seu assassinato. De acordo com o livro V das Ordenações Filipinas (base de toda a legislação de Portugal e do Brasil até surgirem os códigos do século 19), a designação “adultério” era reservada às relações fora do casamento mantidas pelas mulheres e estabelecia-se que o marido ofendido estava autorizado a matar a mulher e o seu companheiro de crime. Essa situação só mudou com o Código Civil de 1916, embora tenha se mantido o adultério como delito exclusivamente feminino.

De 1970 para cá uma grande mudança registrou-se no que se refere aos direitos da mulher, alterando a mentalidade que desculpava os crimes passionais cometidos por homens por estarem “momentaneamente privados da razão” devido ao comportamento da mulher. No entanto, como salienta ainda Eva Blay, perduram, no meio televisivo principalmente, as mensagens duplas: na dramatização de crimes passionais, estupros seguidos de morte, incesto, mesmo com a condenação do criminoso existe uma “romantização” de seu ato – o que acaba por reviver imagens antigas ligadas a esse tipo de crime. Ela dá como exemplo a canção Cabocla Tereza, de Raul Torres e João Pacífico, que exalta o assassino e justifica sua “vingança” contra a mulher infiel: “...Jurei a Tereza matar/ O meu alazão arriei/ E ela fui procurar/ Agora já me vinguei/ É esse o fim de um amor/ Essa cabocla eu matei...” É de estranhar, ainda, que até hoje se veja a atriz Maitê Proença perdoar e compreender o assassinato de sua mãe, cometido por seu pai, “por ter sido motivado por amor” – como diz em seus livros autobiográficos.

A criação das Delegacias de Defesa dos Direitos da Mulher em 1985, e da Lei Maria da Penha em 2006, representou sem dúvida muito, no quadro geral brasileiro. Apesar disso, em pesquisa de 1998 constatou-se que somente cerca de 14% dos réus de crimes contra a mulher haviam sido julgados e condenados, de 1996 a 1998. Entre os demais casos, 50% haviam sido arquivados (basicamente por falta de identificação do criminoso), 24% suspensos (porque o réu estava foragido), em dois os criminosos haviam sido impronunciados por insuficiência de provas e em três, absolvidos.

Nominalmente, temos ainda impunes até hoje vários assassinos confessos. Ou que pelo menos conseguiram driblar o tempo de cumprimento de pena, mesmo quando condenados. Somente no ano passado é que o promotor público Igor Ferreira da Silva, que em 2001 fora condenado por ter assassinado a tiros sua mulher, grávida de sete meses, foi preso em São Paulo. E temos ainda gozando as benesses de uma velhice sossegada, em casarão de quase mil metros quadrados no bairro paulistano de Chácara Santo Antônio, o jornalista Antônio Marcos Pimenta Neves, ex-diretor do jornal “O Estado de S. Paulo”, que em 2000 assassinou friamente, com um tiro nas costas, uma jornalista de 26 anos, Sandra Gomide, que fora sua amante. As notícias que temos dele, embora tenha sido condenado em primeira e em segunda instâncias, são de que passa tranquilamente seus dias em casa, lendo e navegando pela internet.

O merecido repouso do guerreiro – certamente.

 

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