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O novo código da discórdia

Parecer sobre proposta de lei reacende a polêmica sobre proteção da cobertura vegetal

MAURICIO MONTEIRO FILHO


Plantação de milho e soja em Goiás / Foto: André Pessoa

Em 269 páginas de uma escrita em estilo rebuscado, que lembram mais uma peça literária do que um parecer legal, o deputado federal Aldo Rebelo (PCdoB) ateou fogo a uma polêmica que há anos distancia ainda mais dois setores da sociedade brasileira que tradicionalmente vem se colocando em lados opostos: ambientalistas e produtores rurais. O texto trata das propostas de reforma do Código Florestal Brasileiro, lei 4.771, de 1965, que, em síntese, dispõe sobre a proteção da cobertura vegetal no Brasil.

O documento traz o parecer do deputado – relator da comissão especial formada para avaliar as propostas – sobre o projeto de lei 1.876, de 1999, e outras dez iniciativas de parlamentares para alterar o Código Florestal vigente, apresentadas entre 2004 e 2010. Em 6 de julho deste ano, o projeto foi aprovado pela comissão, por 13 votos a cinco, e liberado para ir a plenário.

Não bastasse a controvérsia gerada pelo teor das propostas de mudança da lei, a própria atuação da comissão especial foi muito criticada pelo movimento socioambiental. Segundo dados do Greenpeace, foram ouvidas mais lideranças ligadas aos ruralistas do que aos outros setores envolvidos no debate, nas audiências realizadas pelo grupo de parlamentares. Estiveram presentes às sessões 63 representantes da agricultura patronal, contra 18 ambientalistas. “Avaliamos esse processo todo como um grande tratoraço”, diz Rafael Cruz, da campanha Amazônia do Greenpeace.

Ao final da votação, enquanto ambientalistas lamentavam o que diziam ser um retrocesso, os partidários da causa ruralista gritavam: “Brasil”. Isso porque, no longo jogo de empurra em que se converteram as discussões sobre o código, o relatório de Aldo Rebelo, na avaliação de especialistas e do movimento socioambiental, pende para os interesses dos produtores rurais.

Ainda não é possível avaliar os impactos que serão causados sobre o meio ambiente do país caso o novo código seja sancionado, mas diversas propostas acenam com a possibilidade de abertura de novas fronteiras para a produção agrícola, já que poderão ser reduzidas as áreas que o código atual protege. Isso estimularia a derrubada de florestas – que vem diminuindo nos últimos dois anos – e as emissões de carbono, na contramão dos compromissos brasileiros assumidos na 15ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP-15), realizada em Copenhague em 2009.

Visões conflitantes

De improviso, o relatório de Aldo Rebelo elabora conceitos arriscados, como o de antropofobia, que seria a aversão do movimento ambiental às ações do homem em sua relação com a natureza. Na visão do deputado, o Código Florestal atual reforça esse raciocínio. Segundo ele, “combinados, os dispositivos legais existentes podem transformar em crime ambiental o próprio ato de viver”.

Para sustentar sua visão, ele conta com o suporte de nomes ilustres do pensamento ocidental. Diderot, padre Antônio Vieira, José Bonifácio, Graciliano Ramos, o sanfoneiro Luiz Gonzaga e até o Gênesis, da Bíblia, desfilam nas páginas do parecer, em epígrafes e citações. Tudo isso, diz a dedicatória do texto, feito em nome dos “agricultores brasileiros”.

Se as reformas propostas forem levadas a cabo, diversos dispositivos de conservação das florestas serão flexibilizados, abrindo brechas para mais desmatamento, na visão de ambientalistas, e para maior produção, na visão de representantes do agronegócio. Por outro lado, não resta dúvida de que uma reavaliação do texto de 45 anos se faz necessária. De norte a sul do país, pequenos e grandes produtores, entidades de pesquisa e ONGs identificam no Código Florestal a origem de grande parte dos problemas do meio rural. “Existe muita confusão mesmo e ninguém sério diz que o código está bom. Ele tem de ser reformado. Não acho que o novo projeto tem de ser 100% aprovado, mas o Brasil precisa resolver isso”, afirma Marcos Jank, presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica).

Entretanto, na medida em que nenhuma das reformas amplia o controle ambiental sobre as florestas e a grande maioria delas ecoa reivindicações antigas de ruralistas, parece que se perdeu uma grande chance de construir um texto mais consensual entre as partes. “O deputado Aldo Rebelo conseguiu a proeza de regredir num debate que estava progredindo. Estávamos construindo uma boa proposta para apresentar”, revela Cruz. Segundo ele, lideranças ruralistas e entidades ambientalistas já vinham discutindo e havia concordância quanto à bandeira do desmatamento zero. A nova proposição, porém, acabou soterrando a chance de um acordo em curto prazo. “Esse projeto é um dos piores possíveis. Mas sou otimista. Ele vai acabar sendo mais divulgado e a sociedade vai se manifestar contra”, emenda.

Segundo Carlos Nobre, doutor em meteorologia pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT) e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), do ponto de vista das mudanças climáticas, o novo código é problemático. Entretanto, não é esse seu maior impacto. “O efeito negativo será menor no aquecimento global que na imagem brasileira. Apesar de a COP-15 ter sido um fracasso, a posição brasileira foi boa. Recebemos elogios às metas de redução nas emissões de carbono. Essa credibilidade internacional é importante”, argumenta Nobre. “O exterior olha muito para a Amazônia e a maior vítima do substitutivo do Código Florestal é a reputação do Brasil. Há incompatibilidade entre políticas públicas”.

Redução das APPs

Três itens do substitutivo monopolizam boa parte da polêmica. O primeiro deles diz respeito às chamadas áreas de preservação permanente (APPs). Segundo o texto do código atual, elas são espaços cobertos ou não “por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”. Na prática, o conceito diz respeito a florestas que devem se manter integralmente conservadas. É o caso de matas localizadas nas margens de rios, nascentes, topos de morros, encostas com declividade superior a 45 graus, entre outros.

Segundo levantamento do professor Gerd Spavorek, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo (Esalq/USP), há 103 milhões de hectares de florestas em APPs no Brasil. Desse total, 44 milhões de hectares foram desmatados ou estão ocupados por cultivos, o que contraria o código.

Mesmo diante desse diagnóstico, a nova proposta pretende, por exemplo, reduzir as APPs em margens de rios. A sugestão é criticada pelo professor Jean Paul Metzger, do Laboratório de Ecologia de Paisagens e Conservação, do Instituto de Biociências da USP. Segundo ele, tamanho é documento, no que diz respeito à biodiversidade nesses espaços. Ou seja, para atingir a maior riqueza de espécies é necessário um espaço mínimo. Nas margens de cursos de água de quaisquer dimensões, ele sustenta que a APP deve ter, pelo menos, 100 metros de largura. Outra preocupação dos ambientalistas é que o PL 1.876/99 prevê que os estados poderão reduzir as áreas de APPs.

Reserva legal

O carro-chefe da polêmica do novo Código Florestal, no entanto, diz respeito à reserva legal (RL), definida pelo texto de 1965 como área “localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, excetuada a de preservação permanente, necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção de fauna e flora nativas”. O tamanho das RLs varia de acordo com a região do país e do bioma onde está situada a propriedade. Na Amazônia Legal (AL), 80% da terra deve manter sua cobertura vegetal, exceto nas áreas de cerrado que estiverem dentro dos limites da AL, onde a porcentagem cai para 35%. Nas demais regiões do país, 20% das propriedades devem ser preservados como RL.

O problema, nesse caso, é que o percentual de 80% foi determinado por uma medida provisória editada em 1996, durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Até então, os produtores da Amazônia eram obrigados a resguardar no máximo 50% de suas terras como RL. “Essa é uma questão que nos impede de cumprir a lei”, declara Ricardo Arioli, da Associação dos Produtores de Soja do Estado de Mato Grosso (Aprosoja). Também por conta desse descompasso, segundo o estudo de Spavorek, o déficit de RLs no Brasil chega a 43 milhões de hectares.

Para dar conta desse imbróglio, o substitutivo do código mantém os índices, mas permite aos estados reduzi-los a até 50% na Amazônia. Na leitura do movimento ambientalista, essa brecha garantirá que, na prática, as RLs diminuam drasticamente naquela região.

Na opinião de Marcos Jank, da Unica, “o que mais preocupa é a reserva legal”. Segundo ele, o conceito só existe no Brasil. “A ideia [do Código Florestal] deveria ser manter a floresta que está de pé hoje”, completa. Rafael Cruz, do Greenpeace, rebate. “Se o Brasil quiser conservar a paisagem, as RLs são importantes. Elas também têm efeitos sobre o microclima. As florestas são bens públicos. Os biomas não são de ninguém e a terra tem função social e ecológica”, afirma.

Compensação ambiental

O tema das RLs é alvo de preocupação do setor produtivo devido à questão da compensação das áreas que já foram degradadas, o terceiro elo da cadeia de polêmicas em torno do novo Código Florestal. Diante dos déficits identificados por especialistas tanto de APPs como de RLs, a lei vigente impõe medidas para restaurar a cobertura nativa. Com isso, os produtores teriam de arcar com grandes prejuízos. “Precisamos de segurança jurídica para continuar plantando. Cheguei a Mato Grosso em 1987 e obedeci à lei da época. Não quero mudar porque o código mudou. Não quero ter de converter essa área em vegetação nativa, que para a população não tem nenhum valor. Não gera emprego, divisas, não produz alimento”, diz Arioli.

O novo código prevê um pacote que favorecerá produtores nessa situação. Segundo o substitutivo, poderão ser isentadas da obrigação de recomposição de APPs as propriedades situadas em “áreas rurais consolidadas”. Quanto às RLs, aqueles que estiverem em déficit poderão recompor essas áreas à razão de 10% a cada três anos. Essas medidas farão parte dos chamados Programas de Regularização Ambiental (PRAs). Durante a elaboração desses PRAs, ficarão isentos de multas por infrações ambientais os produtores que tiverem cometido violações antes de 22 de julho de 2008. Isso, na visão das entidades ambientalistas, significa anistiar grandes desmatadores, que sabidamente cometeram crimes contra o meio ambiente.

Outra discussão relativa a esse tema diz respeito ao local da recomposição. É uma reivindicação antiga dos ruralistas que a compensação ambiental possa ser feita fora da propriedade, eventualmente até fora do estado ou do bioma. “Recompor em cada propriedade é absurdo. Não faz nenhum sentido jurídico nem ambiental criar ilhotas de mata isoladas”, critica Jank.

A despeito das críticas frequentemente disparadas contra o atual Código Florestal, segundo as quais ele carece de base científica, é justamente na ciência que são buscados argumentos contrários à visão do presidente da Unica. Na opinião de Metzger, o raciocínio é simples: é melhor ter as ilhotas do que não tê-las. “O ideal é ter fragmentos grandes, unidos por corredores, mas bosques isolados também são importantes para os ecossistemas e reduzem distâncias entre florestas. As espécies usam essas ilhas de mata como escala”, sustenta. Segundo ele, esses fragmentos pequenos também podem ter valor econômico, por contribuírem para o controle de pragas e a polinização.

Outra ideia dos produtores, contemplada na proposta de reforma do código, diz respeito à inclusão das APPs nas reservas legais. “Por que ter duas áreas de preservação? Nossa reivindicação é somar as duas”, declara Arioli. Com isso, porém, a área total preservada em cada propriedade cairia significativamente.

Metzger rebate também com fundamentos científicos essa proposta. Segundo ele, cada um desses espaços atende a objetivos específicos. “APPs e RLs têm funções distintas. Elas apresentam fauna e flora diferentes e se complementam. Uma não pode substituir a outra”, argumenta.

Impacto sobre cidades

Quando se fala em Código Florestal, imediatamente o tema é associado à imagem da Amazônia ou de regiões rurais do Brasil. No entanto, a lei que vale para florestas nos rincões do país se aplica também à cobertura vegetal das áreas urbanas. Nisso tanto a lei vigente quanto o substitutivo concordam: os mesmos critérios de preservação têm validade no campo e nas cidades.

Na avaliação de ninguém menos que um detentor do Prêmio Nobel, isso é um equívoco. Segundo Carlos Nobre – um dos autores do relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) que, em 2007, foi agraciado com o Nobel da Paz –, o projeto de reformulação do código não corrige um erro central.

No processo de expansão das grandes cidades, são cada vez mais comuns ocupações em áreas de encosta. Os morros cariocas são o exemplo mais emblemático desse processo. Segundo o Código Florestal, sempre que esses espaços apresentarem declividade maior que 45 graus, devem ser considerados APPs.

De acordo com Nobre, é extremamente arriscada a existência de ocupações humanas em locais íngremes, ainda que a declividade seja menor que a estabelecida tanto no código atual como na nova proposta. “A lei não contempla a questão urbana como deveria. Mantém os mesmos parâmetros de áreas rurais, quando deveria proteger as ocupações humanas nas cidades de inundações e deslizamentos. Não se pode permitir ocupação em locais com mais de 25 graus. Para agricultura isso é possível, mas para habitação, não.”

Idas e vindas

O atual Código Florestal Brasileiro, de 1965, é, na realidade, a segunda lei do tipo no país. A primeira foi o código de 1934, que inaugurou a defesa das florestas no território nacional, embora desde essa data o país tenha testemunhado uma expansão agropecuária sem precedentes, que pareceu não tomar conhecimento da legislação. Somente quando o cerco ambientalista foi intensificado, em 1996, com o aumento das RLs na Amazônia, a lei começou a representar de fato uma pedra no sapato dos produtores rurais.

A partir de então, para aliviar a pressão sobre sua atividade, a bancada ruralista no Congresso partiu para a ofensiva contra o texto. Nos últimos anos esse movimento ganhou força. Em 1999, o deputado Moacir Micheletto (PMDB) apresentou um projeto que se tornou a base do atual conjunto de propostas de reforma do código. Já estavam então previstas medidas como a anistia ao não cumprimento da recomposição de APPs e a redução da RL na Amazônia de 80% para 50%. Na época, ativistas do Greenpeace realizaram diversos protestos em Brasília para tentar evitar a aprovação do projeto. Devido às pressões, mesmo depois de ter passado por comissão semelhante à que avaliou a proposição atual, as alterações de Micheletto não chegaram a ser votadas no Congresso.

Desde então, houve várias investidas de ruralistas tentando emplacar reformas no código e na legislação ambiental e fundiária. Isso mostra que a polêmica seguirá de perto a preservação ambiental e a produção rural no Brasil.

Excessos e acertos de parte a parte, a solução para acabar com os conflitos é perceber que não existe maniqueísmo real entre defensores da natureza e produtores rurais. Enquanto o Brasil não pode prescindir das divisas geradas por sua produção agropecuária, também precisa despertar para o valor, inclusive econômico, de suas florestas em pé.

 

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