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Mudança de rumo

Análises inéditas do censo de 81-91, elaboradas por estudiosos da Unicamp, mostram novo perfil dos fluxos migratórios no Brasil (matéria publicada na edição nº 320 de "Problemas Brasileiros", de março/abril de 1997)

IMMACULADA LOPEZ

A população está em movimento. Quase 26 milhões de brasileiros, segundo o último censo populacional, mudaram pelo menos uma vez de cidade nos anos 80. Entre eles, 11 milhões deixaram seus estados. Já a partir da década de 50, as idas e vindas da população vêm se confundindo com a história do país. Hoje, o Brasil é uma nação urbana que não existiria sem as migrações. O exemplo que logo explode é São Paulo, que – ainda aprendendo a conviver com seus migrantes – foi construída com eles. Mas se, na década de 70, "deixar sua terra com destino à capital em busca de uma vida melhor" foi um sonho que se concretizou para muitos, hoje, a migração revela outros tempos. "A capital" já não é mais a mesma; "os destinos" se multiplicaram; e "o sonho" se tornou quase impossível.

Números inéditos do último censo populacional (1981-91) trabalhados pelo Núcleo de Estudos da População (Nepo) da Unicamp indicam que São Paulo continuou a ser o estado que mais recebeu migrantes na última década. Mas, ao mesmo tempo, foi o que mais perdeu. Entre os que deixaram o estado, se destacam aqueles que voltaram para seu local de origem – a chamada "migração de retorno". Dentro do estado, o movimento também mudou. A Grande São Paulo continuou a receber milhares de pessoas, mas a saída aumentou muito. Em todas as "trocas" com as principais regiões do interior, a Grande São Paulo teve saldo negativo. "O interior de São Paulo é um exemplo da mudança dos fluxos. Ele cresceu, urbanizou-se e amorteceu a chegada de migrantes à capital. Está havendo uma redistribuição da população no país, o que não significa que a pobreza esteja se desconcentrando", avalia a demógrafa Rosana Baeninser, do Nepo.

Nos últimos meses, a pesquisadora vem revirando os números do censo, tentando entender as novas tendências. "Até recentemente, a vocação de São Paulo era ser a metrópole da indústria nacional", aponta Rosana. Basta lembrar o boom da indústria automobilística ou da construção civil, que requisitou o trabalho de milhares de migrantes, principalmente nordestinos. "Mas agora", continua Rosana, "São Paulo quer ser uma ‘cidade global’ no novo contexto mundial. Deve permanecer como centro financeiro do país, mas não precisa mais de mão-de-obra desqualificada." Para a pesquisadora, essa nova cara da metrópole está contribuindo com a busca por outros locais do estado. Uma tendência também impulsionada pelas mudanças ocorridas no interior.

Movimento pendular

"Os pólos interioranos já oferecem um estilo de vida urbano", destaca Rosana. Ela acredita que, além de trabalho, as pessoas também estão procurando melhores condições de vida. "Trabalho é primordial, mas o acesso a moradia e serviços médicos também está pesando na decisão." A expansão do transporte também estaria colaborando para essa mudança, ao interligar as cidades do interior e permitir que as pessoas possam morar e trabalhar em localidades diferentes – o chamado "movimento pendular", crescente também nas metrópoles. Em relação às chances de trabalho na região, Rosana destaca o surgimento de novas fábricas (que estão se espalhando com a flexibilização da produção industrial) e, principalmente, as atividades relacionadas ao campo e à agroindústria (que ainda vivem de mão-de-obra desqualificada). Ao lado da migração desse grupo de trabalhadores, a pesquisadora menciona a movimentação de uma população com perfil diferente: os profissionais qualificados atraídos pelas empresas locais ou que seguem atuando na capital mas decidem morar no interior.

Dessa forma, o interior começa não só a reter sua população, como a atrair gente de fora, o que não significa que todo esse grupo esteja sendo acolhido como parte do desenvolvimento local. Rosana lembra que, para as maiores cidades, a migração é sinônimo de problema. Algumas até ficaram conhecidas por seus "mecanismos de defesa". "Várias prefeituras já colocaram guaritas na entrada da cidade. Uma delas até chegou a oferecer uma bola para cada criança que apontasse um novo migrante", conta.

"As cidades do interior estão crescendo mas também empobrecendo", completa a pesquisadora Lucia Bógus, do Núcleo de Estudos e Pesquisas Urbanas do Departamento de Ciências Sociais da PUC/SP.

"Como não há infra-estrutura, as prefeituras acabam empurrando parte dos migrantes para a localidade mais próxima", completa a socióloga. É comum a pessoa ganhar uma passagem de ônibus da assistência social ou subir no "vagão dos trecheiros" no trem que liga Campinas a Presidente Prudente. De um jeito ou de outro, o migrante vai até a parada seguinte, procurando um destino trecho a trecho.

Exclusão repetida

"Não há condições de fixação para o pobre." Para Lucia, essa é a chave mestra da grande mobilidade interna no país. Em outras palavras, a migração revelaria a exclusão social da maioria da população. "A pessoa é excluída no seu local de origem e no de destino." A pesquisadora observa que cada região brasileira já tem seu "estoque populacional" de trabalhadores não qualificados. Na verdade, ele faria parte do modelo de desenvolvimento nacional, mas nos últimos anos estaria fugindo do controle. Essas pessoas ficam então circulando, pois não entram no mercado de trabalho e, portanto, não têm espaço na sociedade. "Muitas vezes, elas acabam criando esse lugar na criminalidade ou no mercado informal", conclui Lucia.

Por isso, a socióloga acredita que para esse grupo a Grande São Paulo ainda oferece mais alternativas de sobrevivência. "Ela tem mais chances de se virar, principalmente porque conhece mais pessoas." Esse é ainda outro forte atrativo da metrópole – a chamada "rede de acolhimento". Um parente ou amigo que manda notícias, recebe a pessoa em casa, dá a dica de um "bico". Por esses motivos, pelo menos para os nordestinos, São Paulo ainda segue sendo a grande referência.

Observa-se então a "periferização" da cidade. Quem chega vai morar nas periferias da periferia ou ainda nas vizinhas cidades-dormitórios. Uma tendência que se repete em outras capitais, como Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte e Curitiba. De qualquer forma, Lucia reconhece que menos migrantes têm ficado na região metropolitana de São Paulo. "Até vão à capital, mas acabam sendo expulsos novamente e tentam o interior."

Saga sem fim

"No caso dos migrantes da Bahia", completa Rosana, "evidencia-se um vai-e-volta." A pessoa não consegue se fixar na metrópole e volta para sua terra natal, mas, como ali tudo continua parado, ela tenta migrar de novo... e assim por diante. Essa tendência pode ser observada em uma pesquisa realizada no estado de São Paulo em 1993, com a participação do Nepo e da PUC. Diferentemente do censo do IBGE, que apenas indaga sobre a última mudança da pessoa, essa pesquisa levantou as seis últimas paradas.

"Os mineiros, por sua vez, parecem acompanhar as novas fronteiras agrícolas", destaca Rosana.

Segundo a demógrafa, o censo de 91 apontou novas regiões "receptoras" ligadas à exploração agropecuária. Todos os estados do centro-oeste do país, por exemplo, tiveram trocas migratórias positivas, ou seja, mais pessoas entraram do que saíram. No norte, ocorreu o mesmo, com exceção do Acre. Em alguns estados, a diferença chama atenção: em Rondônia, chegaram 416.209 migrantes e saíram 157.957. Em Roraima, foram 63.613 para 13.525.

Por outro lado, a expansão das novas fronteiras agrícolas indica uma tendência alarmante. "Podemos chamar de tendência migratória do trabalho escravo, superexplorado", denuncia Sidnei Marco Dornelas, pesquisador do CEM (Centro de Estudos Migratórios), que atua ao lado do Serviço Pastoral dos Migrantes. Ele conta que a "peonagem" na Amazônia é formada principalmente por camponeses nordestinos recrutados para desmatar as grandes fazendas. "A maioria são homens que já chegam devendo a passagem de ida. Como dependem do armazém local, a dívida vai sempre aumentando", relata Dornelas.

No geral, antes de se arriscar a longas distâncias, o brasileiro tem procurado um lugar mais próximo à sua origem. "A migração intra-regional vem aumentando em todas as regiões", destaca Lucia. A pessoa sai do interior, tenta uma cidade vizinha maior, depois vai para a capital do seu estado e, só por último, tenta outra região. De preferência, onde conheça alguém que possa apoiá-la. Mas parece que está cada vez mais difícil encontrar um local onde "arranjar trabalho e um canto para morar para poder trazer a família".

"A precarização do trabalho está se estendendo", diz Dornelas. Para o migrante, a incerteza e instabilidade aumentam. O pesquisador dá o exemplo do jovem que sai do vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, trabalha seis meses num canavial em São Paulo, depois tenta um biscate no Guarujá ou outra praia turística qualquer e então volta para casa, onde fica até a próxima safra. Uma história que se repete nas culturas de café, algodão... no Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Paraná.

Para Dornelas, é o trabalho temporário, ao lado do esgotamento das grandes cidades, que está levando o brasileiro a buscar novos destinos. "Claro que há uma atração por novas realidades, principalmente por parte dos jovens. Mas a causa definitiva da migração é a luta pela sobrevivência." Dornelas esclarece que não significa "ir ou morrer" – uma escolha já vivida por muitas famílias retirantes do sertão nordestino. "Mas ir ainda é o único meio de juntar dinheiro para se casar, construir uma casinha ou comprar um pedaço de chão. É a única esperança de melhorar de vida."

Brasileiro x brasileiro

Deixar sua origem, chegar a um local estranho, recomeçar. Uma trajetória muito repetida, mas sempre difícil. Entretanto, para Valdiran Ferreira dos Santos, do Serviço Pastoral dos Migrantes, a parte mais sofrida da história é não ser aceito nem respeitado no novo destino. "Um Brasil se acha superior ao outro", alerta Santos, que atua junto à comunidade nordestina de São Paulo. Esse é apenas um dos projetos coordenados pelo Serviço Pastoral dos Migrantes, ligado à Igreja Católica, que também está presente no interior do país e nas fronteiras agrícolas.

"Toda sujeira, violência ou até mesmo a falta de emprego passa a ser culpa do migrante", ressalta Santos. Ele aponta que a luta de um brasileiro por uma vida melhor não é valorizada pelos outros brasileiros. "O esforço e a coragem dos imigrantes estrangeiros que chegaram ao Brasil décadas atrás", completa Dornelas, "são encarados de forma diferente. Sempre merecem admiração." Entretanto, os migrantes do próprio país parecem incomodar. "Trabalhadores não qualificados sempre fizeram parte do nosso modelo econômico, mas agora o excedente fugiu de controle", avalia a socióloga Lucia Bógus. Dessa forma, a rejeição aumenta e até surgem as idéias de extermínio.

"Em São Paulo, o preconceito é tanto que muitos nordestinos acabam tendo vergonha e medo de ser o que são", destaca Santos. "A música e dança do norte ou nordeste chegam ao sul por meio da mídia. Nunca é uma troca cultural com os migrantes que moram na região." Por isso, um dos pontos-chaves do trabalho da Pastoral dos Migrantes na capital paulista é o resgate da identidade cultural de cada grupo. "Tentamos estimular que a comunidade se reúna, se apóie, mantenha viva sua memória, suas festas e religiosidade", conta Santos. E essa nova postura já está sendo conquistada pouco a pouco.

Em julho do ano passado ocorreu o Primeiro Encontro dos Migrantes Alagoanos em São Paulo, a maioria moradora do bairro de Perus. Em outubro, outro evento reuniu pessoas provenientes de Canudos (BA). (Só no bairro de Santo Amaro vivem mais de cem famílias dessa cidade). Os migrantes piauienses, por sua vez, já realizaram dezesseis encontros. Uma vez por mês também se reúne um grupo de empregadas domésticas, todas mulheres negras vindas do vale do Jequitinhonha, no norte de Minas Gerais. "Não estamos criando grupos isolados, mas sim unidos e solidários", esclarece Santos, sem perder a esperança. "Quem sabe assim o migrante conquiste um novo espaço na cidade, e o sonho de vida melhor se torne menos distante."

 


Boi paulista

Migrantes mantêm tradições maranhenses em bairro de São Paulo

Pelo menos em um bairro de São Paulo os nordestinos mostram que podem ser acolhidos com respeito e que têm alegria e sabedoria a oferecer. Há quatro anos, um grupo de maranhenses faz o bumba-meu-boi nascer, morrer e ressuscitar também na capital paulista. A festa chegou ao Morro do Querosene, na zona oeste, pelas mãos, pés e coração do artista maranhense Tião Carvalho, que vive há mais de 16 anos na cidade.

"A cantoria começou em casa. Logo, chegava um amigo, vinha um vizinho... saíamos para tocar na rua... e a festa conquistou a praça", lembra o artista. A última grande festa aconteceu em novembro passado – a morte do boi. Agora, todos esperam sua ressurreição para a alegria continuar.

Os ensaios se repetem durante todo o ano, dirigidos pelo Grupo Cupuaçu, que há uma década tenta mostrar a arte nordestina para o resto do país. Nos dias de festa, a vizinhança se mistura com os paulistanos de vários bairros que vêm saborear, muitas vezes pela primeira vez, a dança e a música do outro lado do Brasil.

Debaixo da árvore no centro da praça bem no alto do morro, as matracas, simples instrumentos de madeira, começam a soar. Todos são convidados a dançar e brincar com o boi, que entra faceiro na roda. Ele dança no ar, iluminado pela luz da fogueira, que além de tudo aquece o couro dos pandeiros. À tarde, é a vez dos meninos e meninas festejarem o boi-mirim. Já à noite o boi-bumbá cumpre seu ritual até o amanhecer.

"Estamos tentando apresentar o que é nosso, algo diferente para muita gente", conta Tião Carvalho. Vestido de azul, ele comanda a festa. "Queremos fazer da tradição uma manifestação atual." As mães aplaudem os filhos que aprenderam a dançar e cantar como elas faziam na sua terra. Um pai maranhense pede as matracas emprestadas a um dos tocadores do grupo e as apresenta a seu filho. "Ele nunca tinha tocado, mas está vendo? Logo se vê que é filho de maranhense", orgulha-se o pai ao ver o menino animado na roda. Paulistanos, maranhenses e outros brasileiros se misturam na festa.

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