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Um negócio de gente grande

por Miguel Nítolo

Depois de 14 anos, o Brasil teve a primazia de ser novamente escolhido para sediar o encontro anual da indústria mundial do ramo, o governo ergueu barreiras alfandegárias para inibir a concorrência imposta pelo produto alienígena e a feira anual das empresas do segmento, realizada em São Paulo, propiciou aos expositores a comercialização, durante o evento, de R$ 1 bilhão. A agenda do mercado brasileiro de brinquedos, definitivamente, está ganhando volume e ampliando seus horizontes, revelando uma força até então inédita e atraindo olhares de dentro e de fora do país. E já não se pode afirmar que o setor, que deverá crescer entre 10% e 15% este ano, é uma peça menor da gigantesca engrenagem que move a economia da nação.

Ao contrário, a comercialização de brinquedos é hoje tão expressiva quanto o desempenho de um sem-número de outros ramos, com a vantagem de que, entra ano sai ano, tem demanda sempre garantida. Em 2010, de acordo com a Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq), o setor movimentou R$ 3,1 bilhões (um avanço de 11% em comparação com o resultado do ano anterior), volume que poderá alcançar R$ 3,6 bilhões em 2011. “Estamos em festa”, disse, em outubro do ano passado, o presidente da entidade, Synésio Batista da Costa, em seu pronunciamento no Palácio do Planalto. Costa foi a Brasília para entregar ao então presidente Lula o brinquedo número 1 bilhão oficialmente fabricado no país. “Estamos há alguns anos sem fechar fábricas, a produção local continua firme e o setor representado pela Abrinq, composto de 406 indústrias, dá emprego a 26 mil pessoas.”

Segundo Costa, a meta das empresas do ramo é investir R$ 200 milhões na modernização das linhas de produção e promover o lançamento de novos produtos. Por exemplo, na 28ª Feira Brasileira de Brinquedos (Abrin 2011), que, em abril último, reuniu 200 expositores numa área de 35 mil metros quadrados no Expo Center Norte, na capital paulista, foram apresentados aos 16 mil profissionais visitantes 1,5 mil novos brinquedos, boa parte deles de manufatura nacional. Vale lembrar que a Abrin é a terceira maior exposição do gênero no mundo.

Um exemplo da gana com que o setor tem procurado surpreender o mercado com novidades foi dado pela Estrela, a maior do setor no país, que apresentou exatos 189 lançamentos. A empresa informa que foram desembolsados R$ 5 milhões na empreitada e que outros R$ 15 milhões serão destinados à área de marketing. “Projetamos crescer 20% este ano, apostando em nossa tradição e qualidade”, diz o presidente da Estrela, Carlos Tilkian.

A renovação e a inventividade têm sido amplamente estimuladas. Veja-se a iniciativa da Espaço Palavra Editora, responsável pela publicação da revista “Espaço Brinquedo”, que criou um concurso para elaboração de brinquedos que despertem o interesse das fábricas brasileiras do setor. Marici Ferreira, diretora da Espaço Palavra, afirma que o aspecto mais relevante do concurso, já em sua sétima edição, é fazer com que estudantes e profissionais pensem em brinquedos e criem novas possibilidades para o mercado.

Objeto de desejo

Animado com as boas perspectivas que parecem estar se abrindo para a indústria brasileira, o presidente da Abrinq chega a filosofar. No encontro com Lula ele pontificou que “o brinquedo é supremo, algo que nunca ninguém, nenhuma crise, nenhum governo, nenhuma guerra, religião, catástrofe, constituição, família, nada – mas nada mesmo – jamais conseguiu proibir, impedir ou eliminar. Ele está acima de tudo, é unanimidade em todos os idiomas, enfim, o objeto de desejo que contribuiu para materializar a genética da criança: a vontade de brincar.”

O contraponto desse cenário de expectativas, segundo os empresários que labutam na área, é a desembestada importação de brinquedos, especialmente da China, nação que caminha para se converter na maior potência econômica mundial. “A principal dificuldade das indústrias nacionais é competir com os preços dos produtos chineses”, observa Carlos Tilkian. Ele sustenta que a brutal diferença de custos existente entre os brinquedos feitos aqui e os confeccionados lá fora é causada por fatores de ordem econômica e não empresariais. “É sabido que os conterrâneos de Hu Jintao desfrutam de condições bem diferentes e mais privilegiadas que as nossas e, certamente, não me refiro a competência de gestão, tecnologia ou qualidade de sua mão de obra”, diz Flávio Haas, diretor administrativo e financeiro da gaúcha Xalingo, no mercado desde 1947, com quase 500 funcionários e responsável pela fabricação de 850 itens – entre eles triciclos, jogos e bolas, além de artigos destinados ao setor agrícola.

O presidente da Abrinq destaca também que, enquanto o brinquedo fabricado no Brasil chega às lojas carregando em seu preço final 42% em impostos, na China os encargos não atingem 13%. “É uma concorrência, no mínimo, desleal e contrária aos interesses do país, que o governo deve rever a bem dos consumidores, dos trabalhadores e das empresas brasileiras”, diz. Definitivamente, não tem sido fácil disputar o mercado com os artigos chineses, que ainda usufruem das vantagens proporcionadas por um câmbio sabidamente artificial (que mantém o yuan desvalorizado, aumentando a competitividade da produção local) e uma força de trabalho ainda mais barata que a nossa.

Fato é que a cotação irreal da moeda chinesa tem criado embaraços a uma infinidade de segmentos empresariais ao redor do mundo. No Brasil, por exemplo, é sobejamente conhecida a inquietação entre as fábricas de calçados e tecidos, que tiveram de amargar – e ainda amargam – o fechamento de linhas de produção e o encolhimento do quadro de funcionários. E ninguém escapa porque, simplesmente, não é possível se esconder.

Tilkian acentua que abrir o mercado sem estar pronto para fazer o controle de preços e de qualidade dos produtos importados, e além disso sem viabilizar investimentos para que as indústrias locais pudessem se preparar para esse novo nível de concorrência “foi um erro lamentável que levou à perda de muitos postos de trabalho desnecessariamente”. A volumosa participação do produto chinês no mercado brasileiro não deixa de dar razão a Tilkian. De acordo com a Abrinq, 55% da oferta do setor está nas mãos dos fabricantes asiáticos, um percentual francamente assustador e que já é superior a 90% em algumas nações vizinhas.

Curiosamente, uma parte do que é trazido de fora tem a indústria local como importadora. Dizem que essa teria sido uma das saídas encontradas para o parque fabril não encolher ou, numa situação mais crítica, ser riscado do mercado. A própria Estrela teve de lançar mão dessa estratégia para não perder terreno, terceirizando parte de sua produção na China. “Resta-nos procurar nichos de mercado, transferir produção e, consequentemente, criar empregos na China a fim de manter nossas empresas vivas”, diz Tilkian. Ele revela que 40% do faturamento atual da empresa vem dos brinquedos trazidos de fora. “Mas vamos reduzir essa participação em 10% ainda neste ano e, para 2012, a ideia é fazer com que menos de 20% das vendas sejam representadas pelos importados.” O presidente da Estrela pondera que se determinado produto foi feito aqui ou na China é algo com que o consumidor não está preocupado. “Se o governo federal também não está, por que então só nós, industriais, deveríamos estar?”, ele pergunta.

Corte nos impostos, juros mais baixos e linhas de financiamento atrativas, três dos inúmeros pedidos que, em nome da competitividade, são rotineiramente endereçados ao governo, quase nunca rendem as respostas esperadas, mas surtiram efeito no caso da elevação das taxas de importação de brinquedos. Passado o Natal, em 2010, a Câmara de Comércio Exterior decidiu atender aos reclamos do setor, aumentando de 20% para 35% a alíquota de uma série de itens, como bonecos, jogos de montar, carros, instrumentos musicais de brinquedo, patinetes, quebra-cabeças, trens elétricos, triciclos e outros artefatos motorizados.

Pirataria

O que pensa disso a Mattel, gigante mundial do ramo e que traz de fora parcela ponderável de tudo o que comercializa no país? “A empresa está trabalhando para adaptar sua operação local à nova alíquota”, diz Ricardo Roschel, diretor de operações do braço brasileiro da companhia. Ele declara, no entanto, que prefere discutir medidas desenvolvimentistas que sirvam para fortalecer o mercado como um todo. “Por exemplo, foram ampliadas as linhas de classificação fiscal, e o imposto de importação de partes e peças foi reduzido para 2%. Essas são medidas que, acreditamos, ajudarão muito o setor e, por isso, contam com nosso integral apoio”, assinala Roschel.

O diretor da Mattel do Brasil – empresa multinacional presente há mais de 20 anos no Brasil e com forte atuação local – aponta a pirataria como uma das maiores dificuldades enfrentadas pela indústria brasileira de brinquedos. Lembrando que essa atividade criminosa gera muito mais do que prejuízos financeiros, ele garante que a companhia investe significativamente na erradicação de práticas irregulares nos setores em que seus produtos estão presentes.

Roschel destaca que, para a Mattel do Brasil, este é um excelente momento, referindo-se ao crescimento interno das vendas da companhia, que comercializa aproximadamente 200 milhões de itens por ano com suas marcas. “Desse total, cerca de 50% são produzidos em solo brasileiro por uma rede de parceiros (60 empresas), gerando emprego, receita e renda para o país”, esclarece. Fazem parte de seu portfólio marcas como Barbie, Hot Wheels, Max Steel, Polly, Little Mommy, UNO e Fisher-Price.

Concorrência dos chineses, esse é o bordão. Mas será que todos os fabricantes de brinquedos, indistintamente, estão amargando em toda a sua amplitude a rivalidade imposta pelos produtos fabricados no outro lado do mundo? Em tese, sim, mas, na prática, não. “É claro que essa competição tem de alguma maneira atrapalhado meus negócios, mas não na dimensão experimentada pelo grosso do setor”, afirma o empresário paulista Marco Antônio Ares, da Ares Plast, firma com 35 funcionários dedicada à produção de brinquedos populares de polietileno 100% reciclado. “Os chineses me criaram problemas, sim, porém anos atrás, quando seus produtos não tinham a sofisticação de agora, eram mais triviais”, diz.

No mercado desde a década de 1970, a Ares Plast nadou contra a maré nesses anos, deixando de refinar sua linha de brinquedos porque sempre pôde contar com um mercado francamente comprador constituído, em sua maior parte, por consumidores de baixo poder aquisitivo. E graças a essa estratégia acabou como uma das poucas indústrias brasileiras especializadas na oferta dessa modalidade de produtos. “São 22 itens, entre bonecos, carros e alguns utensílios domésticos (canecas, garrafas e saboneteiras), com preços unitários que vão de R$ 1 a R$ 3”, esclarece o empresário.

Os bonecos da Ares Plast, com 24 a 60 centímetros de altura, respondem por 93% das vendas e têm mercado garantido especialmente no norte e nordeste. Marco Ares revela, todavia, que está trabalhando no projeto de novos produtos (bonecas de vinil, por exemplo), porque entende que, depois de décadas de boas vendas, seus bonecos podem estar com os dias contados. E isso não tem nada a ver com os chineses, mas com o aumento da renda do brasileiro. Com mais dinheiro no bolso, é compreensível, as pessoas tendem a comprar brinquedos de maior valor.

A elevação da taxa de importação pode não fazer, neste momento, grande diferença para indústrias como a pequena Ares Plast; todavia, alegam os enfronhados, será de capital importância para empurrar mais à frente os negócios do setor. “A meta é ganhar quanto for possível de participação no mercado, recuperando parte do que os brinquedos vindos do exterior tiraram dos fabricantes nacionais” avisa Synésio Costa. “Agora será mais vantajoso trazer de fora apenas os componentes de brinquedos”, observa Carlos Tilkian. O presidente da Estrela aproveita para passar um esclarecimento no tocante à competência da indústria brasileira em relação ao fornecimento de brinquedos eletrônicos. Ele diz que a alegada falta de competitividade nessa área não se dá por questões de capacidade de oferta, máquinas, desenho industrial ou qualquer outro fator ligado à produção. “Há nisso um erro de informação. O Brasil produz brinquedos eletrônicos, sim, pois fabricamos bonecas, carrinhos, produtos pré-escolares e muitos outros itens equipados com eletrônica embarcada.” O que não fazemos aqui, diz ele, são os chips eletrônicos. “Quem fabrica é Taiwan, que vende para a China e também para o Brasil”, conclui.

Se o câmbio não atrapalhar – a desvalorização do dólar pode pôr a perder os pretensos ganhos que o setor tenciona auferir com a taxa de importação a 35% –, as fábricas de brinquedos planejam pisar forte no acelerador e dar corda a seus projetos de expansão. A bem da verdade, mesmo com a concorrência externa tolhendo seus passos, o setor já vinha investindo. O número elevado de lançamentos na Abrin 2011 não deixa dúvidas quanto a isso, da mesma forma que as notícias sobre o aumento da área fabril das empresas.

A Estrela, por exemplo, está prestes a colocar em atividade sua mais nova filial, mediante investimentos de R$ 8 milhões. Ela fica no município sergipano de Ribeirópolis, de 17 mil habitantes, e saiu do papel com o propósito, segundo Tilkian, de atender o crescente mercado consumidor da região em condições de competitividade com os produtos chineses, graças à economia no valor do frete.

Até mesmo a Mattel estaria pensando seriamente em fabricar internamente alguns de seus campeões de vendas. Nas últimas semanas a imprensa noticiou que a empresa estuda produzir no país a Barbie, as bonecas Little Mommy, os carrinhos Hot Wheels e jogos de tabuleiro. Segundo Roschel, os estudos de viabilidade vão indicar quais itens serão feitos no país com competitividade para abastecer o mercado brasileiro e, eventualmente, ser exportados.

A despeito de todas as adversidades, o mercado de brinquedos no Brasil ganhou músculos e hoje assiste à expansão do segmento varejista, parte por conta do aumento do poder de compra do brasileiro, parte – dizem os empresários do ramo – devido à avalanche de brinquedos made in China. Isso sem falar, é claro, da fartura de itens oferecidos pela indústria nacional. São 6 mil pontos de venda, muitos deles nas mãos de redes que começam a estender seus tentáculos Brasil afora. A Ri Happy, a maior delas, que opera 106 lojas (apenas duas são franqueadas), espera faturar este ano R$ 750 milhões – R$ 65 milhões a mais que em 2010 – e, segundo Ricardo Sayon, seu diretor comercial, chegar a 150 unidades comerciais até 2015. Já a PBKIDS, a segunda no ranking do setor, com 55 lojas e faturamento estimado de R$ 270 milhões em 2011, planeja abrir mais nove pontos comerciais até o final de 2012, como revela seu diretor comercial, Celso Pilnik. “O mercado de brinquedos é caracterizado pela diversidade e pela sazonalidade acentuada, com 75% do faturamento concentrado no quarto trimestre”, explica Aires Leal Fernandes, diretor de marketing da Estrela. Ele acrescenta que esse é um ramo em que os produtos têm ciclo de vida muito curto e que por isso demanda muitos lançamentos. Além disso, atende a um público itinerante e que é substituído rapidamente. Trocando em miúdos: fabricar brinquedos não é para amadores.