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Vírus da poesia contamina periferia

por Mauricio Monteiro Filho

Numa quarta-feira de abril último, pela quinta vez, o céu do Jardim Guarujá, na zona sul de São Paulo, foi tomado por objetos voadores identificados e assinados. Foram centenas de balões lançados ao ar, cada um carregando um poema da lavra dos frequentadores do sarau da Cooperativa Cultural da Periferia (Cooperifa). Como uma versão urbana das mensagens em garrafas que cruzam oceanos, os balões criavam um contraste necessário aos únicos objetos que singram o espaço aéreo da periferia, segundo a maior parte da mídia: as balas perdidas. A mobilização leva o nome de Poesia no Ar e é apenas um dos muitos eventos promovidos pelos organizadores do sarau, que, em outubro, celebra uma década de existência.

Poucas coisas irritam mais Sérgio Vaz, o idealizador dessa e de muitas outras badernas poéticas, que a insistência em taxar a periferia de palco de violências sem fim. No começo de um sarau em junho, ele enumerou uma longa agenda de comemorações pelos dez anos da Cooperifa. “Olha aí, só boa notícia. Não sei como o Datena ainda tem programa”, ironizou.

Vaz, porém, percebeu que o melhor antídoto ao preconceito é não reproduzi-lo. E que importa muito mais para a periferia a maneira como ela própria se enxerga do que a visão de quem está do outro lado da Ponte do Socorro.

Por isso, as quartas-feiras de sarau têm um ar de ritual, com o objetivo de elevar os presentes até que eles mesmos se sintam balões inflados de poesia. As leituras só começam depois de rodadas de palavras de (des)ordem, como “Povo lindo! Povo inteligente!” e “Uh! Cooperifa! Uh! Cooperifa!”, repetidas em coro por todos.

Em vez de emular os eventos culturais comportados da elite, o que Vaz quer é que cada pessoa da plateia entenda que a poesia lhe pertence. Porém, sem nunca se esquecer de que está, sim, na periferia e que não é maior nem menor por isso, apenas diferente.

Essa diferença garante boa parte do sucesso da Cooperifa. Afinal, poucos eventos dessa natureza podem se gabar de ter conquistado um público tão fiel, tanto entre moradores do bairro e região, como entre paulistanos das mais diversas e distantes áreas, que enfrentam os nós do trânsito em pleno horário de rush para chegar pontualmente às 20 horas e 30 minutos, a tempo de ouvir a frase mais importante do sarau, que marca seu início: “O silêncio é uma prece”.

Ouvir vale ouro

Poucos respeitam tanto essa liturgia do silêncio como Edmauro Teixeira. “Falar vale prata, ouvir vale ouro”, sentencia. Ele frequenta o sarau há nove anos e hoje acompanha Sérgio Vaz à grande maioria dos eventos para os quais ele é convidado. Muito mais que uma distração da rotina, a Cooperifa significou para Cocão uma mudança radical no rumo de sua vida.

Desde 1999, ele tem um grupo de rap, mas, no início, não conseguia se dedicar tanto quanto gostaria a escrever as letras. Em 2002, um amigo da Cohab do Jardim São Luís, onde mora, lhe falou do sarau. “Cheguei suave, só observando”, lembra, sobre sua primeira visita. Desde aquela vez, faltou apenas em duas ocasiões. Foi definitivamente contaminado pelo vírus da poesia.

Ele trabalhava como preparador químico de autopeças. O emprego envolvia o tratamento de metais com uma longa série de substâncias, numa ordem determinada. Para a maioria dos funcionários, isso consumia todas as oito horas da jornada diária. Edmauro, no entanto, dono de uma memória invejável, que lhe rendeu o apelido de Cocão, criou um método que reduzia o tempo de trabalho a menos da metade. Tudo para poder aproveitar umas três ou quatro horas para compor, num canto quieto da fábrica. “Eu trampava a milhão, com fone no ouvido, para depois ficar em paz no rap”, conta.

Isso lhe deu segurança para enfrentar o microfone do sarau. “Eu não tinha coragem de declamar. Cantando, era normal, mas, na primeira vez [em que falou na Cooperifa], entrei tremendo”, recorda.

Valeu a pena. A plateia do sarau sempre recebe visitantes ilustres. Numa noite, em 2008, um deles era Mano Brown, do Racionais MC’s, mais importante grupo de rap brasileiro. Na ocasião, Cocão assumiu o microfone para declamar “Nu Deserto”, uma de suas criações:

“Demônios na garoa
E nóis na tempestade
No brilho e no breu
Nos acasos da cidade
Cidade mente sã
Mantenha os olhos abertos
São anos e anos
Na escuridão do deserto.

No deserto é triste
Quem é fraco desiste
No deserto é triste
Quem é fraco desiste”

Os versos burilados por anos de exposição aos talentos que passam pelo palco do sarau impressionaram Brown. No fim da noite, ele chamou Cocão de lado e disse: “Vamos gravar?” O convite engatilhou a decisão de Cocão de largar o emprego na fábrica para se dedicar apenas ao rap e ao trabalho como produtor musical. E, claro, à Cooperifa. “Mas o sarau não é trampo. É vitamina pro meu sangue”, rebate ele.

Hoje, Cocão é figura fácil no palco, com versos que são rap e vice-versa. E, como ele, muitos artistas desse e de outros gêneros já reconhecidos ou a caminho do sucesso se lançaram no microfone da Cooperifa. Criolo, o rapper que está explodindo com o álbum Nó na Orelha, já passou por lá. Gaspar, F.I.N.O., Wesley Noog e NSN, menos conhecidos, mas não menos talentosos, são outros exemplos.

O próprio grupo de Cocão, o Versão Popular, se consolidou em torno da Cooperifa. No início, ele se chamava Sentença Criminal. O contato com a poesia, contudo, fez Cocão abrir o dicionário em busca de um nome mais potente, que rompesse com a escrita da violência e do crime. “Gostei de ‘versão’, por todos os sentidos da palavra”, conta.

A convivência próxima fez com que Cocão elegesse Vaz como ídolo. “Ele é o Brown da poesia”, diz. O criador da Cooperifa, por sua vez, revela que seu maior objetivo com o sarau é ver as pessoas buscando o próprio caminho. “Isto aqui é um lugar de passagem, um dínamo. A gente não embala adormecidos, desperta-os. Tenho orgulho de saber que alguns voltaram a estudar por causa da Cooperifa”, declara. Por isso, por contraditório que pareça, às vezes a alegria dele é perceber a ausência de certos frequentadores, quando sabe que é por esse motivo – ele mesmo não tem curso superior, algo de que sente falta.

Universidade da periferia

É possível que os conhecimentos de que Vaz necessita para manter a Cooperifa de pé e bem-sucedida após tantos anos e mesmo para escrever seus versos poderosos não estivessem na sala de aula. Talvez sua maior escola seja mesmo a periferia.

Sérgio Vaz começou a trabalhar aos 12 anos, no bar de seu pai, onde hoje funciona o sarau. “Aqui era minha senzala. Hoje, me liberta”, afirma. Foi criado numa família simples, mas seu pai era um leitor voraz, que lhe transmitiu o gosto pela literatura. Por isso, ele se define como alguém que sempre foi poeta.

Colecionador de referências, até do serviço militar soube extrair cultura. Quando adolescente, gostava mais de música black, mas foi conhecer a MPB com outros recrutas, em 1983, inspirado por uma versão de Simone da canção Para Não Dizer que Não Falei das Flores, de Geraldo Vandré.

De poesia, bebeu em Neruda – “Sempre fui panfletário” –, García Lorca e Ferreira Gullar. Jogador de futebol de várzea, chegou a se envergonhar dos versos. “Poesia não tem uma pegada masculina”, justifica. Porém, mestre no ofício de quebrar preconceitos, persistiu. Em 1988, lançou Subindo a Ladeira Mora a Noite no mesmo bar onde trabalhou quando criança, com direito a muita salada de maionese e frango frito, para não perder o vínculo com a comunidade.

Nessa e nas outras seis obras que se seguiram – a última, Literatura, Pão e Poesia, lançada em 5 de agosto –, a substância mais crua dos versos veio sempre da periferia. São os becos e vielas, e o povo que os habita, que determinam tema e ritmo de sua criação. “Meu bairro é meu mundo. E eu o levo na veia”, define.

Aos 37 anos, sua vocação para agitador falou mais alto. Tomando cerveja num bar que frequentava, teve a ideia de reunir pessoas num espaço para ler poesia e desenvolver outras atividades, como teatro, música e capoeira. “Eu não sabia nem o que era sarau”, conta. Em 2002, encheu de cultura uma fábrica abandonada em Taboão da Serra, município onde vive até hoje.

Na primeira edição da Cooperifa, 17 pessoas, entre as quais meia dúzia de poetas, estiveram presentes. Cada um leu por volta de 15 poemas. A partir dali, Vaz foi angariando mais público quase na base da intimidação. Dizia aos amigos: “Tu não falou que gostou do meu trampo? Se não aparecer lá, tá ferrado”, diverte-se.

O sarau funcionou por um ano na fábrica em Taboão, até que o destino reuniu Vaz e o bar onde ele havia trabalhado quando garoto. Desde então, o povo lindo e inteligente declama seus versos no simpático boteco do Zé Batidão.

Oportunidade de aprender

O espaço é um capítulo à parte na história da Cooperifa. Do alto do morro onde fica o bar, o cenário que se descortina é o cartão-postal tradicional da periferia: um mar de casinhas simples, de tijolos à vista. Tomando toda a esquina, no número 797 da Rua Bartolomeu dos Santos, o boteco parece tão tradicional quanto a vizinhança. Empanados e salgadinhos típicos na vitrine sobre o balcão, cerveja sempre gelada, conversa animada e paredes despretensiosas. No meio do salão, uma grande árvore destoa da simplicidade do ambiente.

Quem conversa com o dono do estabelecimento, José Claudio Rosa, o Zé, tem certeza de que ele foi feito para ser dono de um bar como aquele. Ele tem um papo fácil, com sotaque mineiro arrastado, que inspira simpatia desde o “bom dia”. E, assim como hoje o sarau representa a libertação para Sérgio Vaz, também rompe os grilhões de Zé.

Ele nasceu e se criou em Piranga (MG), numa fazenda de 500 alqueires onde se plantava feijão, milho, café e cana-de-açúcar. “Na minha terra, fui escravo”, afirma. Junto com os pais, trabalhou até os 18 anos na lavoura sem receber nenhum centavo. Ainda por cima, era proibido pelo patrão de frequentar a escola. “Se você for, expulso seu pai daqui”, dizia o proprietário da fazenda. Revoltado com a situação, quando chegou à maioridade decidiu migrar para São Paulo. O patrão tentou impedi-lo: “Se você sair, as porteiras estão fechadas”. Ele respondeu: “Tudo bem. Eu não ia voltar mesmo”.

Hoje, quando vê seu boteco preparado para o sarau, as cadeiras de plástico em fila, voltadas para o palco, como numa sala de aula, enxerga ali também uma oportunidade de aprender, coisa que nunca teve. O contato semanal com a poesia e a influência de Vaz despertaram nele a vontade de narrar a própria história. “Tenho alguma coisa no papel. Falo e minha filha escreve. Vou fazer mais e depois lançar um livro”, relata. As experiências com texto ainda não garantiram sua estreia ao microfone, no entanto. “Nunca falei no sarau. Ainda não chegou o momento”, diz Zé.

Além do despertar de sua veia poética, a Cooperifa trouxe outros benefícios a Zé. Mais do que a ampliação da freguesia, ele acredita que mudou também a percepção das pessoas sobre a periferia. “Aqui era um lugar marginalizado, mas hoje olham pra gente por outro ângulo. Muitas pessoas da elite que vêm aqui até convidam a gente pra ir na área deles. O sarau, porém, só fazemos da Ponte do Socorro pra cá. Se quiserem ver, têm de vir até aqui”, diz.

Da comunidade para a comunidade

Um dos grandes objetivos de Sérgio Vaz com a Cooperifa era elevar o respeito que a comunidade tinha por si própria. Uma das maiores carências da periferia está na falta de espaços de cultura e lazer, de iniciativa pública ou privada.

“Aqui não tem eventos, não tem teatro. Então, a Cooperifa passa a visão de que a comunidade pode se reunir para fazer coisas boas. É um salto para nós. Não precisamos sair daqui pra nos divertir, pra ter cultura. Isso faz com que abracemos mais as coisas do bairro”, diz a estudante Natália Barbosa, de 17 anos, moradora do bairro Vila São Judas, vizinho ao do sarau.

“Em termos de cultura e arte, a periferia se basta. Economicamente, não sei se somos independentes, porque tem muita gente em emprego meia-boca. Mas o que precisamos de cultura está aqui”, afirma Vaz.

O próprio sarau gerou outra iniciativa importante nesse sentido. Criado há cerca de três anos, o Cinema na Laje, que ocorre quinzenalmente às segundas-feiras na laje sobre o bar do Zé Batidão, é uma sessão de cinema gratuita, que privilegia produções alternativas ou feitas pela própria comunidade. Além de oferecer a experiência do cinema para quem não pode pagar os preços exorbitantes das salas de shopping, é também um espaço de debates.

Numa segunda-feira gelada de junho, a tela foi improvisada no local do palco do sarau. Era o lançamento do documentário Uma Comunidade Dentro da Comunidade, sobre a roda de samba do bairro Monte Azul, também criada a partir da articulação dos próprios moradores. Após a exibição, o diretor, Jaime Lopes, o Diko, garantiu: “A gente só existe porque existe a Cooperifa”.

Vaz não gosta muito de ser alçado à condição de inspirador de outras ações semelhantes. Porém, é fato que, a partir da criação da Cooperifa, começaram a pipocar saraus pela cidade. Há o Sarau Palmarino, em Embu das Artes; o Sarau da Ademar, em Cidade Ademar; o Poesia na Brasa, na Brasilândia; o sarau da Vila Fundão; o Sarau Elo da Corrente; o Pavio da Cultura, em Suzano, e o Sarau dos Mesquiteiros, em Ermelino Matarazzo. “Acho que somos pioneiros. Há mais de 40 bares com experiências parecidas”, diz Vaz.

As próprias escolas foram incentivadas pela Cooperifa a desenvolver trabalhos similares. “Várias têm saraus. A minha tinha, e acho que foi por influência do Sérgio Vaz”, diz Natália, que já chegou a faltar à aula para ir à Cooperifa.

A contribuição de Vaz e de outros membros da Cooperifa não para por aí. Eles próprios levam versões do sarau à rede pública de ensino e se apresentam na Fundação Casa. Além disso, distribuem livros na comunidade e promovem a cidadania, como no momento do Ajoelhaço: nos saraus próximos ao Dia Internacional da Mulher, todos os homens presentes se ajoelham, pedindo perdão às mulheres pelo desrespeito contra elas cometido.

Atravessando a ponte

Assim como a Cooperifa faz os próprios moradores da periferia respeitarem mais sua comunidade, também estimula os habitantes das zonas mais ricas da cidade a conhecer seus versos. Políticos, intelectuais, artistas, músicos e escritores já estiveram na plateia do sarau. Alguns desenvolveram um elo ainda mais íntimo. “A Cooperifa é uma espécie de poesia viva. Literatura encarnada. Tenho uma relação de afeto com o sarau como espaço de ser”, diz Eliane Brum, documentarista, escritora e uma das mais premiadas jornalistas do Brasil.

Ela lançou sua primeira obra – A Vida que Ninguém Vê, da Arquipélago Editorial – na Cooperifa, em 2006. E acaba de repetir a dose com Uma Duas, da editora Leya, seu primeiro romance. “Fiz questão de lançar meu livro lá porque é uma relação amorosa. Sempre saio do sarau muito melhor do que entrei. Se chego superfeliz, saio super super superfeliz. A Cooperifa tem esse poder sobre quem se entrega a ela”, explica. “A segunda razão é que a periferia é um público leitor novo. Então, quero que as pessoas possam ter acesso ao que escrevo sem precisar ir a uma livraria do centro simbólico da cidade. Minha intenção é ser lida na periferia, quero que minhas palavras cheguem lá. Não apenas porque acredito nisso como cidadã, mas também porque se trata de um público que está crescendo.”

Na contramão, Vaz também se orgulha de disseminar a aventura da Cooperifa em outras paragens. Na edição deste ano da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), ele esteve presente. Na Off Flip, evento paralelo, realizou um sarau nos moldes da Cooperifa. E, dentro da programação oficial, ele esteve numa mesa discutindo a literatura da periferia com Cocão, Marcelino Freire e Rodrigo Ciríaco. Durante o evento, que homenageou Oswald de Andrade, houve gente dizendo que a noite de Vaz foi a mais oswaldiana de todas.