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Grande avanço, mas não suficiente

ECA completa 20 anos, mas falta muito para sair totalmente do papel

CARLOS JULIANO BARROS


Arte PB

Em julho deste ano, uma pesquisa de opinião realizada pelo instituto Datafolha ganhou ampla repercussão nos meios de comunicação de todo o país, embora não tivesse nada a ver com as eleições de outubro, como se poderia pensar a princípio. Perguntados se eram favoráveis ou contrários a um projeto de lei idealizado pelo governo federal que proíbe expressamente a aplicação de castigos físicos a crianças e adolescentes, 54% dos cerca de 10 mil entrevistados disseram não concordar com a medida defendida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva – apelidada sugestivamente de “Lei da Palmada”. O estudo revela dados ainda mais preocupantes: 72% das pessoas ouvidas disseram já ter sofrido algum tipo de violência física e pelo menos 16% afirmaram que essas punições ostensivas eram bastante frequentes. “A sociedade brasileira ainda tem uma cultura repressora que justifica a violência contra a criança até como forma de educação”, critica Siro Darlan, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ).

Os resultados da pesquisa Datafolha vieram a público no mesmo mês em que os órgãos da mídia também voltavam suas atenções para uma data histórica: o aniversário de 20 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Sancionada no dia 13 de julho de 1990, a atual legislação federal que trata especificamente dos brasileiros com até 18 anos de idade substituiu o retrógrado Código de Menores, de 1979 – exemplo cabal do “entulho autoritário” dos anos de chumbo da ditadura militar, na expressão do ex-deputado Ulysses Guimarães.

Em seus 267 artigos, o ECA discorre sobre os mais variados temas: desde as regras para a adoção, passando pelas condições que disciplinam o trabalho antes da vida adulta, até a estipulação de medidas socioeducativas aplicáveis no caso daqueles que infrinjam a lei. Aliás, esse último ponto é certamente o mais polêmico do estatuto, tendo em vista as não raras propostas de redução da maioridade penal. Porém, mais que uma simples atualização ou ajuste de texto, as mudanças trazidas pelo ECA significaram uma verdadeira revolução no modo de encarar a infância e a adolescência no país, reorientando por completo as políticas públicas destinadas a essa parcela da sociedade. “O ECA é a Constituição da população infanto-juvenil brasileira”, define o pedagogo Antonio Carlos Gomes da Costa, um dos redatores da legislação.

Sem sombra de dúvida, a principal transformação é mesmo de caráter ideológico: a partir do estatuto, buscou-se abandonar o estigma pejorativo que recaía – e ainda recai, diga-se de passagem – sobre os “menores de idade”, encarados como uma espécie de propriedade dos pais, que só despertavam a atenção do poder público em caso de abandono ou de violação da lei. Antes vistos como potenciais causadores de problemas e meros objetos de intervenção do Estado, crianças e adolescentes passaram, então, a ser enxergados como sujeitos cujos direitos devem ser assegurados com “absoluta prioridade”, como reza o artigo 227 da Constituição Federal de 1988.

“Absoluta prioridade, na prática, significa o seguinte: se uma criança entra em um hospital e existe um adulto na fila, a prioridade de atendimento é da criança. Não há direito que se sobreponha ao infanto-juvenil”, explica Ricardo Cabezón, presidente da Comissão de Direitos da Criança e do Adolescente da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP). Essa guinada de mentalidade – que, ressalte-se, ainda está longe de ser completada – alçou o ECA à condição de referência internacional. “É uma legislação pioneira. Equador, Colômbia, Costa Rica, diversos países buscaram na experiência brasileira a inspiração para uma lei mais completa sobre os direitos desse público”, explica Mario Volpi, gerente de projetos do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

O ECA, porém, não tem pautado apenas a agenda dos governantes. Pelo contrário, muito antes da aprovação do estatuto, já era bastante intensa a participação da chamada “sociedade civil organizada”. Na verdade, foi justamente a mobilização de um amplo leque de ONGs e entidades que permitiu que o estatuto fosse instituído. Não à toa, o Brasil também é reconhecido mundialmente pela pluralidade das organizações que se dedicam a essa causa – da Fundação Abrinq, criada por empresários do setor de brinquedos, à Pastoral da Criança, vinculada à Igreja Católica. Além de cobrar a atuação do poder público, essas entidades despertam a atenção da sociedade como um todo, principalmente ao influenciar a forma como a imprensa encara o assunto. Prova disso é um levantamento feito pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi) no conteúdo editorial dos 45 maiores periódicos impressos do país. Para se ter uma noção de como a questão ganhou importância, em 1996, quando a Andi iniciou o monitoramento, foram publicadas cerca de 10,7 mil matérias jornalísticas relacionadas a crianças e adolescentes. Em pouco mais de uma década, esse número pulou para 160 mil.

Além do avanço quantitativo, há uma clara evolução qualitativa no tratamento dos temas. “Expressões como ‘delinquente’, ‘vagabundo’, ‘criminoso’ eram muito utilizadas [em referência a adolescentes autores de ato infracional]. Na realidade, esses termos ainda são usados, só que mais raramente, por jornais em evolução editorial, com menos estrutura”, explica Daniel Oliveira, gerente do Núcleo de Mobilização da Andi. “Não se trata apenas de ser politicamente correto, já que essas expressões são acompanhadas de visões culturais preconceituosas”, completa.

Apesar das notórias melhorias verificadas ao longo destas duas décadas de existência, a triste verdade é que falta muito para que as diretrizes do ECA saiam de fato do papel. O Estado brasileiro ainda falha sistematicamente na garantia dos direitos básicos de crianças e adolescentes. Basta lembrar, por exemplo, o escandaloso caso ocorrido três anos atrás da menina de 15 anos trancafiada em uma cela abarrotada de detentos, no município de Abaetetuba (PA), e que sofreu contínuos abusos sexuais, com a conivência de autoridades policiais e da Justiça paraense. “O que mais choca nesses 20 anos do ECA é o despreparo e a ineficiência do poder público na oferta de profissionais que atuam na área infanto-juvenil. É uma desqualificação generalizada”, critica Ricardo Cabezón, da OAB-SP.

Mudança de ideia

Quando foram lançados, no já distante ano de 1981, a canção O Meu Guri, composta por Chico Buarque, e o filme Pixote, a Lei do Mais Fraco, dirigido por Hector Babenco, causaram uma verdadeira comoção social ao denunciar de forma nua e crua as violentas entranhas das políticas públicas destinadas a lidar com a população nacional de até 18 anos. Naquela época, estava em pleno vigor o Código de Menores, que tinha como ideia central a chamada “doutrina da situação irregular”.

Resumidamente, o Estado brasileiro reconhecia quatro categorias de crianças e adolescentes que mereciam “atenção especial”, para usar um eufemismo: os abandonados, os carentes, os inadaptados e os infratores. Assim, quem se enquadrasse em qualquer um desses conceitos tinha destino certo: a famigerada Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), que mais parecia um depósito de jovens e crianças. “Quando o regime militar entrou em decadência, a chamada Política de Bem-Estar do Menor passou a sofrer graves denúncias. Começou, então, a se criar na consciência nacional uma mentalidade crítica em relação a essa política e ao Código de Menores”, conta o pedagogo Antonio Carlos Gomes da Costa.

Com a redemocratização do país, a partir da segunda metade da década de 1980, setores da sociedade civil se organizaram para pautar a questão do respeito aos direitos da criança e do adolescente na assembleia formada para redigir a nova Constituição Federal. Curiosamente, o artigo 227 – que seria regulamentado dois anos mais tarde pelo ECA – não surgiu da cabeça de nenhum parlamentar. Ele foi inserido no texto por uma emenda de iniciativa popular amparada por mais de 1 milhão de assinaturas recolhidas de norte a sul do país pelo Movimento Nacional dos Meninos de Rua e pelas pastorais da Igreja Católica, dentre outras entidades.

Segundo muitos especialistas, a redação desse artigo é considerada uma síntese exemplar da chamada “doutrina da proteção integral”, como ficou conhecido o espírito norteador da Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1989. “O Brasil foi o país que incorporou em sua Constituição os princípios que depois estariam na convenção, mesmo antes de aprovada. Então, o artigo 227 coloca que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar com prioridade absoluta o direito a saúde, educação e assistência, dentre outros”, explica Mario Volpi, do Unicef.

Conselhos tutelares

Como é possível, no dia a dia, garantir que os direitos das crianças e dos adolescentes sejam de fato assegurados com “absoluta prioridade”, como manda a Constituição? Para responder a essa pergunta, é preciso conhecer algumas estruturas criadas a partir do ECA. Com certeza, dentre os órgãos mais importantes figuram os conselhos tutelares. Apesar de ter sua estrutura atrelada às prefeituras, que devem reservar uma parte do orçamento municipal para sua manutenção, eles têm completa autonomia para atuar justamente na fiscalização das ações do governo e encaminhar denúncias de violação de direitos ao Ministério Público e à Justiça, até porque os conselheiros são eleitos a cada três anos com participação direta da comunidade e não têm – ou, em tese, não deveriam ter – vínculo com as administrações municipais. “Por exemplo, se uma criança não consegue vaga na escola, o conselho tutelar tem o poder de requisitar uma vaga. E ele é reconhecido como autoridade pelo ECA”, explica Fernanda Lavarello, coordenadora da Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced). “Ou seja, ele não está pedindo um favor, está requisitando o serviço, e o poder público tem a obrigação de atender”, acrescenta.

De acordo com o ECA, todo município brasileiro deve ter pelo menos um conselho tutelar. Uma pesquisa feita pela Andi mostrou que, em 2006, 19 das 27 unidades da federação não cumpriam essa exigência básica. No entanto, de lá para cá, esse quadro teve uma considerável evolução, e o número de conselhos cresceu 24%. Hoje, os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) são bem mais animadores: existem 5.772 desses órgãos espalhados pelo país, e menos de 2% das cidades brasileiras ainda não contam com essa estrutura. Isso, porém, não quer dizer que eles funcionem a contento – longe disso, por sinal.

Para se ter ideia de como a situação está longe do ideal, em Alagoas menos de um terço dos conselhos tutelares dispõe de linha telefônica. Além disso, embora o estatuto também determine que a remuneração dos conselheiros seja fixada por lei municipal, em muitos lugares eles não têm nem mesmo ajuda de custo. “Está claro no ECA que os conselhos tutelares precisam ser ouvidos na hora da elaboração da proposta orçamentária dos municípios. Porém, isso não acontece. Muitas cidades inclusive não têm uma estrutura que permita estabelecer os recursos que devem ser destinados diretamente a esses conselhos”, constata Clézio Freitas, do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) do Ceará.

Além das dificuldades financeiras e de infraestrutura, outro grave problema diz respeito à própria atuação dos conselheiros. A verdade é que muitos não têm a devida qualificação para exercer o cargo. Isso não tem nada a ver, convém dizer, com questões relacionadas a grau de escolaridade, mas principalmente com a falta de clareza quanto ao papel do órgão para o qual são eleitos. “Esse despreparo dos candidatos é um reflexo da falta de estrutura e de prestígio que a função tem, da remuneração inadequada, da desinformação da população”, pondera Antônio Pedro Soares, advogado que também integra a coordenação da Anced. Assim, em vez de atuar na defesa coletiva dos direitos de crianças e adolescentes, o conselho tutelar com frequência acaba se tornando um centro de recebimento de demandas pontuais e individuais. Às vezes, tem até seu papel desvirtuado e passa a ser visto como uma espécie de “polícia”, pronta a ser acionada quando uma criança deixa de frequentar a escola, por exemplo. “Ele se torna, contraditoriamente, aquele que persegue, e não o que protege”, conclui Soares.

Apesar de todos os problemas que vêm se arrastando nos últimos 20 anos, o advogado se diz um entusiasta dos conselhos tutelares. Essa visão é compartilhada pelo desembargador Siro Darlan, do TJ-RJ. “Há uma contradição muito difícil de superar. Se funcionarem em sua plenitude, eles irão denunciar a inexistência de políticas públicas, o que vai contra os interesses dos administradores municipais, que por sua vez têm o dever legal de incrementá-los”, explica o magistrado. “Porém, mesmo com essas deficiências, os conselhos tutelares já prestaram relevantíssimos serviços à causa da criança”, acrescenta Darlan. Além de sua atuação quando da já mencionada ocorrência da adolescente paraense violentada em uma cela no município de Abaetetuba, em 2007, ele cita outro evento bastante recente que chocou a opinião pública do país e que motivou a condenação, em primeira instância, da procuradora carioca aposentada Vera Lúcia Gomes a oito anos de prisão, acusada de torturar uma menina de dois anos que estava sob sua guarda, à espera de adoção. “Quem denunciou o caso foi o conselho tutelar”, enfatiza o desembargador.

Conselhos de direitos

Com a aprovação do ECA, em 1990, também foram criados espaços para fortalecer a participação da sociedade civil na formulação e no controle das políticas voltadas para crianças e adolescentes: são os chamados “conselhos de direitos”, que perpassam as esferas municipal, estadual e federal. Basicamente, eles são compostos por representantes do poder público e por militantes de ONGs e outras entidades que se reúnem periodicamente para discutir as mais variadas ações. Na capital paulista, por exemplo, o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) também é o responsável pela gestão de um fundo constituído a partir de doações dedutíveis do imposto de renda de empresas e pessoas físicas, cujo orçamento chegou a robustos R$ 124 milhões no ano passado. Porém, desse montante nada desprezível, menos de R$ 30 milhões foram efetivamente destinados a projetos sociais.

Além dessa expressiva verba que deixa de ser realmente investida, o representante da OAB – Ricardo Cabezón – questiona ainda os critérios da escolha de propostas contempladas pelo CMDCA. “Existe um programa de atendimento, que tem parceria com a OAB e o Ministério da Justiça, pelo qual já passaram mais de 50 mil vítimas de violência sexual. Então vem alguém e diz que o projeto não serve e propõe gastar uma fábula em um fim de semana para fazer um evento de jogos de computador”, reclama. O advogado também critica o que ele chama de “partidarização” dos conselhos municipais. “Se você coloca uma pessoa de um partido oposto ao do prefeito no CMDCA – que não deveria ser político-partidário, mas acaba sendo –, ela bloqueia todas as obras e projetos sociais que o prefeito tem naquela região”, afirma.

Em âmbito estadual, os conselhos de direitos também enfrentam sérios problemas. Apesar de reconhecidos no ECA como instâncias legítimas para a formulação de políticas públicas, muitas vezes suas decisões são solenemente desconsideradas pelo Poder Executivo. Um exemplo emblemático acontece no Rio de Janeiro, onde o governo estadual reluta, desde 2007, em cumprir a determinação de desativar o Educandário Santo Expedito, uma suposta unidade socioeducativa para adolescentes autores de ato infracional que funciona no interior do Complexo Penitenciário de Bangu. “O governo do Rio de Janeiro se recusa a publicar a decisão porque é ele quem controla o ‘Diário Oficial’. Portanto, não vai cumprir essa resolução nunca. Ele ignora o caráter deliberativo dos conselhos de direitos”, critica Antônio Soares, da Anced.

O educandário, transferido provisoriamente para o Bangu em 1997, encontra-se em total desacordo com as determinações do ECA, uma vez que o estatuto não reconhece o ambiente de um presídio como local adequado para a ressocialização de adolescentes. “Estamos falando de 20 anos de vigência do ECA e ainda vemos no Rio de Janeiro um sistema de prisão de adolescentes dentro do Bangu. O Ministério Público, que deve fiscalizar o cumprimento da lei, é conivente com isso. A sociedade, por sua vez, fecha os olhos para essa forma de violência, preferindo investir na repressão desses meninos”, critica o desembargador Siro Darlan, do TJ-RJ. Em sua avaliação, esse desrespeito à determinação do conselho estadual seria suficiente até mesmo para retirar do cargo as autoridades máximas do governo do estado. “Uma das modalidades de impeachment se relaciona ao não cumprimento de leis federais, e o ECA é uma delas. E, quando o ente público não acata deliberações do conselho de direitos, está descumprindo o ECA”, explica.

Para entender os problemas desse educandário localizado no Rio de Janeiro, é preciso subir ao terceiro degrau dos conselhos de direitos, chegando finalmente ao Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). Criado em 1991, ele tem a participação de 14 ministérios e de 14 entidades da sociedade civil eleitas a cada dois anos e é responsável por formular diretrizes a ser seguidas em todo o país. Uma das missões mais substanciais do Conanda foi a concepção do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), que traz basicamente um detalhamento das condições a que um adolescente autor de ato infracional será submetido em uma unidade de internação. “Deve-se assegurar o princípio socioeducacional. O adolescente está privado da liberdade, mas não dos direitos”, explica a psicóloga Maria Luiza Moura, presidente do Conanda. “O Sinase ordena que as unidades de internação não tenham mais de 40 internos, que haja uma equipe multidisciplinar e que o projeto tenha um plano pedagógico de trabalho. Ele é tão detalhado que traz até mesmo orientações arquitetônicas do espaço. Vivemos muito tempo sob a égide do Código de Menores, quando o adolescente era julgado como um marginal. Essas coisas mudaram, mas rupturas culturais ainda têm de ser feitas”, afirma Maria Luiza.

Conflito com a lei

Meses atrás, quando veio à tona o escândalo que envolveu Bruno, ex-goleiro do Flamengo, a participação de um adolescente de 17 anos no desaparecimento da modelo Eliza Samudio, ex-amante do atleta, trouxe de volta uma polêmica que invariavelmente retorna às manchetes dos jornais e às tribunas do Congresso Nacional em episódios desse tipo: a redução da maioridade penal. Sem dúvida alguma, o capítulo mais controverso do ECA é justamente o que trata das medidas socioeducativas aplicáveis no caso de adolescentes que cometem ato infracional. E é precisamente nesse trecho da lei federal que se pode perceber a enorme distância entre o que o estatuto apregoa e o que se verifica na realidade.

De acordo com uma pesquisa feita pela Secretaria de Direitos Humanos, do governo federal, pelo menos 40% dos adolescentes internados na Fundação Casa, a antiga Febem do estado de São Paulo, não deveriam estar lá. Isso porque o artigo 122 do ECA diz categoricamente que um adolescente só pode ser privado da liberdade caso o ato infracional cometido por ele constitua “grave ameaça ou violência à pessoa”, como um homicídio ou um roubo a mão armada.

Esse total descumprimento da lei, entretanto, não é privilégio, por assim dizer, da mais rica unidade da federação. Na verdade, trata-se de um problema disseminado por todo o país. Para os defensores dos direitos infanto-juvenis, esse dado revela como os juízes brasileiros continuam a se guiar pelas disposições do antigo Código de Menores, apesar de sua revogação já ter completado duas décadas.

“Temos um número elevado de internações, que eram a marca registrada do sistema antigo, porque grande parte dos juízes ainda as considera o caminho de ressocialização, de recuperação e de castigo. É uma questão de apego à doutrina anterior, de influência cultural de que a sociedade também está impregnada”, analisa o desembargador Siro Darlan. “Se 54% dos cidadãos são a favor da pancada como forma de educação, 78% dos juízes, ouvidos em pesquisa da Associação dos Magistrados Brasileiros, são a favor da redução da maioridade penal. Isso demonstra que há uma cultura que ainda não foi ultrapassada pelos juízes para que crianças e adolescentes venham a ser encarados como sujeitos de direitos em processo de desenvolvimento”, completa.

Baixar as taxas de mortalidade das crianças recém-nascidas, universalizar o acesso a escolas públicas de qualidade, erradicar de vez o trabalho infantil. Esses são apenas alguns exemplos dos diversos desafios colocados no papel pelo ECA que ainda precisam ser superados. “O Brasil fez uma opção: vamos investir no ser humano de até 18 anos. Porque, se migrarmos nossa atenção e nossos incentivos para uma pessoa nessa idade, a probabilidade de que ela dê retorno para a sociedade será muito maior do que se tentarmos recuperá-la depois”, conclui Ricardo Cabezón, da OAB-SP.

 

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