Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Carmen Junqueira

A antropóloga Carmen Junqueira é fundadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Em 1965, a pesquisadora pisou pela primeira vez no Alto Xingu para conhecer os índios kamaiurá. Fascinada com o encontro, passou a interagir intensamente com diversos povos indígenas.

A relação com os kamaiurá levou-a a definir sua produção como antropologia menor – retratada no recente documentário de Edson Passetti: Carmen Junqueira – Kamaiurá, a Antropologia Menor ?(TV PUC, 2010). Com boa parte da vida e obra dedicada à questão indígena, Carmen fala nesta entrevista à Revista E sobre o modo de produção, o matrimônio, a sexualidade, os rituais, entre outras experiências vividas com os índios kamaiurá e os cinta larga.

Quantas vezes você já foi para o Xingu?

Ah, não me lembro. Mas a primeira foi em 1965 e a última no ano passado. Houve um período em que, a partir de 1978, fiquei uns dez anos indo para o Cinta Larga [nome adotado pela Funai – Fundação Nacional do Índio – para se referir à população Cinta Larga, que se distribui por aproximadamente 33 aldeamentos, localizados entre o leste de Rondônia e o noroeste de Mato Grosso], até voltar para o Xingu de novo.

Como é sua rotina de trabalho de campo quando você fica no Xingu? Como é o seu dia a dia de pesquisa, de observação?

Isso vai mudando à medida que você fica cada vez mais familiarizado com eles, torna-se amigo, conhece todo mundo. Mas, no começo, tinha a rotina padrão de ficar sempre na casa do Orlando Villas Boas [sertanista brasileiro que dedicou a vida aos povos da floresta, 1914-2002], em 1965. Acordava e preparava o café pela manhã e depois disso ia mapeando as pessoas com quem queria falar. Por exemplo, na primeira vez, trabalhei com o sistema de poder, como eles organizavam o poder na aldeia.

Uma das características do Xingu era a prodigalidade, os chefes têm que ser sempre muito pródigos em distribuir presentes. Queria ver como se organizava o poder interno e como era a relação desses dois poderes, isso era minha tese de doutorado. Então se observa, conversa, porque não adianta querer fazer entrevista. Trabalhei muito com as mulheres, elas são boas informantes, embora na época elas não falassem absolutamente nada de português, e quando comecei não as entendia bem.

A conversa era gestual?

Sim. E eles entendiam um pouquinho de português por causa do Orlando, que era uma presença da língua portuguesa. Então dava. Tinha alguns garotos quando o Orlando chegou lá que aprenderam o português, porque a criança aprende rapidamente. Mas as mulheres eram mais tradicionalistas, então tinha muito gesto.

Como você foi definindo as suas áreas de trabalho com relação aos índios? Primeiro foi a questão das relações de poder, depois vieram outras. Como elas foram nascendo?

Essa primeira pesquisa foi a partir da situação da presença de não índios na área, e isso é sempre um fator de perturbação. A segunda pesquisa foi sobre a economia deles e me impressionou muito. Captei logo no começo da leitura do ambiente que os líderes, para manterem a liderança da casa ou de uma facção da aldeia, têm de redistribuir o que têm.

Por isso, sempre levava presentes quando chegava. Queria saber como funcionava a redistribuição. Eu entregava sempre para o chefe, que ficava com quase nada. Se ele não fosse esperto e escondesse – não sei se ele escondia, ele não ficaria com absolutamente nada. A generosidade era o suporte da liderança dele, mostrava que ele desejava o bem dos outros, que era despojado. Ele era o apaziguador, que não pode ser uma pessoa egoísta etc.

Estudei a economia porque pensei: “Minha mãe do céu, isso é um obstáculo fantástico para a entrada do capitalismo”. Porque impede a acumulação. Imagine você começar a distribuir tudo. Olha que beleza, isso pode ser uma salvaguarda, eles vão ter tempo ainda de conhecer mais a sociedade nacional, não cair de cabeça no engodo da mercadoria.

Fiz um trabalho sobre a questão econômica deles e suas implicações, como eles produziam. Foi uma tarefa penosíssima, porque eu media as roças com trena, via quanto eles plantavam por unidade de área, quanto as mulheres coletavam por dia, o que dava de alimento por dia etc. Resolvi esse negócio da economia, mapeando como eles trabalhavam. Na aldeia, todo mundo é proprietário das coisas, há os bens livres, que são os públicos, o pátio da aldeia, as águas, as matas, olha que beleza! O resto não tem dono.

Há a propriedade de fato.

Exato. Cada pessoa de uma família tem roça própria. Os kamaiurá são sedentários de sua terra porque eles são pescadores e têm uma agricultura boa. Os kamaiurá só comem peixe e uma ou outra ave. Eventualmente, “a cada mil anos”, eles comem uma paca. Não gostam de carne vermelha, mas de ave ou peixe, embora 99% seja peixe. Já os cinta larga comem peixe e caçam tudo, mas eles não têm esse refinamento de cada um da família ter uma roça.

Lá é a mulher e o marido que têm a roça, é um pouco diferente. E todo o esforço deles é voltado para o contato com os outros grupos cinta larga, que são as outras aldeias, onde eles fazem troca de mulheres. Os filhos homens permanecem e as filhas mulheres ou sobrinhas são dadas em casamento para outros grupos também cinta larga. Na aldeia cinta larga praticamente todas as mulheres casadas são de fora, de outras aldeias. Existe uma grande rede de aliança matrimonial, que eles fazem com pessoas para reforçar um vínculo. A troca de mulheres é a política externa deles.

Mas alguma mulher pode dizer que não quer ir?

Essa é a grande contradição deles. Eles têm de criar as mulheres, porque até pouco tempo eles faziam guerra entre eles. Quer dizer, se pegou uma mulher e não retribuiu cuidado, vai ter bagunça. Dá-se a filha em casamento, de repente ela pode até gostar de ficar alguns meses, mas de repente volta, não quis. Quando isso ocorre ela é xingada.

Os parentes fazem uma espécie de corredor, não batem, mas todo mundo fica xingando. Complica tudo, porque eles têm de achar outra mulher para substituir essa. Há várias instâncias. Porque veja o princípio: a aliança é feita com quem não há uma amizade sólida. O objetivo é criar novos vínculos, novos aliados, inclusive para as guerras. Eles guerreavam muito contra os Erikbatsa [povo indígena que mora às margens do rio Juruena, que banha o estado de Mato Grosso].

E como começam essas guerras? Sempre meio por acaso. Certa vez, um Erikbatsa matou um casal de cinta larga perto da região cinta larga, aí começou a guerra. Remonta-se às vezes a dezenas de anos, e fica mata um daqui, mata outro de lá como vingança.

Como é a relação dos pais com os filhos? Como é a questão da educação? Eles batem nas crianças? Como eles dizem o que é certo e o que é errado?

De maneira geral, ninguém manda dentro de uma aldeia kamaiurá, porque, se der uma ordem, simplesmente ela não é obedecida. Então, para se livrar dessa vergonha ninguém dá ordens.

O que o pai faz quando uma criança está impertinente, digamos quando ela está “mal-educada”?

Eles têm um armazinha, com que eles fazem escarificação. É um pedaço de cuia, e eles põem uns dentes de peixe-cachorra, que é igual aos de piranha, muito afiados, para fazer escarificação nos grandes lutadores com objetivo de deixá-los fortes. Eles arranham a pele e essa sangria é relacionada à saúde. Então, se está com febre, eles escarificam, se está com dor nas costas, escarificam. Serve como tratamento médico. Escarificar, eles chamam de arranhar. Bem, quando uma criança está muito impertinente, o pai fala para a mãe buscar o japjap [lê-se iaiap, retângulo de cuia onde dentes de peixes afiados são guardados]. A criança para imediatamente de chorar.

Como eles encaram a morte?

Para os kamaiurá a vida deve durar, a partir do nascimento. Quando a criança morre antes de três ou quatro meses, é porque não era para ficar vivo mesmo. Mas a partir de uns três, quatro meses, a vida deve se prolongar até a velhice. Se você morrer nesse tempo, é feitiçaria. Exceto se você morrer numa briga ou guerra, mas se você está na vida normal, cotidiana, e morre, fica doente e morre, é feitiçaria.

O problema político também se entrelaça com o problema das “crenças religiosas”, questões sobrenaturais. Quando mata, tem um ritual para definir quem era o feiticeiro, se era da aldeia, uma espécie de oráculo que eles fazem. Finalmente eles chegam na pessoa. E se começarem a aparecer acusações recaindo sempre sobre a mesma pessoa, ela é executada. Agora são as famílias de maior poder que matam, mas não tem a violência.

E como eles chegam a essa suspeita?

Qualquer morte antes da velhice é feitiçaria. E até na velhice, se não tiver muito caquético, pode ser feitiçaria também. A morte é sempre vista com muita suspeição, e, quanto maior o status da pessoa, mais forte é essa suspeição. Se for um zé-ninguém ali, morreu porque estava velho etc. Se ele tiver uma posição de maior projeção social, de maior reconhecimento social, aí ficam as acusações, que caem geralmente sobre as outras tribos, porque se for sobre a mesma, eles têm que resolver.

Agora esses processos oráculos são bastante complexos. Têm especialistas em definir quem é o culpado, eles começam vendo de que casa veio, de que lado veio o feitiço, aí às vezes indica que é mais longe, de outra aldeia, em tal direção, é difícil a interpretação. Lá no cinta larga, eles têm um ser sobrenatural maldoso que se chama pavu. Se ele encontra a pessoa sozinha ele mata, só de olhar, as emanações que saem dele são tão terríveis que a pessoa morre. Fica com febre e morre. Às vezes, você está andando na mata e de repente vê uma avó sua que já morreu há muito tempo, daí você estranha e vai se aproximando, aí ela olha para você e você está perdido, e quando você olha percebe que não era bem a sua avó, é o pavu disfarçado.

Ele se modifica para te atrair, e você morre. Então o grosso das mortes é atribuído ao pavu. Secundariamente é veneno, eles mexem muito com veneno de plantas. Como tem remédio, também tem muito veneno. Kamaiurá tem veneno também, que eles dão para o cachorro quando o animal está doente ou está muito bravo. Mas no cinta larga eles têm muito veneno para gente. Para fazer a mulher abortar, para matar alguém, dão umas gotinhas e tal. Fiz um levantamento botânico de todas essas plantas, mas a classificação é mais ou menos genérica porque na época em que eu estive lá não tinha flor, o que possibilita melhor identificação. Mas há vários tipos, seis ou sete.

Mas quando algum kamaiurá morre, por exemplo, as pessoas choram?

Todos choram. E a aldeia toda entra em luto. Não precisa ser um líder, qualquer pessoa, uma criança, qualquer um que morreu, a família chora, alguns amigos choram. Já a aldeia inteira, 200, 300 pessoas, entra em estado de luto. Aí se passam uns dez dias e um grupo de homens se reúne para definir aqueles que vão cavar a sepultura. Forma-se esse grupo de uns oito, dez homens, que vai à casa da pessoa que morreu e pergunta: “Podemos cavar a sepultura?”.

A primeira reação é não. Esse grupo volta várias vezes, porque é bem ritualizado. Até que a família diga que pode. Outra parte desses homens vem para lavar e pintar o corpo. Se for mulher, as esposas desses homens vêm lavar e pintar. Aí enrolam na rede e levam o corpo para o sepultamento, se a família autoriza. A aldeia fica em luto, ou seja, não pode dar risada, criança não pode ficar brincando aos gritos no pátio da aldeia, não se ouve rádio, nem televisão, nada.

É um tempo de recolhimento.

De reconhecimento da dor do outro. Toda pessoa que tem um status maior lá deve ser homenageada no kuarup [celebração religiosa]. Por exemplo, morre uma pessoa de uma elite da aldeia. Quando essa pessoa morre, depois de um tempo, os familiares dela vão perguntar para outras pessoas que perderam algum familiar durante o ano se elas querem que o seu morto seja homenageado no kuarup.

O ritual é dedicado a esse morto mais importante, mas os mortos mais simples vão ser também homenageados com os seus postos. E quando há a festa do kuarup, eles tiram definitivamente o luto, porque nesse um ano vão ocorrendo várias cerimônias – cortar o cabelo, lavagens e muitos rituais nesse meio tempo. Então é interessante que eles vão superando a dor.

A gente tem o velório, depois a missa de sétimo dia. Eles têm muito mais do que isso. Entre os cinta larga é mais dramático. Se o dono da casa morre, a casa inteira é queimada. Ele é enterrado dentro da casa, que é toda queimada, com tudo que for dele dentro. Quando não é um chefe que morre, todos os pertences do morto são queimados, eles o enterram dentro da casa e depois fazem uma fogueira com os objetos.

Uma vez estava com uma malária muito forte lá, quase morri mesmo, e tinha um postozinho da Funai ali perto, com um funcionário que dava injeção na gente, não era um enfermeiro. Aí os cinta larga sentavam e falavam assim: “Mamãe (era como eles me chamavam), você me dá o seu bujão d’água?”. Porque se eu desse antes de morrer, ele não seria queimado depois.

Você estudou a sexualidade das índias. Como você conseguiu estudar isso? A sexualidade é uma intimidade para eles como é para nós?

Também. Só que eles são mais realistas que a gente. Tanto o kamaiurá quanto o cinta larga casam para fazer aliança, e depois eles querem descendência. Porque se ele deu a filha, ele quer ter um neto, uma neta e parentes. Isso é fazer aliança. No cinta larga, o casamento ideal é com a sua sobrinha, quer dizer, você tem uma irmã, a filha dela é a sua esposa.

E a sobrinha, veja bem, ela é sempre de outro grupo, porque a sua irmã foi casar em outra aldeia cinta larga, então é com uma mulher de fora sempre que se casa, de outro grupo.

No kamaiurá, o casamento preferível é com a sua prima, que em antropologia a gente chama de prima-cruzada. Ou seja, o primo-paralelo é o filho do seu irmão, agora a filha da sua irmã é sua prima-cruzada, que é um casamento ótimo para eles. E esse é o casamento preferível, recomendável. Nem sempre possível de se realizar.

Por causa da cossanguinidade?

Não, porque a cossanguinidade entre o cruzado e paralelo é parecida. Deve haver outros motivos, não sei dizer quais. Acho que é porque a mulher sempre é dada em casamento e se faz aliança, deve haver ainda aliança, hoje eles não lembram mais dessas coisas ancestrais.

Mas o princípio era como esse princípio dos cinta larga, o da aliança. Você dá a sua filha, mas casa com a filha dela, vai cruzando os casamentos. E sempre na base da reciprocidade, quem pegou uma pessoa para casar deve devolver outra para casar. No cinta larga isso é feito de uma forma, para nós mulheres, até meio ofensiva, presenciei várias transações desse tipo. Os kamaiurá não, eles acertam por trás, discretamente, eles têm uma liberdade sexual grande, então a moça tem um namoradinho e começam a namorar muito, e pode namorar. Mas a família, na aldeia, sabe quem está namorando e quem não está.

E quando começa um namoro muito frequente, com relações sexuais, eles têm medo de a menina engravidar antes de estar oficialmente casada. Então eles vão falar com os parentes do rapaz, pegam a rede do rapaz, trazem, e estão casados.

Eles te cantavam?

Cantavam. Pediam para namorar.

Direto assim?

Quando falam vamos namorar é muito bom, porque da primeira vez, logo que eu cheguei, eles pediam para transar mesmo [risos]. Fiquei tão ofendida, e pensei porque eu preferia que o homem viesse e primeiro convidasse para ir ao cinema, depois me desse flores, chocolate... Mas lá é assim, primeiro é “vamos namorar” e aqueles que já estivesse aprendendo mais o português é “vamos transar”. Agora já pensou alguém olhar para você e perguntar isso? [risos]

A mulher canta o homem? E também: deve haver casos de namoro entre brancos e índios.

Lá nos kamaiurá a aproximação da mulher é assim: o rapaz vai à casa dela e ela oferece comida para ele, o convida para ele ir no dia seguinte. Ela vai ganhando ele pelo estômago. Ele, quando quer namorar, já fala mais direto. Agora com relação a não índio, os homens kamaiurá usam a mesma atitude, falam direto. As mulheres gostam muito, quando tem visitante, isso antigamente, hoje em dia já está meio diferente.

Mas quando tinha visitante, a gente tinha que prevenir as pessoas, porque você estava na sua rede e, de repente, entrava uma mulher na rede. E, convenhamos, pelada, porque eles andam sem roupa. Elas quase que seduziam mesmo. Tenho uma aluna indígena, de outro povo, que diz que as mulheres índias da tribo dela gostam muito de transar com homem branco. Acho que é porque a transa é mais elaborada, não é tão rápida, tem muitas preliminares, elas gostam.

E quanto à homossexualidade?

Pois é, eu já perguntei diretamente isso, há uma negativa absoluta, mas tem uma história que eles contam que aconteceu com uma tribo vizinha, do homem que ficou grávido. Deve ter uma coisa ou outra, nunca vi nem gente com jeito de homossexual. Eles dizem que não gostam e que isso é coisa de branco. Mas é difícil ir além disso, porque eu nunca consegui ninguém que viesse me confidenciar.

Mudando de assunto, você vai ao Xingu desde 1965. O que você acha que mudou muito? No sentido de que existem tribos que começam a ter minérios, dinheiro, você começa a ter notícias de índios com carros. O que você tem visto dessa modificação do índio?

Para o observador de fora, como eu ou como qualquer um de nós, mudou demais. Em 1965, os meus amigos viam que eu tinha dinheiro na bolsa e diziam: “Carmem, dinheiro aqui não vale nada, o que vale são os colares”. Hoje em dia, acho que alguém pegaria o dinheiro, os jovens principalmente. Porque a mercadoria já deu sua picadinha neles.

Então, os jovens querem tênis, bermuda, as moças querem vestido. Apesar de eles ainda andarem na maior parte do tempo sem roupa, eles gostam de, à tarde, colocarem bermuda, uma canga – claro, e quando eles vão à cidade. Eles já têm um interesse enorme pela bugiganga que a gente tem. O meu celular lá é ridículo perto dos deles, que fazem sei lá o quê. Eles usam só quando estão na cidade, porque lá não pega, no posto onde morava o Orlando pega também um pouco, como internet também. Então os mais jovens já navegam na internet, as casas têm televisão.

Então como você acha que vai ser daqui para frente?

O que acontece é que os antropólogos mais antigos e outras pessoas românticas acham que aquilo tem de ser conservado integralmente. E por que a gente fala isso? Porque para nós é o socialismo que a gente imagina. Um sonho, alucinações que os antropólogos de esquerda, que é o meu caso, têm. Eles acham o seguinte: a cultura é uma coisa, o modo de plantar, o modo de adornar e por aí vai. Agora para eles a tradição é uma coisa muito mais restrita, é um núcleo apenas disso tudo, são os rituais e as cerimônias. No caso do Xingu, o kuarup é tradição, língua, as outras festas etc. O resto muda.

Pode mudar tranquilamente?

Pode mudar. Uma vez desceu um piloto lá e viu um índio de bermuda, e falou assim para ele: “Ué, mas agora vocês usam bermuda?”. Aí o índio virou para o piloto e respondeu: “Ué, por que você não está com a roupa do Pedro Álvares Cabral?”.

Olha que legal! Ou seja, eles sabem que muda. Acho que o nosso esforço tem sido no sentido de eles começarem a ter uma boa educação. O ISA [Instituto Socioambiental] fez um programa grande no médio Xingu, eu cheguei a dar um curso de antropologia quatro vezes lá para os professores indígenas. E tem que criar um horizonte artístico, intelectual, científico, não importa, eles só não podem cair na malha daquelas cidadezinhas do Mato Grosso, daquelas periferias, aquele mundo estreito.

Os jovens kamaiurá – aos cinta larga eu não voltei mais – estão mexendo muito com internet. Tem uma ex-aluna que se comunica com eles pelo Orkut. Sempre quando eles vão aonde morava o Orlando, eles ligam o computador. Então é claro que eles vão mudar. Agora, de repente, essa tradição vai virar uma coisa tão longínqua, quando os mais velhos morrerem. Porque os jovens de hoje que estão no Orkut não conhecem tão bem a tradição do kuarup, pensam que é uma festa. A longo prazo não tem jeito, a tradição tende a se perder.

“Trabalhei muito com as índias, elas são boas informantes, embora na época elas não falassem absolutamente nada de português”

“Para os kamaiurá, qualquer morte antes da velhice é feitiçaria”

“Tanto o kamaiurá quanto o cinta larga casam para ?fazer aliança, e depois eles querem descendência”

“Os índios já têm um interesse enorme pela bugiganga ?que a gente tem. O meu celular lá é ridículo perto dos deles”