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Quem ganha com as minas de carvão?

por Milu Leite

“Eu vou, eu vou, pra casa agora eu vou, pararatibum, pararatibum...” Quem ainda não ouviu essa canção entoada pelos sete anões no desenho Branca de Neve? Só mesmo Walt Disney para dar aos mineiros uma existência tão bucólica e saudável. Na vida real, a primeira palavra associada ao dia a dia de quem trabalha numa mina é “sacrifício”. Se é de carvão, vêm logo em seguida muitas outras: doença, degradação ambiental, perigo iminente.

É difícil dizer se quem sofre mais com a mineração carbonífera é o homem ou o meio ambiente. Avaliar, então, o impacto dessa atividade exige uma multiplicidade de pontos de vista, indo da saúde do trabalhador aos leitos de rios contaminados, sem deixar de lado motivações econômicas, sociais e políticas de setores diversos (cidadãos, empresas e governos).

Não há muitas minas de carvão no Brasil. As reservas brasileiras totalizam 32 bilhões de toneladas do minério in situ, 89,25% delas localizadas no Rio Grande do Sul, 10,41% em Santa Catarina, 0,32% no Paraná e 0,02% em São Paulo. A exploração se dá efetivamente na região sul do país, e a zona carbonífera que mais apresenta problemas é a de Santa Catarina.

São cerca de 1,5 mil quilômetros quadrados espalhados pelos municípios de Criciúma, Lauro Müller, Maracajá, Orleans, Siderópolis e Urussanga, área irrigada pelas bacias de Araranguá, Tubarão e Urussanga. A mineração afeta cerca de 900 mil pessoas na região. Quando se diz “afeta”, é preciso considerar o desenvolvimento e os prejuízos que a exploração do minério traz em seu bojo. Cidades como Criciúma, por exemplo, cresceram em função da prática e hoje muitos de seus habitantes trabalham e têm casa e comida graças a alguma atividade ligada ao carvão.

É assustador, entretanto, pensar que essas casas, muitas vezes, estão construídas sobre minas desativadas, sobre galerias velhas e inseguras, cujo risco de desabamento é real. “É um queijo suíço”, compara a geógrafa Claudia Ravazzoli, da Seção de Controle Ambiental na Mineração do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), do Ministério de Minas e Energia. “O passivo do carvão é muito extenso. Existe inclusive um trauma da comunidade com relação a isso. As pessoas que residem nas áreas carboníferas não gostam nem um pouco quando uma empresa começa a explorar alguma mina”, revela.

Problema antigo

O DNPM é o órgão encarregado de regulamentar e fiscalizar a mineração. É dele que partem as licenças (alvará de pesquisa e concessão de lavra) para exploração das minas, hoje consideradas um bem da União (a licença ambiental fica a cargo dos órgãos de meio ambiente dos estados). Houve, contudo, períodos em que as minas pertenciam a pessoas físicas, e muitos dos problemas começaram a surgir aí, já que não havia fiscalização nem regras para a exploração.

A descoberta de jazidas de carvão em Santa Catarina se deu em 1822, mas somente em 1876 o visconde de Barbacena começou a explorar a mineração com objetivos econômicos. Com o advento da 1ª Guerra Mundial, a atividade se intensificou, com a ampliação de ramais ferroviários e hidroviários. O segundo boom aconteceu durante o governo de Getúlio Vargas, com a construção da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), quando o presidente decretou que a usina devia operar com 20% de carvão nacional na composição do coque (carvão com baixa concentração de hidrogênio). Assim, os problemas da exploração, que começaram quando ainda era uma atividade privada, não tardaram a se avolumar com a participação direta do governo federal.

“O carvão catarinense é o único coqueificável no país. Mesmo assim não são todas as minas que o produzem, somente aquelas que explotam a camada Barro Branco. Não é um carvão de primeira, devido aos teores de cinza e voláteis, mas alimentou a siderurgia nacional por décadas”, esclarece o geólogo Nereu Heidrich, que durante muitos anos chefiou a Seção de Economia Mineral do DNPM do Amazonas.

O carvão coqueificável catarinense responde por cerca de 1% do mercado brasileiro de coque. Segundo o “Sumário Mineral Brasileiro” de 2009, do DNPM, o carvão que alimenta nossa indústria siderúrgica é proveniente da Austrália (33%), EUA (30%), Canadá (8%), China (6%), Colômbia (5%) e outros (18%). De acordo com Heidrich, as reservas brasileiras são poucas e de qualidade inferior e, “devido a essas características, deveríamos questionar a queima de carvão metalúrgico para gerar energia. Temos reservas estratégicas para o caso de um conflito mundial? Acho que devemos continuar ativos e produzindo com moderação, inclusive com um plano B de aumento de produção em épocas de secas prolongadas”.

Questionada se, do ponto de vista energético, o carvão é uma boa alternativa, Claudia Ravazzoli esclarece: “É uma questão difícil de responder. Pessoalmente, preferiria outras opções, mas acho importante ressaltar que a exploração das minas é uma atividade legal, regulamentada, e que a vida da maneira como a levamos não existiria sem o carvão”.

Heidrich é mais incisivo, embora considere a questão controvertida: “Não vejo com bons olhos o caminho do mais barato e eficiente, sem considerar o que seja essa eficiência, quais os benefícios dela. É uma fonte barata, sim, eficiente, sim, e por consequência traz benefícios para nosso bolso, nossa barriga, nosso conforto, nosso desenvolvimento material etc. E para nossa casa Terra? Emissão de dióxido de carbono na atmosfera, águas ácidas na região de lavra, paisagens lunares e também um grande et cetera.”

O carvão mineral representa 1,6% da geração de eletricidade no Brasil, segundo o “Sumário Mineral” de 2009. Há necessidade de ampliar a produção de energia para atender a demanda, como os inúmeros apagões vêm demonstrando nos últimos anos. Na região carbonífera de Santa Catarina, o consumo de eletricidade tem picos elevados que são supridos com a ativação máxima das termelétricas do Complexo Jorge Lacerda, cuja capacidade instalada é de 857 MW. Essa maleabilidade na produção não existe nas hidrelétricas. De modo simplório, pode-se dizer que dar a partida numa termelétrica é bem mais fácil que numa hidrelétrica.

No entanto, essa facilidade não diminui o impacto da mineração sobre o meio ambiente. Por essa razão, medidas como a ação impetrada pelo Ministério Público Federal em 1993 contra as empresas mineradoras, a União e o órgão de controle ambiental de Santa Catarina, a Fundação do Meio Ambiente (Fatma), são necessárias e bem-vindas. Graças a elas é que surgem análises, estudos e propostas.

Atuação conjunta

O Ministério Público venceu a ação no ano 2000. A sentença determina que a União e as empresas se responsabilizem pela recuperação de 6 mil hectares de áreas degradadas (1.219 hectares a cargo da União). Mas, afinal, de que degradação se está falando?

As áreas de minas são tão áridas que se assemelham a paisagens lunares. A escavação, a retirada, a lavagem, o uso, a transformação e o transporte do carvão, além do descarte precário de rejeitos, geram inúmeros problemas dentro e fora das minas. Os métodos de lavra exigem ordenação e eficiência para que as explosões e a fixação de pinos de sustentação das minas não causem nenhum mal à saúde do mineiro e não tragam perigo à sua segurança. Houve uma evolução nas regras de exploração, muitas delas aplicáveis graças às novas tecnologias, mas ainda estamos bastante longe do ideal.

“As condições de trabalho dos mineiros são de risco máximo, com classificação 4 nas minas de subsolo”, informa o mineiro (atualmente licenciado) Genoir José dos Santos, presidente da Federação Interestadual dos Trabalhadores na Indústria da Extração do Carvão dos Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Ele conta que os sindicatos têm atuado em conjunto com a federação com o objetivo de manter a unidade nas reivindicações sobre saúde e segurança na mineração, e que promovem junto com a Comissão Regional do Setor Mineral seminários anuais de 20 horas. “As ações do Ministério Público do Trabalho [MPT] têm nos ajudado a exigir mais segurança nas minas, e os sindicatos e a federação dos mineiros têm um relacionamento muito bom com o MPT, inclusive participando de alguns TACs [termos de ajustamento de conduta] com as empresas mineradoras”, avalia.

Lesões pulmonares

Existem hoje aproximadamente 4 mil mineiros em atividade na área carbonífera de Santa Catarina. Atraídos pela oferta de aposentadoria após 15 anos de trabalho, muitos deles ignoram que talvez não venham a gozá-la por sofrer de uma doença chamada pneumoconiose. O mal é causado pela inalação de poeira tóxica e, se não tratado a tempo, leva à morte. “No processo de trabalho nas minas, sobretudo na lavra de sistema mecanizado, os trabalhadores respiram ar poluído de pó fino do carvão, liberado principalmente pela perfuração do teto e das frentes e na coleta e transporte do carvão bruto extraído nas galerias. As partículas mais grossas o organismo filtra e rejeita. As finas são aspiradas e se acumulam no interior dos pulmões. Na tentativa de expeli-las, formam-se lesões nos alvéolos pulmonares, limitando a capacidade respiratória. Se o indivíduo continuar exposto à poeira, a doença se torna progressiva e irreversível, levando o paciente à morte”, informa matéria publicada na “Revista Discente Expressões Geográficas” de junho de 2006.

Não bastando isso, os mineiros suportam temperaturas de até 30 graus sob a terra, num ambiente cuja umidade relativa pode chegar a 85%. Expõem-se durante sete horas e doze minutos, de segunda-feira a sexta, às surpresas reservadas nas galerias, que podem ser cavadas a uma ou duas centenas de metros de profundidade. “Nós temos ciência de que trabalhamos em uma atividade de risco máximo, mas acreditamos que é possível preservar a saúde e a segurança dos trabalhadores, o meio ambiente e a extração de carvão mineral”, pondera Santos.

A afirmação serve para lembrar que há o livre-arbítrio. Ainda que premido por necessidades de sobrevivência, o mineiro pode optar entre continuar em sua atividade ou buscar outra. Mas e a natureza? Que escolha há para animais e plantas da região?

Os rios próximos às áreas de exploração estão contaminados, comprometendo vários ecossistemas. A sentença que determinou a responsabilização da União e das empresas levou em conta o alto índice de acidez das águas (PH entre 2,5 e 3) e exige sua recuperação. O problema vem de longa data, de um período anterior às exigências atualmente adotadas. Durante anos, as empresas mineradoras permitiram que a pirita (um dos rejeitos do carvão) entrasse em contato com o oxigênio e com as águas dos rios, desencadeando uma reação química que produz ácido sulfúrico, o que torna os rios ácidos e lhes dá cor avermelhada. “Uma das exigências passou a ser então evitar esse contato”, diz Claudia. Atualmente isso tem sido feito com uma espécie de isolamento de argila no subsolo. “Eles envelopam o rejeito. Depois vem a etapa de reflorestamento, mas a vegetação não pode ter raízes profundas, pois isso colocaria em risco a barreira de argila”, explica. A partir daí, com o reequilíbrio do PH das águas, os ecossistemas afetados poderão se formar novamente.

Há, porém, outros problemas envolvidos na recuperação das áreas, como bocas de minas (aberturas utilizadas para pesquisa exploratória, acesso, ventilação e drenagem) que foram abandonadas e podem apresentar riscos à segurança, saúde e meio ambiente.

As áreas de preservação permanente recebem atenção especial, pois algumas das medidas adotadas em outros lugares não são adequadas nesse caso. É o que ocorre, por exemplo, com o uso da técnica de envelopamento dos rejeitos do carvão. “Os rejeitos inertes ou estéreis com sulfetos (principalmente a pirita) deverão ser removidos por completo, com reposição de material inerte não contaminante. A manutenção desses rejeitos no local, ainda que selados do ponto de vista hídrico, não pode ser permitida devido à sua função ambiental e à restrição legal”, informa o documento que estipula os critérios de recuperação e reabilitação das áreas degradadas.

Rachaduras

O acompanhamento das condições do subsolo das minas está sob a responsabilidade do DNPM. O monitoramento hídrico também é feito pelo órgão, mas a principal responsável por ele é a Fatma. Graças a esse trabalho é possível saber se há risco de rebaixamento ou fraturas nos leitos dos rios e do lençol freático. Embora não seja o principal problema da região, as minas mais antigas (muitas delas sem mapeamento) e as novas (mapeadas) causam muitas vezes rachaduras nos imóveis, colocando em risco a vida de moradores. Vários deles descobrem somente nessa ocasião que vivem sobre galerias de minas de carvão desativadas. Quando o problema é gerado por alguma mina em atividade, o morador informa a carbonífera e um acordo é feito diretamente entre eles. Em geral, as empresas atendem aos requerimentos encaminhados pelos moradores e resolvem o problema.

As prefeituras, por sua vez, exigem, a partir do ano 2000, que conste no registro de imóveis se a área é carbonífera. Desde essa data, todo morador que compre um imóvel na região sabe se ele foi construído sobre uma mina. Em caso afirmativo, cuidados devem ser tomados, como não perfurar poços nem fazer uso de águas subterrâneas.

Contudo, apesar de perigosas, as minas de carvão continuam a ser exploradas. E o maior rigor na emissão de licenças e nas exigências relativas à preservação não diminuiu o interesse das empresas por esse filão. De acordo com Santos, há na região carbonífera 13 minas de subsolo. Doze estão em operação, com atividade de lavra. “A mina 101, da Indústria Carbonífera Rio Deserto, localizada no município de Içara, está em fase de desenvolvimento, portanto não extrai carvão”, afirma.

Segundo notícia publicada no site da Feira Sul Metal e Mineração em junho do ano passado, as dez carboníferas associadas ao Sindicato da Indústria de Extração de Carvão do Estado de Santa Catarina (Siecesc) destinam, em média, 3% de seu faturamento a ações de preservação e recuperação ambiental. Todas implementaram o Sistema de Gestão Ambiental (SGA) e as carboníferas Catarinense, Criciúma e Rio Deserto estão certificadas pela Norma ISO 14.000. Algumas dessas empresas já foram multadas, o que não deixa de sinalizar que a fiscalização tem de fato acontecido.

O faturamento das empresas associadas, em 2006, superou os R$ 3 milhões. Foram gerados 3.940 empregos diretos. O principal comprador do carvão mineral catarinense é a empresa Tractebel Energia, que consome 90% da produção na geração térmica do Complexo Jorge Lacerda, localizado em Capivari de Baixo.

Aos governos municipais, estaduais e federal cabem porcentagens desse faturamento, cobradas através de compensação financeira pela exploração de recursos minerais (CFEM). A CFEM é calculada sobre o valor do faturamento líquido, obtido por ocasião da venda do produto mineral. Cabem à União 12%, aos estados, 23%, e os municípios produtores ficam com 65%. No ano passado, a União arrecadou com a CFEM das empresas catarinenses cerca de R$ 4,7 milhões.

Lucrativa para as empresas, a exploração de carvão mineral é, como se vê, uma faca de dois gumes. Por um lado, traz prejuízos ao homem e ao meio ambiente, apesar das medidas colocadas em prática nos últimos anos. Por outro, gera empregos, traz o progresso e alimenta com energia milhares de casas e indústrias. Além disso, é apontada como fonte alternativa de energia para um país cuja demanda não para de crescer. “Nós dependemos demasiadamente da geração hídrica de eletricidade, algo em torno de 80%. Como ficamos em épocas de estiagem? Enfim, é uma sinuca de bico. Tem coisa com melhor custo-benefício que o carvão mineral no presente? Acho que não”, reflete Heidrich.

Temos livre-arbítrio para concordar ou discordar. Ao meio ambiente cabe, mais uma vez, o ônus de nossa decisão.