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Acesso à leitura ganha espaço

por Marlene Jaggi

O mineiro Marcos Túlio Damasceno, de 32 anos, sempre foi apaixonado por livros e um observador dos hábitos das pessoas. Licenciado em letras, não deixava de notar o interesse dos amigos e clientes da borracharia do pai pelos jornais e revistas que ficavam entre os pneus, à disposição de quem os quisesse ler. Solícito, decidiu ajeitar uma estante com livros no estabelecimento. A iniciativa agradou tanto aos moradores de Sabará, município a 25 quilômetros de Belo Horizonte, que o professor se jogou de corpo e alma no projeto. Resultado: dos primeiros 70 livros de 2002 passou a um acervo de 20 mil exemplares nas quatro unidades atuais da Borrachalioteca: a sede, que ainda funciona dentro da borracharia; a Sala Son Salvador, no bairro Cabral; o espaço Libertação pela Leitura, aberto dentro do presídio de Sabará, e a Casa das Artes (que abriga uma biblioteca infanto-juvenil e uma Cordelteca). “Acabamos nos tornando referência para os amantes da leitura na cidade”, conta Damasceno.

A Borrachalioteca é um dos milhares de projetos que avançam, Brasil afora, com o objetivo de oferecer à sociedade acesso gratuito à leitura. São iniciativas de todos os tipos e portes, criadas para todos os públicos, pelas mais diversas instituições – de representantes da sociedade civil às três esferas do governo – e que trazem à tona uma realidade pouco percebida: o brasileiro, de fato, lê muito pouco, mas crescem em número e diversidade as alternativas de acesso à leitura no país.

Essa onda pró-leitura inclui programas grandiosos, como o lançamento, em 2009, do Mais Livro e Mais Leitura nos Estados e Municípios, iniciativa do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), dos ministérios da Cultura (MinC) e da Educação (MEC) e do Instituto Pró-Livro, que visa incentivar essas instâncias de governo a criar seus próprios planos de promoção da leitura. Há também projetos pontuais de grande porte, como a reabertura em janeiro da Biblioteca Mário de Andrade na capital paulista, e a inauguração, há um ano, da Biblioteca de São Paulo, assim como iniciativas singelas semelhantes à Borrachalioteca ou ao Jegue-Livro, criado em 2005 em Alto Alegre do Pindaré (MA) e que lança mão dos recursos disponíveis para levar livros a comunidades que, de outra forma, não teriam acesso a eles: um jegue, que sai da Casa do Professor carregando dois jacás coloridos cheios de livros para levar literatura a cinco povoados da região.

“É incrível o poder multiplicador que projetos como esses têm sobre a sociedade”, diz Lourdes Atié, coordenadora pedagógica do Prêmio Viva Leitura. Criado em 2006 por iniciativa do MEC, do MinC e da Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI), o concurso recebeu até agora 2 mil inscrições no Brasil inteiro. O projeto do Jegue-Livro ganhou o prêmio em 2006. A Borrachalioteca, em 2007. “No início, foi uma surpresa encontrar um Brasil feito de pessoas não eruditas, mas comprometidas em fazer alguma coisa pela cultura. Hoje percebemos que as experiências, vencedoras ou não do prêmio, ganham visibilidade e inspiram iniciativas semelhantes”, diz ela.

Assim como a borracharia, estabelecimentos como açougues e quitandas reservam um espaço para abrigar livros e emprestá-los aos moradores vizinhos. Há também quem desenvolva propostas para seu próprio pessoal. Foi o que fez Kátia Ricomini, de 29 anos, dona da paulistana Translig, empresa de motoboys. Para incentivar o hábito da leitura entre os funcionários, que não tinham o que fazer enquanto aguardavam novas entregas, ela criou, em 2006, o projeto Translivroteca. Três anos depois implantou também o Pegadas da Leitura, que estimula a troca gratuita de livros. Funciona assim: as obras levam na contracapa um resumo do projeto, onde se pede às pessoas que, depois de ler, passem o exemplar adiante, formando uma corrente de leitura. “A pessoa lê o livro, envia um e-mail para a Translig, conta o que achou e ‘liberta’ a obra em algum local. Pode ser no ponto de ônibus, na cafeteria, no metrô – em qualquer lugar onde ele encontre um novo leitor”, diz Kátia.

Para todos

A movimentação pela democratização do acesso à leitura lança mão de todos os meios de transporte. O que vale é deslocar materiais de leitura para pontos estratégicos, seja por meio de um jegue, barco, ônibus, caminhão ou metrô. O projeto Embarque na Leitura, por exemplo, gerenciado pelo Instituto Brasil Leitor e apoiado pelo MinC, colocou bibliotecas em seis estações do Metrô de São Paulo que emprestam livros de graça a quem utiliza esse meio de transporte. Desde 2004, 45 mil pessoas já se cadastraram e fizeram quase 500 mil empréstimos. No total, as seis bibliotecas reúnem quase 24 mil títulos.

O meio escolhido pela Secretaria Municipal da Cultura de São Paulo foi o ônibus. São quatro ônibus-biblioteca que percorrem 20 roteiros fixos para levar leitura à população da periferia carente de equipamentos culturais, na capital paulista. No lugar de ônibus, o Serviço Social do Comércio (Sesc) usa caminhões-baú como base para o projeto BiblioSesc. O primeiro foi implantado em Pernambuco, em 2005. A regional de São Paulo encampou o projeto em 2009 e hoje utiliza dois caminhões – um que vai a cinco comunidades em Interlagos e outro que vai a seis, em Itaquera. “Ainda este ano teremos outros dois”, afirma Francis Manzoni, assistente de leitura da gerência cultural do Sesc-SP.

O projeto atualmente está em todo o Brasil. No total são 27 veículos espalhados por vários estados onde o Sesc tem unidades regionais. Até o final do ano serão 52, diz Lisyane Wanderley dos Santos, assessora técnica de biblioteca. Em 2010, o BiblioSesc recebeu 26,6 mil inscrições de pessoas, em 35 municípios brasileiros.

Um dos critérios do projeto é atender comunidades carentes de equipamentos culturais. Cada caminhão tem estantes com cerca de 3 mil publicações, escada para acesso à carroceria, ar-condicionado (que funciona mediante parceria com instituições locais que cedem energia elétrica) e bibliotecário para dar suporte às atividades. O interessado entra e escolhe o livro, faz a carteirinha na hora e leva para ler em casa, devolvendo na volta do caminhão, 15 dias depois.

Avanço

De acordo com José Castilho Marques Neto, ex-secretário executivo do PNLL e diretor presidente da Fundação Editora da Unesp, o movimento para formar leitores cresceu muito nos últimos anos, principalmente a partir de 2003, quando passou a contar com a decisão política dos chefes de governo ibero-americanos de colocar a leitura como um objetivo a ser alcançado nos países da região. “Estamos num momento de inflexão importante e a hora é de avançar ainda mais nas conquistas, em todos os planos nacionais de leitura que acontecem em 19 países ibero-americanos”, diz ele.

Em sua opinião, no Brasil o projeto Mais Livro e Mais Leitura nos Estados e Municípios trará a capilaridade necessária e fará com que as cidades e estados se apoderem do PNLL, mas ele lembra que o governo federal precisa adotar outras medidas para constituir um país de leitores: institucionalizar o PNLL por lei, para garantir sua perenidade, criar o Instituto do Livro, Leitura e Literatura, para orientar e coordenar a política pública de incentivo à leitura no país, e formar um fundo específico para assegurar recursos continuados à área.

Até agora, os números oficiais preocupam. A última pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, de 2008, apontou o índice de 1,3 livro lido por ano por pessoa (descontadas as obras escolares, que, se incluídas, elevariam o resultado para 4,7). “Como o levantamento já tem quatro anos, estamos com a expectativa de que, com os milhares de ações pró-leitura mais recentes, tanto dos governos quanto da sociedade, esse índice tenha aumentado”, diz Castilho.

Apesar dos esforços, no entanto, nem sempre o resultado é o esperado. A intenção do governo Lula de garantir o funcionamento de pelo menos uma biblioteca pública em cada cidade brasileira até 2010 não se concretizou. Dos 1.126 municípios que receberam kits com estantes e livros, somente 215 comunicaram a abertura de bibliotecas ao Ministério da Cultura. Por outro lado, as metas governamentais já não parecem tão distantes. Segundo o 1º Censo Nacional das Bibliotecas Públicas Municipais, feito pela Fundação Getúlio Vargas a pedido do Ministério da Cultura e divulgado em abril de 2010, 79% das cidades brasileiras possuíam ao menos uma biblioteca em funcionamento. O levantamento mapeou os 5.565 municípios do país e identificou 4.763 bibliotecas em 4.413 deles. Em 13% das localidades havia unidades em fase de implantação ou de reabertura e em 8% estavam fechadas, extintas ou nunca existiram.

“O programa Mais Cultura fomentou centenas de projetos para construção, reforma e modernização”, diz Castilho, segundo o qual tão importante quanto o avanço quantitativo é a mudança de conceito de biblioteca – que migrou de espaço sisudo e vazio para áreas abertas a um público maior, com recursos multimídia, alcançando leitores de todas as idades e necessidades.

Renovação

São Paulo é um bom exemplo dessa mudança. A maior parte das 54 bibliotecas públicas da cidade foi revitalizada e quase todo o acervo de 2,2 milhões de exemplares já está no catálogo online. “Durante muito tempo as bibliotecas foram espaços escolares e até por isso havia uma separação entre as destinadas a adultos e as infanto-juvenis. Isso mudou. Além da integração do acervo, os espaços foram reformados, ganharam novos móveis, como estantes, tatames, pufes e mesinhas, e reforço na programação de eventos culturais, o que permite que uma família inteira encontre leitura e entretenimento”, avalia Maria Zenita Monteiro, coordenadora do Sistema Municipal de Bibliotecas de São Paulo.

Novinha, a Biblioteca Álvaro Guerra, do bairro de Pinheiros, tem tudo isso e até um jardim de leitura em que crianças, adultos e idosos da região podem ler ou emprestar qualquer um dos 25 mil exemplares do acervo, conta a coordenadora da unidade, Jamile Salibe Ribeiro de Faria. Essa renovação pode ser observada também na Biblioteca Mário Schenberg, localizada na Lapa. Fundada há 57 anos, ela era, até há pouco tempo, um depósito de estantes, lembra a coordenadora, Patrícia Marçal Frias. Inserida no projeto Descobrindo os Encantos da Biblioteca Pública, da Secretaria Municipal de Cultura, virou uma das oito unidades temáticas da cidade – projeto que acrescenta às características tradicionais uma área dedicada a livros e atividades de determinados temas. O da Mário Schenberg é ciência. Lá há livros específicos e ocorrem exposições e até shows, como os do grupo Mad Science.

Na Alceu Amoroso Lima, também situada em Pinheiros, a especialização é poesia. São 3 mil títulos do gênero. Para quem gosta de tradições populares, o endereço é a Biblioteca Belmonte, localizada no bairro de Santo Amaro, com seus 500 livretos de cordel. São também temáticas as bibliotecas Cassiano Ricardo (música), Roberto Santos (cinema), Viriato Corrêa (literatura fantástica), Hans Christian Andersen (contos de fadas) e Raul Bopp (meio ambiente). Até 2012, a cidade ganhará mais duas – uma delas, a de cultura negra, será aberta ainda neste ano, no bairro do Jabaquara.

Além das bibliotecas públicas e temáticas, a cidade tem oito Bosques da Leitura, que funcionam aos domingos em vários parques, como Anhanguera, Ibirapuera, do Carmo e da Luz, e 12 Pontos de Leitura – espaços com no mínimo 60 metros quadrados e acervo de 1,5 mil exemplares, instalados na periferia da cidade, em locais como Jardim Ângela e São Miguel Paulista. Em 2010, o Sistema Municipal de Bibliotecas de São Paulo registrou a frequência de 1,2 milhão de pessoas e emprestou cerca de 900 mil livros – não estão computados nesses totais os dados das bibliotecas Mário de Andrade e do Centro Cultural São Paulo.

Fechada desde 2007 para reforma, a Biblioteca Mário de Andrade foi reaberta em janeiro, após um processo de restauração e modernização do prédio e desinfestação do acervo de 200 mil livros, entre os quais uma coleção com 50 mil obras raras e especiais, 27 mil volumes de arte e 42 mil livros circulantes. Com 3,3 milhões de itens, ela abriga o segundo maior acervo documental e bibliográfico brasileiro (o primeiro é o da Biblioteca Nacional, no Rio de janeiro).

Além disso, o paulistano pode se preparar para mais novidades: a reforma da Biblioteca Infanto-Juvenil Monteiro Lobato; a inauguração neste ano do novo prédio da Biblioteca Sérgio Buarque de Holanda, em Itaquera, e a abertura do Centro de Formação Cultural de Cidade Tiradentes, que está em construção e prevê uma biblioteca de aproximadamente 500 metros quadrados.

Inclusão

Nesse processo de modernização e mudança de conceito das bibliotecas, os públicos com necessidades especiais são sempre lembrados. O melhor exemplo dessa preocupação está na Biblioteca de São Paulo, inaugurada em fevereiro de 2010 exatamente onde funcionava o Carandiru, o maior presídio da América Latina e um dos mais violentos que o país já teve. Ali, além de um acervo em braile, o usuário encontra cadeiras e estantes adequadas a faixas etárias e mesas reguláveis de fácil adaptação para cadeiras de rodas. A unidade dispõe ainda de mil títulos de audiobooks e até de um scanner que transforma páginas de livros convencionais em áudio ou placas de braile, o que permite acesso dos deficientes visuais à literatura geral. Para quem não pode movimentar as mãos, a biblioteca oferece folheadores automáticos de páginas. “A Biblioteca de São Paulo é um marco, um lugar mágico em que foram investidos R$ 12,5 milhões”, informa Adriana Ferrari, idealizadora do projeto e coordenadora da Unidade de Bibliotecas e Leitura da Secretaria da Cultura do estado de São Paulo. De fato, em vez de celas e violência, o que se vê ali é um parque arborizado e um prédio moderno, alegre, que recebe 30 mil pessoas por mês.

Outro diferencial desse estabelecimento, alinhado com o movimento atual que ocorre no país, é a determinação em fazer com que a leitura vire sinônimo de prazer e a biblioteca, um espaço de cultura e entretenimento. Assim, não é de estranhar que a Biblioteca de São Paulo tenha 94 computadores para o público acessar a web gratuitamente durante duas horas e meia por dia. Inspirada no modelo da Biblioteca de Santiago, no Chile, tem espaços organizados por cores que indicam as faixas etárias – os destinados às crianças têm mesas, tatames, estantes baixas. Resultado: virou um grande centro de convivência onde se pode ler o jornal do dia, uma revista estrangeira, fazer empréstimo de títulos de literatura, observar o ranking dos mais procurados no painel eletrônico, assistir a um show, jogar xadrez e até mesmo ter acesso a literatura erótica. No seu primeiro ano de funcionamento, recebeu 317 mil pessoas e emprestou mais de 180 mil livros, informa a diretora, Magda Maciel Montenegro.

Com 30 mil itens, entre livros, DVDs, CDs, revistas, quadrinhos e jornais, a biblioteca tem até um terminal de autoatendimento, que permite ao usuário cadastrado liberar o empréstimo sozinho. Os mais procurados, contudo, podem desapontar os intelectuais: são geralmente best-sellers. “Todos temos um tempo próprio para amadurecer nossas leituras”, diz Adriana. “O que não se pode é não dar acesso aos livros.” É por isso, segundo ela, que o governo do estado prepara uma nova unidade nos moldes da Biblioteca de São Paulo, no Parque do Belém.

Na escola

Segundo Lourdes Atié, do Prêmio Viva Leitura, apesar de todo o esforço que vem sendo feito, o estímulo à leitura ainda tem um longo caminho a percorrer, principalmente nos estabelecimentos de ensino. “Não basta ter acervo. Falta intencionalidade; pensar no que se pode fazer para que a escola não vire um depósito de livros”, diz ela. Daniela da Costa Neves, de 28 anos, já tem o seu jeito. Professora orientadora da Sala de Leitura da Escola Municipal de Ensino Fundamental Professora Maria Berenice dos Santos, que fica no Jardim das Flores, na região de Guarapiranga, criou o Projeto Semana Literária, que, pelo terceiro ano consecutivo, coloca 470 crianças de 6 a 10 anos em contato com ilustradores, escritores e contadores de histórias, para estimular nelas o prazer da leitura.

As 45 bibliotecas dos Centros Educacionais Unificados (CEUs) são outro exemplo de que a leitura vem ganhando espaço nas escolas, embora o censo escolar divulgado no ano passado pelo Ministério da Educação mostre que ainda há muito a fazer. Segundo o levantamento, entre as escolas do primeiro ao quinto ano do ensino fundamental apenas 30,4% têm biblioteca. Do sexto ao nono ano, o índice sobe para 60% e, no ensino médio, para 73,2%.

Dentro ou fora das escolas, não é fácil elevar os índices de leitura no Brasil. “Não podemos nos esquecer de que o problema vem de longe, de nosso tipo de colonização, da exclusão histórica e contínua da maioria da população em relação aos bens culturais e, entre esses, aos livros em particular”, observa Castilho. Em sua opinião, a leitura ainda é considerada um “biscoito fino” pelas nossas elites. A saída? Elaborar uma política pública de longo prazo que assegure esse direito a todos os brasileiros.