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Sua Majestade, o velho órgão

por Alberto Mawakdiye

Na casa da família da dentista Marília Paes, alguns domingos têm um toque especial. Principalmente se a manhã é de sol, ela, o marido Jorge e os dois filhos pré-adolescentes saem logo cedo do bairro do Imirim, na zona norte de São Paulo, com destino certo: o Largo de São Bento, no centro da cidade. Irão assistir às 10 horas à missa no Mosteiro de São Bento, ao som de órgão e canto gregoriano.

“Não é sempre que dá para vir, mas toda vez que conseguimos o domingo parece mais completo”, diz a dentista, cujo grupo costuma rumar após a missa para o Parque Ibirapuera e em seguida para um almoço em algum restaurante agradável da zona sul. É uma tradição que ela cultiva desde que os filhos eram pequenos e começou quando, por acaso, foi com uma amiga assistir à “missa cantada da São Bento”, como o espetáculo de domingo de manhã é conhecido dos paulistanos.

“Simplesmente adorei. Nunca tinha ouvido música tão bonita”, afirma Marília, que na missa se mistura alegremente a outros frequentadores habituais ou recentes, incluindo muitos jovens – paulistanos de diferentes classes sociais e até de distintas religiões, que assumidamente estão ali mais para ouvir a música do que para rezar, embora o repertório, pungente e solene, empurre o ouvinte para o recolhimento e a meditação.

Atentas a esse renovado interesse dos fiéis pela música de “órgão de igreja”, como os leigos carinhosamente costumam se referir ao instrumento (alguns o conhecem por órgão de fole ou de tubos, mas ambas as designações também são inexatas: é apenas órgão), um número crescente de congregações vem abrindo espaço nas missas para a execução de peças de fundo mais religioso. Teatros, museus e escolas de música que possuem órgãos desse tipo – e que se podem contar nos dedos – também vêm organizando mais concertos com o instrumento, em geral de obras de extração erudita e assinadas por luminares do Barroco e do Classicismo, como Bach, Haendel, Vivaldi, Mozart e Haydn, mas também por românticos como Brahms.

É uma virada histórica surpreendente e cujas razões os próprios envolvidos com a música – vá lá – de “órgão tubular”, como os especialistas o chamam para distingui-lo do banal órgão eletrônico, ainda estão procurando compreender. Párocos, executantes, fabricantes, restauradores, pesquisadores, todos estão perplexos e felizes com a renovada atenção que vem sendo dada ao instrumento, para alguns, fruto de um aumento da religiosidade, para outros, apenas consequência do trabalho de divulgação e pró-memória de alguns abnegados. Há quem veja um pouco das duas coisas, acrescentando ainda a maior carga cultural dos brasileiros de hoje.

Seja qual for o motivo, o fato é que o reaparecimento do público parece não só ter conseguido impedir o que se desenhava como a inexorável e definitiva expulsão dos órgãos tubulares dos palcos e dos púlpitos brasileiros, como vem garantindo a própria sobrevivência física dos instrumentos. O Brasil possui alguns órgãos da época colonial, além de verdadeiras joias de engenharia montadas especialmente na Alemanha, na Itália e na França no século 19 e no começo do século 20.

“Estava quase tudo, por assim dizer, se deteriorando, isto é, do acervo que não se perdeu”, diz Daniel Rigatto, da Família Artesã Rigatto & Filhos, uma das mais tradicionais empresas fabricantes e restauradoras desse instrumento no país, fundada em 1960 em São Paulo. “Devem existir hoje no Brasil uns 650 órgãos, dos alguns milhares com que o país já contou. Desses, porém, a grande maioria está encostada ou abandonada, e só de alguns anos para cá surgiu um real interesse em restaurá-los”, afirma Rigatto. Como termo de comparação, a Europa tem hoje cerca de 10 mil órgãos tubulares em ótimas condições de funcionamento.

Na verdade, dos mais de 60 órgãos que as igrejas da cidade de São Paulo possuíam na virada dos anos 1960, por exemplo, poucos podem ser considerados hoje operacionais. Alguns foram desmontados ou encaixotados, enquanto muitos foram literalmente encostados, deixados para apodrecer. Por ser composto basicamente de madeira e ligas metálicas, o instrumento é presa fácil dos cupins e da umidade.

Manutenção cara

Uma das razões desse abandono não foi apenas a queda de interesse do público – hoje, em parte, revivido. Manter um órgão tubular – alguns dos quais são do tamanho de uma casa – é bastante caro e exige mão de obra para lá de especializada. Em São Paulo, o da Catedral da Sé, fabricado pela italiana Balbiani-Bossi e instalado em 1954 – o maior da cidade, com 5 teclados e 11 mil tubos –, está mudo depois de uma reforma desastrada no final dos anos 1990, cujos responsáveis, contratados a “preço convidativo”, conseguiram a proeza de pintar o madeiramento da caixa com tinta a óleo e destruir incontáveis tubos.

O órgão italiano Tamburini do Teatro Municipal está igualmente em mau estado. Até o magnífico órgão do Mosteiro de São Bento, inaugurado também em 1954, o mesmo ano do da Catedral da Sé, e produzido pela alemã Walcker com 4 teclados e 8 mil tubos – alguns dos quais de até 10 metros de altura – funciona hoje com 30% de seu potencial musical. Falta dinheiro à Ordem dos Beneditinos, que administra o mosteiro, para consertar as partes danificadas.

De qualquer forma, apenas a Família Rigatto já contabilizou a restauração de mais de uma dezena de órgãos através do país nos últimos anos – em um ou outro trabalho, inclusive modernizando os equipamentos, com a substituição do arcaico sistema pneumático de acionamento dos foles (de onde sai o ar para os tubos) por equivalentes elétricos. Assinou a reforma do órgão Gebrüder Späth, de 1908, instalado desde 1956 no Santuário Nossa Senhora do Rosário de Fátima, em São Paulo – obra que teve o patrocínio do empresário Antônio Ermírio de Moraes –, do instrumento da Catedral de Petrópolis (RJ), da Igreja Santa Cruz dos Militares, na cidade do Rio de Janeiro, da Basílica de São José do Rio Preto (SP), da Catedral de São Pedro de Alcântara (SC) e da Igreja Madre de Deus, no Recife, entre outros.

“Na Igreja Madre de Deus, a reforma foi praticamente um trabalho de reconstrução”, lembra Daniel Rigatto. “O órgão, um Merklin francês de 1850, de pequeno porte, estava apenas com metade dos tubos, pois muitos foram roubados depois que foi desativado. Além disso, os bombeiros jogaram água sobre ele quando a igreja pegou fogo, nos anos 1960. Estava em petição de miséria.”

Vários órgãos foram restaurados também pelo artesão catarinense de origem alemã Georg Jann, cuja Sonoridade Organi, de Rodeio, perto de Blumenau, respondeu pela reforma, por exemplo, do órgão alemão Berner de 1923 da Igreja de Confissão Luterana de Blumenau.

Bastante requisitado, Jann, que também é fabricante, está restaurando agora o órgão da Igreja Evangélica Luterana de Joinville (SC), e deverá iniciar em breve a restauração do órgão da Catedral Anglicana de São Paulo, um equipamento francês construído por volta de 1870. A captação de recursos destinados a essa finalidade, por meio da Lei Rouanet, foi aprovada, e o custo de R$ 696 mil será financiado por empresas privadas.

“Sabe quando o pneu está careca e vão colocando remendos? O órgão está assim. Quando assumi a igreja, decidi que ele não tocaria mais porque do contrário se estragaria de vez”, explica o reverendo Aldo Quintão, responsável pela catedral. “O som de um órgão é uma coisa maravilhosa, algo que eleva. Queremos voltar a oferecer isso para a população. Há poucas igrejas abertas ao público com um instrumento como esse. O principal é não deixar que essa história e essa tradição se percam.”

A Catedral de Porto Alegre – que está com seu órgão desmontado – e a principal igreja de Criciúma (SC) também já pediram orçamentos para reforma, assim como a de Uberlândia (MG), cujo exemplar foi construído por Louis de Fávere em 1955. Desde 1997 esse órgão encontra-se desativado, e precisa de minuciosa restauração para voltar a funcionar condignamente. “É um patrimônio não somente da igreja, mas da própria cidade de Uberlândia, onde é o único instrumento desse tipo”, diz Luiz Henrique dos Santos, secretário da catedral, segundo o qual será igualmente possível valer-se da Lei Rouanet para realizar o trabalho.

Minas Gerais é, aliás, o estado que possui o mais importante e significativo acervo de órgãos históricos no Brasil, vários deles da época do Barroco e muitos dos quais já restaurados, como o da Igreja Matriz de Tiradentes, reinaugurado no começo de 2009. Já o órgão do Museu Regional de São João del-Rei, do final do século 18 e com estrutura composta apenas por madeiras da flora brasileira, como jacarandá, cedro e pau-pereira, teve o trabalho de restauração completado em 2010.

A ideia da prefeitura de São João del-Rei é utilizar esse órgão como ferramenta de resgate da tradição musical barroca do período colonial brasileiro e mineiro, principalmente por meio de concertos didáticos para alunos e professores da rede pública de ensino. Já na cidade de Mariana, a Catedral da Sé – que possui um órgão alemão do século 18 – organiza concertos voltados para um público mais geral, nas sextas e domingos pela manhã. Trata-se de um evento tradicional: até hoje, já foram realizados mais de 1,5 mil apresentações, sempre a preços populares.

O órgão de Mariana é uma verdadeira preciosidade. Foi fabricado na primeira década do século 18 em Hamburgo, Alemanha, pelo artesão Arp Schnitger (1648-1719), um dos maiores construtores de órgãos de todos os tempos. Depois de um período em Portugal, o instrumento foi trazido para o Brasil em 1753, como presente da coroa portuguesa ao primeiro bispo de Mariana, e atualmente é um dos exemplares mais bem conservados do mundo (passou por amplo trabalho de restauração) e o único que se encontra fora da Europa. No momento está sendo estudado a fim de poder ser incluído no tombamento internacional de órgãos Schnitger pela Unesco.

Em outro estado com forte tradição musical barroca, a Bahia, a promoção de concertos populares de órgão também já vem sendo feita há algum tempo. Contando com diversos e valiosíssimos órgãos históricos concentrados nas igrejas e conventos de Salvador, inclusive o único Cavaillé-Coll do nordeste – a grife, criada no século 19 pelo fabricante francês do mesmo nome, está para o órgão tubular como a Hammond ou a Yamaha para as modernas versões eletrônicas, ou seja, é absolutamente top de linha em termos de órgãos de tubo fabricados em série –, a Bahia tornou uma prática comum a realização de eventos que visem aproximar a música organística das novas gerações.

“Não adianta só recuperar o instrumento e deixá-lo parado. Ele precisa ser utilizado, para que não se estrague de novo”, diz Marcos Santana, regente e membro da ONG Núcleo de Amigos do Órgão de Tubos na Bahia e do Instituto Geográfico e Histórico do estado. A agitação organística na Bahia, de acordo com Santana, vem ajudando inclusive as instituições religiosas a angariar recursos para a restauração de órgãos em pior situação.

A participação popular também é forte em Belém do Pará, cuja catedral possui simplesmente o maior Cavaillé-Coll da América Latina, e que está hoje tinindo de novo – para durar mais, a caixa do instrumento foi restaurada com madeiras da Amazônia, pela firma Verbicaro Giestas & Cia. O gigantesco órgão – que agora é revisado de seis em seis meses por técnicos franceses – é tocado quase que o tempo todo, atraindo um público jovem e fiel.

O melhor para o meio organístico brasileiro é que o interesse pelo instrumento não vem se limitando às instituições que já possuem algum exemplar e desejam recolocá-lo em ordem, incluindo também igrejas e entidades que jamais contaram com um órgão em suas instalações e querem agora fazê-lo. Para os fabricantes – que, assim como os restauradores e os afinadores, são chamados de “organeiros” e existem no Brasil desde a época colonial – não poderia haver cenário mais favorável. As encomendas não param de chegar. Assim, de uma área da cultura à beira da extinção pode estar nascendo até um novo mercado.

O organeiro Manfred Worlitschek, artesão alemão radicado desde a década de 1980 em Santa Maria (RS), onde fundou a Woma Órgãos de Tubos, vem se dedicando cada vez mais, por exemplo, à construção de instrumentos compactos, indicados para pequenos teatros, capelas e escolas de música. Em sua oficina, famosa pela qualidade dos trabalhos de restauração, ele já construiu órgãos de pequeno porte ou “portáteis” para a capela da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), de Porto Alegre, a Igreja São Degun Kim de São Paulo (católica coreana) e alguns pequenos templos do interior brasileiro.

“Projetamos e dimensionamos o órgão segundo sua finalidade e as características do local”, explica Worlitschek. “Seguimos em todo projeto o exemplo dos antigos mestres alemães, mas sem abrir mão de técnicas e materiais mais modernos, se for o caso. Manter a tradição não significa fechar os olhos para o novo.”

Outra dificuldade

Um problema inesperado começa a atormentar o meio organístico brasileiro: o longo período de decadência do instrumento fez com que o número de executantes se reduzisse à insignificância no país, com o resultado de que o Brasil corre o sério risco de, daqui a algum tempo, ter mais órgãos do que instrumentistas habilitados a tocá-los. A Igreja Matriz de Jaú (SP), por exemplo, reformou e até mesmo ampliou o seu histórico órgão, mas ele continua parado porque não há mais ninguém na cidade capaz de tocá-lo. As pessoas que outrora faziam isso já faleceram ou estão em idade tão avançada que nem mesmo frequentam mais as missas.

“De fato, há hoje poucos organistas em atividade no Brasil. Pessoalmente devo conhecer não mais do que 70 instrumentistas”, diz a gaúcha Jeanine Mundstock, ex-presidente da Associação Brasileira de Organistas (ABO). “E um problema adicional é que há poucas escolas e a formação de um organista é necessariamente lenta, pois a execução é difícil.”

Uma das instituições que oferecem curso superior de órgão no Brasil é a Universidade Estadual Paulista (Unesp), na cidade de São Paulo. Alguns seminários e conventos também continuam a formar organistas, e aulas particulares dadas por instrumentistas são relativamente comuns em todo o país.

O mercado de trabalho, contudo, tende agora logicamente a crescer para quem está na profissão – um pessoal que passou a viver literalmente de “bicos”, quando, premidas pela necessidade, as igrejas começaram a extinguir, uma após outra, o cargo de organista titular, que previa vínculo empregatício, salário e carteira assinada. Hoje, essa função é, em geral, desempenhada por músicos voluntários.

A organista Ana Maria de Souza Polotto, uma artista de São José do Rio Preto (SP), por exemplo – que durante 30 anos tocou quase como voluntária o belíssimo órgão da basílica da cidade –, é obrigada a exercer um sem-número de atividades para sobreviver. Diretora da Escola de Música Villa-Lobos, ela é também regente da orquestra sinfônica local e diretora da Casa de Cultura, além de dar aulas de canto coral.

Mas o que ela gosta mesmo é de tocar órgão – o que faz sempre que pode, mesmo que seja em casamentos e eventos natalinos. “É algo maravilhoso, inexplicável”, afirma. “O prazer dos sons que o órgão produz, de usar as teclas, os pedais, é muito diferente de qualquer outra sensação.”


Trabalho de fôlego

Parte do resgate do órgão tubular como um vivo patrimônio cultural brasileiro deve-se, sem dúvida, ao trabalho de alguns pesquisadores – quase todos também organistas e professores – que se enfronharam na história do instrumento no país e levantaram o que podiam sobre ela.

De fato, organistas como Dorotéa Kerr, Elisa Freixo e Andrea Cavicchioli, por exemplo, eliminaram com suas pesquisas muitas das sombras que obscureciam a longa história do órgão de tubos no Brasil. Ela começa ainda na época colonial, com os primeiros trazidos pelos portugueses, desdobra-se na fabricação de instrumentos por artesãos locais e avança a partir do século 19 para a importação de sofisticados equipamentos dos grandes centros fabricantes da Europa.

Os pesquisadores também não hesitaram em produzir verdadeiros inventários do acervo existente em diversos pontos do país – como o trabalho realizado por Dorotéa Kerr sobre os órgãos de São Paulo –, assim como em fazer o levantamento da situação física e operacional em que esses instrumentos se encontravam. Tais documentos estão tendo grande importância no esforço de restauração do patrimônio ora em andamento.

Pesquisar o assunto nem de longe é tarefa simples. Para escrever, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), “Órgãos de Tubos da Região Central do Estado de São Paulo: Aspectos Técnicos e Históricos”, que servirá para a elaboração de um catálogo ainda em andamento, a estudante de regência do Instituto de Artes da Unesp e organista Thais Costa teve de literalmente vasculhar as cerca de 90 igrejas locais – poucas delas providas de documentação histórica.

Embora muitas tenham contado com órgãos em seu acervo (mesmo que de pequeno porte), apenas cinco conseguiram chegar até os dias de hoje. Em muitos casos, não há mais livros-tombos da época de aquisição, nem manuais com especificações técnicas ou documentação sobre restauros. “A preservação nunca foi levada a sério como deveria nessa área da cultura”, lamenta Thais.