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Fórum social busca evolução

por Fernanda Polacow*

O belga Pol Heanna é consultor da cidade japonesa de Hiroshima, onde busca soluções inovadoras para conflitos entre o poder público e a sociedade. O professor universitário francês Yves Cabannes é um ativista social que, por muitos anos, trabalhou no Brasil com orçamento participativo, um instrumento que permite que o cidadão debata e defina as prioridades de investimento público nas cidades. Coumba Touré é uma senegalesa que atua na área de empreendedorismo social em diversos países do oeste africano.

Heanna, Cabannes e Coumba têm origens, referências, profissões e histórias de vida completamente distintas. Entretanto, os três foram a Dacar, capital do Senegal, com o mesmo objetivo: discutir alternativas ao modelo econômico predominante no mundo. Eles se encontravam entre as 75 mil pessoas de cem países que participaram do Fórum Social Mundial (FSM), o maior evento antiglobalização do mundo, que neste ano foi realizado nos dias 6 a 11 de fevereiro.

Na opinião de Cabannes, o fórum é um dos únicos eventos em que todos têm voz e que, assim, abre espaço para a discussão de temas que muitas vezes são deixados de lado. Já Heanna, que visitou a África pela primeira vez, estava entusiasmado por poder representar o projeto Prefeitos para a Paz num continente onde, há muito pouco tempo, o tema da educação para a cidadania poderia ser considerado uma utopia.

Desenvolvimento humano

O FSM foi criado em 2001 em Porto Alegre como alternativa ao Fórum Econômico Mundial de Davos, encontro realizado anualmente pelos integrantes da elite econômica global numa exclusiva e protegida estação de esqui dos Alpes suíços. No início, os dois eventos eram realizados exatamente nos mesmos dias, mas agora as datas não coincidem mais.

Concebido para ser um espaço que oferece a movimentos sociais, sindicatos, intelectuais, agricultores, grupos feministas e estudantes de todo o mundo a oportunidade de se encontrar, se conhecer e de trocar ideias sobre ações que promovam uma sociedade mais justa e com mais desenvolvimento humano, o FSM sofreu algumas alterações ao longo dos anos. Mudou de cidade, de formato e já foi bastante criticado pela imprensa, por intelectuais e organizações internacionais e até por chefes de Estado. Mas o fato é que, com suas qualidades e defeitos, permanece como um dos únicos eventos – se não o único – de proporções mundiais a propor alternativas ao modelo econômico vigente.

Pela segunda vez, o FSM foi realizado no continente africano – a primeira foi em Nairóbi, no Quênia, em 2007. Para alguns, esta pode parecer uma versão menor do evento que já chegou a reunir 100 mil pessoas em Porto Alegre. Outros, porém, acreditam que não se trata de enfraquecimento e sim que a tendência é mesmo de descentralização. Hoje, vários fóruns temáticos nacionais e regionais acontecem em paralelo ao FSM, o que, na opinião dos organizadores, é uma conquista.

Uma vantagem de mudar o local onde um evento dessa magnitude acontece é a possibilidade de diversificar as problemáticas abordadas. “Assim como a edição do FSM de Belém do Pará trouxe à tona os complexos temas relacionados a questões da floresta, dos índios e das comunidades tradicionais, o de Dacar joga luz sobre temáticas africanas”, afirma Thais Chita, da comissão de organização. Nesta edição, o fórum deu também aos senegaleses a oportunidade de mostrar um outro lado de seu país. “O Senegal, bem como muitos países da África, não é apenas pobreza e problemas. Estamos crescendo, nos desenvolvendo, somos urbanos, produzimos arte, apostamos no turismo. Somos muito mais do que a grande mídia mostra ao mundo”, afirma Coumba.

De fato, a Universidade Cheikh Anta Diop, que abrigou o evento, estava cheia de alunos que levavam computadores portáteis e conseguiam acessar a internet sem fio disponibilizada gratuitamente pela instituição. Além disso, era possível vê-los na biblioteca computadorizada e muito bem equipada, concentrados e estudando o dia todo.

Pauta variada

O FSM teve início com uma marcha que reuniu uma multidão portando faixas que divulgavam os principais temas do evento. Durante a caminhada, o slogan “um outro mundo é possível” foi repetido em várias línguas, como francês, inglês e uolofe, o idioma mais falado em Dacar. O que estava acontecendo não muito longe do Senegal – a queda do ditador da Tunísia, Ben Ali, ocorrida em janeiro, a revolta no Egito e os diversos levantes no mundo árabe –, um país onde 94% da população é muçulmana, foi uma das temáticas centrais das discussões.

O artista plástico tunisiano Habli Mourad, que trabalha peças em ferro e encontrou um canto para expor seu trabalho dentro da biblioteca da Universidade Cheikh Anta Diop, moldou rostos dos ditadores da região e tombou o de Ben Ali. “Estou esperando a qualquer momento derrubar também o de Mubarak”, disse Mourad (o FSM aconteceu antes da queda do ditador egípcio).

Este ano, o fórum abriu espaço para a discussão de temas que nas outras edições não tiveram tanto destaque, como, por exemplo, as mudanças climáticas. Diante da retomada da economia mundial, mesmo que ainda tímida, as organizações que trabalham com o tema ambiental começam a reforçar sua agenda de lutas e propostas para o próximo período, tendo em vista, principalmente, a realização da Rio+20, a Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, que acontecerá no Rio de Janeiro em junho de 2012.

Se, por um lado, é de extrema importância que um país africano abrigue um evento dessa magnitude, por outro ficaram evidentes as falhas e os conflitos ocorridos. Foram muitas as críticas relacionadas à organização do fórum. Várias atividades mudaram de sala na última hora, deixando os participantes perdidos. Tal situação se deveu ao fato de os estudantes, recém-saídos de uma greve, haverem optado por ter aulas, o que também os levou a não participar mais ativamente do evento.

O anfitrião, o presidente senegalês Abdoulaye Wade, deixou claras suas divergências políticas em relação às propostas do fórum. Ele se apresentou como defensor da liberalização econômica, revelando que não está de acordo com os movimentos antiglobalização e que, mesmo compartilhando da ideia de que o mundo precisa de mudanças, acredita na verdade na necessidade de reformas. “Apoio a economia de mercado e não a gerida pelo Estado, que já falhou em todos os lugares”, declarou, acrescentando: “Vocês já obtiveram sucesso em mudar o mundo em nível global?”

Alguns pensadores, como a peruana Gina Vargas, da Articulação Feminista Marcosur, tiveram a oportunidade de se contrapor a Wade. Segundo ela, os obstáculos logísticos e as diferenças ideológicas foram superados com discussões produtivas: “Estamos abrindo novas perspectivas que me parecem fundamentais para pensar outros mundos que sejam livres, plurais e democráticos”, afirmou.

Por outro lado, é também consenso que o formato do fórum precisa evoluir, passando “de um modelo de resistência a outro de alternativa”, como explicou o sociólogo e cientista político brasileiro Emir Sader. “O fórum surgiu como resultado das mobilizações dos anos 1990, quando já havia ficado provado que nenhum sistema consegue resolver os problemas sociais. A imagem do evento é vitoriosa, mas hoje ele está girando em falso, uma vez que os próprios governos sul-americanos, por exemplo, já colocaram no centro de suas políticas a agenda social, mesmo que ainda não de forma ideal. Por isso, o fórum precisa evoluir para que suas propostas não se tornem anacrônicas, levando-o a perder a oportunidade de ter protagonismo mundial”, explica ele.

Emir Sader tem acompanhado o fórum desde a primeira edição, em 2001, e acredita que, apesar de ele continuar sendo o único lugar capaz de reunir os grandes movimentos sociais mundiais, chegou a hora de mudar. “Ainda não há propostas concretas, apenas ideias de intercâmbio. Precisamos partir para a criação de políticas de fato”, afirmou ele.

O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, uma das figuras mais aguardadas em cada edição, é da mesma opinião. “O fórum deveria aproveitar melhor as informações que estão em circulação, como as que o site Wikileaks traz. Precisamos refletir sobre as mudanças que devemos fazer no fórum. Se, por um lado, ele deve continuar sendo este espaço aberto e plural, onde cabem várias vozes, por outro tem de intensificar sua atividade política.”

Presença marcante

O FSM tem um evidente traço verde-amarelo. Por ter nascido no Brasil, os movimentos sociais que o acompanham desde a primeira edição costumam ser figuras carimbadas em todos os eventos, como é o caso da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do Instituto Paulo Freire, por exemplo. “A participação brasileira é espetacular, estão aqui muitos grupos diferentes, representando causas variadas, desde questões relacionadas às mulheres até os movimentos pan-amazônicos. Temos uma diversidade enorme”, diz Moema Miranda, do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

No estande que o Brasil montou na faculdade, havia salas de reuniões e fotos decorativas com imagens de nosso país. Era um dos poucos estandes nacionais – os demais eram dedicados a causas, projetos, artesanato local e ONGs.

Um dos presentes no evento é bem conhecido dos brasileiros: o ator Marcos Palmeira, que tem um projeto de segurança alimentar chamado Pais (sigla de Produção Agroecológica Integrada e Sustentável). Junto com seu sócio, o senegalês Aly N’diaye, Palmeira demonstrou, na prática, como uma ideia simples e inovadora pode ajudar a combater a fome.

O Pais é uma alternativa de trabalho e renda para a agricultura familiar. Trata-se de uma técnica simples de produção agroecológica e que ao mesmo tempo contribui para o desenvolvimento sustentável. O sistema não provoca danos ao meio ambiente, uma vez que não usa agrotóxicos, não desmata e não queima. Além disso, preserva a qualidade do solo e da água. As unidades de Pais incluem horta e um microssistema agroflorestal, além de criação de aves e porcos, cujos dejetos são usados na produção do adubo orgânico aplicado nas plantações. A irrigação é feita de modo simples e barato, pelo método de gotejamento.

Esse sistema já está sendo empregado por 10 mil famílias brasileiras, graças ao suporte financeiro e estrutural da Fundação Banco do Brasil, em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). “Acredito que nossa vinda a Dacar foi mais que oportuna, porque o projeto é perfeito para ser implementado na África como um todo. É barato, fácil, seguro e ajuda a combater o problema da fome. Aqui fizemos um protótipo só com material local para demonstrar que existe tudo o que é necessário para montar e manter a estrutura básica de produção. O que é preciso agora é vontade política”, explicou Palmeira.

Além de apresentar projetos brasileiros como o Pais, o FSM deixou claro que está em curso um forte movimento político de aproximação entre América Latina e África, encabeçado, sobretudo, pelo Brasil. Um dos principais agentes desse movimento é o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em sua primeira aparição pública desde que passou o comando do país a Dilma Rousseff, Lula declarou que pretende criar um instituto que se dedique à cooperação entre países do hemisfério sul.

O líder político destacou ainda a importância de as nações africanas se unirem politicamente, procurando novos parceiros no hemisfério sul e se distanciando dos antigos poderes coloniais do norte. “O continente africano tem um papel mais relevante do que nunca para as nações em desenvolvimento, como o Brasil”, afirmou ele. A crise financeira mundial que eclodiu em 2008, disse Lula, enfraqueceu a capacidade dos Estados Unidos e da Europa de impor suas políticas econômicas ao restante do mundo.

Agenda repleta

Mais de 20 planos de ação para 2011 e 2012, resultantes das assembleias de convergência que aconteceram nos dias 10 e 11, foram apresentados no encerramento do FSM. A agenda é longa e destacam-se, por exemplo, a criação da Plataforma África-Europa por eleições livres e democráticas, cujo objetivo é combater as ditaduras que persistem no continente africano.

Outras ações concretas são as mobilizações contra o G20 na França, cujas reuniões estão previstas para 20 e 21 de maio e 31 de outubro; a declaração de 20 de março como Dia Mundial de Solidariedade ao Levante do Povo Árabe e Africano; a Jornada Global sobre a Palestina em 30 de março; as ações do movimento ambientalista em paralelo à Conferência Rio+20; a organização de uma semana mundial de ação em solidariedade às vítimas de racismo e xenofobia; e a realização de um fórum social na Tunísia.

Na cerimônia de encerramento evidenciou-se a capacidade de superação dos diferentes movimentos sociais e a vontade de aproveitar o espaço do FSM para firmar alianças concretas em torno de diferentes lutas. Mesmo assim, ficou claro que o fórum já não tem a centralidade que demonstrou de início, na fase de ascensão do movimento altermundialista, ainda que sua existência seja um marco geral de trabalho e encontro, o único talvez nessa escala, dos movimentos sociais. “Em geral, os limites do Fórum Social Mundial são também aqueles do período, da dificuldade para transcender os núcleos ativistas e chegar a novos setores sociais”, escreveu o site Ciranda, um dos únicos veículos que cobrem e acompanham a evolução do FSM desde o começo, promovendo o conceito de comunicação compartilhada.

O FSM apresenta muitos problemas e precisa se reinventar para não perder a importância, mas, como diz Boaventura, “é fundamental nos encontrarmos e estarmos com o outro para perceber a complexidade das causas e poder estreitar agendas. É, sim, cada vez mais relevante o espaço virtual, como ferramenta de mobilização, mas nada substitui o encontro vivo”.


Capital das artes negras

Na década de 1950, quando o Senegal ainda era uma colônia francesa, nascia um dos movimentos literários mais importantes do continente, o Négritude. “Criado pelo poeta Léopold Senghor, que viria a ser o primeiro presidente do país, ele agregou escritores negros francófonos e foi um alicerce dos movimentos independentistas”, explica o professor Carlos Serrano, do Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo (USP).

Em 1966, quando a jovem nação senegalesa comemorava seis anos de independência, Dacar foi palco de um evento que marcou a história do continente: o Festival Mundial de Artes Negras (Fesman), que reuniu pensadores africanos e afrodescendentes do mundo todo. No ano passado, a capital senegalesa organizou uma nova edição do histórico Fesman, com a participação de artistas de 60 países.

Desde o período colonial, o Senegal é um destacado polo africano de produção de cultura e pensamento. Atualmente, um dos principais pontos de encontro de jovens talentos é a Faculdade de Belas-Artes de Dacar, onde estuda a artista plástica Kine Aw. “Não é fácil ser mulher e artista no Senegal, mas Dacar tem criado espaço para que eu possa fazer meu trabalho e ter reconhecimento até mesmo internacional”, diz ela.

Kine Aw tem um ateliê no Village des Arts, uma espécie de vila de artistas cedida pelo governo e cujos custos de manutenção são cobertos pelo Estado. A ideia inicial era que houvesse rotatividade, mas artistas renomados ocuparam os espaços e já não há ateliês para a nova geração. Isso, porém, não vem impedindo a constante aparição de novos talentos, a consagração dos mais antigos e a consolidação do Senegal como capital das artes negras.
 

*Com reportagem de Juliana Borges.