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Memória musical

Aos 80 anos de idade, o compositor e intérprete carioca Elton Medeiros segue em plena atividade no cenário musical. No dia 16 deste mês, estará em São Paulo, no Sesc Pinheiros, para uma apresentação, ao lado da cantora Adriana Godoy, em homenagem a Nelson Cavaquinho, um dos seus inúmeros parceiros durante a carreira.

Caçula de uma família de 10 filhos, Elton esteve próximo de diversas iniciativas de divulgação e fortalecimento da cultura popular, incluindo ter sido um dos iniciadores do restaurante Zicartola, reduto de resistência política e cultural, em uma época que se encontrava com Cartola, com quem compôs “O Sol Nascerá” e outros sambas de expressão. Elton Medeiros se apresentou muito no exterior e foi agraciado com diversos prêmios, incluindo o Prêmio Shell para a Música Popular Brasileira, em 2001, como reconhecimento por sua obra e importância.

Em depoimento para a Revista E, Elton alerta: “sou meio falastrão, se bobear falo mais de três horas, ainda mais sobre esse assunto da minha vida pregressa, que tenho paixão e não tem fim”. Abaixo, os principais trechos.


infância musical


Nasci no bairro da Glória, onde existiam vários ranchos carnavalescos, que deram origem a muitos elementos do carnaval carioca. Cresci dentro desse ambiente e meu pai era ranchista. Ele dançava muito bem e saía em comissão de frente de ranchos como o Corbeille de Flores e o Flor de Abacate. Os ranchos também davam bailes, em suas sedes, e, por mais que pela idade eu não pudesse entrar, ouvíamos da rua as bandas tocarem.

Então, desde menino de colo, passei a ver essas manifestações musicais e carnavalescas. Sou também do tempo das serestas e serenatas, que eram feitas pelos chamados conjuntos regionais, integrados por flautas, violão, cavaquinho, bandolim, clarinetas e outros instrumentos. Era uma região do Rio de Janeiro muito musical, então eu começo a despertar para isso.

Minha mãe também organizava umas tardes dançantes, havia as bandas marciais que desfilavam pelas ruas e tive contato com sociedades carnavalescas, como a Democráticos, Tenentes do Diabo. Assim, aprendi a gostar de ouvir tudo isso e mais tarde vim a gostar da prática de música, a partir dos meus oito anos, quando tentei compor meu primeiro samba.


coral


Quando estava no colégio, o maestro Villa-Lobos mantinha uma política de corais em todas as escolas primárias do Rio de Janeiro. Havia uma data agendada pelo Villa-Lobos, antes do 7 de setembro, em que acontecia um encontro desses corais no estádio do Vasco, que na década de 1930 era o maior do Brasil.

Os cantores ficavam na arquibancada e o Villa-Lobos, do centro do campo, regia a todos. Aos 13 anos, fui para o colégio interno e passei a integrar o coral criado pelo Villa-Lobos para o secundário também. Além disso, naqueles tempos, todas as igrejas tinham um coral e um quarteto de cordas. As missas eram tocadas e cantadas pelo coral, o quarteto de cordas e um organista.

Eu frequentava a missa de domingo, que era quase uma praxe geral, e ouvia aqueles corais maravilhosos, acompanhados por conjuntos de câmara. Todos esses fatores me ajudaram a gostar dos ambientes musicais e foi a partir daí que fui envolvido por essa verdadeira onda de sons.


cartola


O meu maior sucesso foi o “O Sol Nascerá”, que fiz junto com o Cartola, que também disse que foi o maior sucesso dele. Costumo dizer que conheci o Cartola em 1930, que é uma brincadeira que faço, pois ouvi falar dele quando criança. O Heitor dos Prazeres, que frequentava muito a minha casa, disse uma vez que iria encontrar o Cartola.

Eu era bem pequeno e disse para minhas irmãs que achei estranho ele falar que iria encontrar uma cartola. Elas riram e me explicaram, mas fiquei com aquele nome na cabeça. Então, em 1965, o Zé Keti disse que o Cartola formaria um conjunto integrado por compositores de escolas de samba. Como na época eu já compunha para a Aprendizes de Lucas, ele perguntou se eu queria participar e eu, que já era fã do Cartola, disse “claro”.

Então, o Zé Keti me apresentou a ele e digo que, naquele dia, apertei a mão do Cartola e não larguei mais. Comecei a ensaiar com o Ventura da Portela, Zé Keti, Nelson Cavaquinho, Cartola, Armando Santos, Nuno Veloso, na casa do Cartola, que era um sobrado na rua dos Andradas.

As pessoas passavam perto da casa do Cartola, ouviam o samba, que naquela época estava com pouca divulgação, e não resistiam. Subiam a escada sem serem convidadas e ficavam na porta, olhando a gente tocar. O número de pessoas foi aumentando muito, até que o Eugênio Agostini, que era empresário, mandou a dona Zica procurar uma casa grande para abrir um restaurante onde se cantasse samba.

E foi assim que surgiu o Zicartola, na rua dos Cariocas, onde nos instalamos e passamos a fazer samba de segunda a sábado, com a casa entupida de gente. O Zicartola estourou, as músicas de lá começaram a fazer sucesso na rádio e os produtores de discos investiram nos sambistas que passavam por lá. Foi também no Zicartola que conheci o Paulinho da Viola, que se tornou o meu grande parceiro musical.


carnaval


Toda manifestação cultural passa por modificações com o tempo, pois começa a sofrer influências de outras manifestações, dos modismos e, evidentemente, ficam diferentes. Eu gostaria muito mais que o carnaval fosse como antigamente, com um samba mais cadenciado, mais melódico, valorizando inclusive a beleza dos versos.

Hoje é tudo corrido, o samba está muito marcial e não é assim que acho interessante. Essa prática não é a melhor para um tipo de composição que se propõe a mostrar beleza musical das entidades carnavalescas. Eu fundei três escolas de samba, primeiro a Tupy de Brás de Pina, depois o Grêmio Recreativo Quilombo e participei da fundação da Unidos de Lucas.


música brasileira


As pessoas exaltam os músicos estrangeiros e não falam do trabalho fantástico que Villa-Lobos fez, que a professora Cacilda Borges Barbosa fez, o Canuto Regis, o Francisco Braga. Ninguém fala disso. Outro dia, me hospedei em uma pousada que tinha bife à Ella Fitzgerald e virado à Charlie Parker, mas não vejo por aí um feijão à Pixinguinha ou um filé à Carmen Miranda.

Os americanos já são 80% das nossas programações culturais e ainda são homenageados. Não vejo razão para isso, tem que homenagear os formadores da consciência cultural brasileira. Villa-Lobos foi um grande batalhador, o Sílvio Salema Garção Ribeiro foi outro, a professora Cacilda Borges Barbosa, o Carlos Gomes.

A primeira esposa de Villa-Lobos, dona Lucília Guimarães, criou um coral maravilhoso, chamado Coral dos Apiacás, que era formado por estudantes de colégios públicos e donas de casa. Ninguém fala disso, o Brasil é um deserto de informações. Os primeiros violonistas brasileiros, que ensinaram violão por métodos próprios, como Marcelo Tupinambá, Patrício Teixeira, também são esquecidos.

O Tute [Artur de Souza Nascimento] é outro, que foi o primeiro violonista de sete cordas do Brasil, o homem que inventou o violão de sete cordas. Infelizmente, eu não entro em um restaurante e vejo um ensopadinho à Carlos Gomes. Isso dói e preciso fazer essa lamentação. ::



“As pessoas exaltam os músicos estrangeiros e não falam do trabalho fantástico que Villa-Lobos fez, que a professora Cacilda Borges Barbosa fez, o Canuto Regis, o Francisco Braga”