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Roberto Lent

Chefe do Laboratório de Neuroplasticidade do Instituto de Ciências Biomédicas e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Roberto Lent é especialista em Neuroembriologia. Membro da Academia Brasileira de Ciências, tem vários livros publicados com o objetivo de promover a divulgação científica, entre eles Cem Bilhões de Neurônios (Atheneu, 2002), dirigido ao aprendizado em nível de graduação, Sobre Neurônios, Cérebros e Pessoas (Atheneu, 2011), voltado a leigos, e O Neurônio Apaixonado (Vieira & Lent Casa Editorial, 2004), para o público infantil.

Em entrevista por e-mail à Revista E, ele fala sobre os fatores que influenciam a memória e a inteligência, além do peso da genética e do ambiente no desenvolvimento do cérebro. “Um menino(a) com aptidão para matemática só será um matemático(a) se tiver oportunidades educacionais adequadas, além de muito estudo e treino”, afirma.

O que faz o cérebro funcionar melhor?

O cérebro funciona melhor em pessoas saudáveis física e mentalmente, pessoas que dispõem de trabalho, projeto de vida, vida afetiva ativa etc. Nada que não saibamos intuitivamente. Há um mecanismo já demonstrado experimentalmente para a influência da atividade mental (e também física) sobre as capacidades funcionais do cérebro.

É um aumento da neurogênese, isto é, da formação de novos neurônios, em certas áreas do cérebro responsáveis pela memória. Assim, quando ativamos o cérebro (e o corpo), aumenta o número de neurônios nessa região chamada hipocampo, esses neurônios se integram aos circuitos disponíveis e a performance melhora.

Por que certas pessoas têm facilidade em aprender línguas e outras não?

São características inatas determinadas pelos genes que herdamos de nossos pais. Da mesma forma, algumas pessoas são melhores nos esportes, outras têm excelente memória etc. Não se conhece muito bem de que modo isso ocorre, e é pouco provável que apenas um gene esteja envolvido nisso, embora um gene já tenha sido identificado (o Fox 3) com essa função.

A habilidade física tem a ver com a inteligência?

A habilidade física é um tipo de inteligência. Hoje se considera que a inteligência é múltipla. Alguns de nós não somos inteligentes em matemática, outros em artes e assim por diante. Um músico, por exemplo, deve ter entre suas aptidões uma enorme habilidade física. É só pensar em um pianista. Além disso, deve associar a essa habilidade a capacidade de transmitir emoções por meio do instrumento.

Qual é o papel da música no desenvolvimento do cérebro de uma criança?

A música desenvolve muito a atenção, porque geralmente a criança está interessada em aprender e aprende a focar a atenção nisso. Esse mecanismo “educa” o cérebro a usar mais atenção em outras formas de aprendizado. A criança que aprende música normalmente também tem desempenho melhor em outras tarefas escolares.

Essa propriedade se chama plasticidade transmodal e representa uma aplicação da neurociência na educação. Tudo indica que, ao estimular a atenção de uma criança, explorando seu interesse e motivação pela música (ou por outras atividades), estamos favorecendo sua atenção em geral, e isso melhora bastante seu foco e capacidade de aprendizagem.

Qual é o papel da cultura no desenvolvimento do cérebro?

A cultura desenvolve habilidades, exercita a memória, focaliza a atenção e fornece instrumentos para que a criança aprenda mais facilmente. Ela pode estimular o interesse e a motivação das crianças, gerando a neuroplasticidade transmodal, isto é, favorecendo o desenvolvimento de áreas cerebrais dedicadas a funções cognitivas, como a linguagem, a expressão musical e até mesmo outras aparentemente “não culturais”, como a matemática.  
 
O que faz a memória desaparecer?

A memória desaparece, em condições normais, quando se trata de eventos pouco importantes para nós. Para o leitor desta revista, o número da página não deve ser muito importante, por isso essa informação desaparecerá da memória mesmo que ele tenha visto o número antes de começar a ler.

Em condições patológicas, a memória desaparece como consequência de doenças mentais ou degenerativas do cérebro. A memória depende da saúde das sinapses, que são pontos de contato e de comunicação entre os neurônios. Um neurônio recebe uma informação e a transmite a um segundo neurônio através da sinapse.

Ocorre que, para que a sinapse funcione bem, deve ter um conjunto de proteínas bem posicionadas e em boas condições de funcionamento. Em certas doenças, como o Alzheimer, entretanto, essas proteínas sinápticas são atacadas por uma substância chamada oligômero de beta-amiloide. Essa proteína patológica “desarruma” as proteínas sinápticas e a transmissão de informação entre os neurônios deixa de ocorrer normalmente. A primeira função atingida é a memória, mas posteriormente outras capacidades mentais e físicas passam a ser também afetadas e a condição do paciente vai se deteriorando.

Até que ponto a tecnologia prejudica a memória?

Não prejudica, a não ser que seja usada em excesso. A tecnologia favorece a memória e o desempenho das pessoas, pois exercita o cérebro. Até mesmo os videojogos, usados com prudência e parcimônia, podem estimular a percepção visual e a atenção das crianças. Hoje as pessoas têm a atenção dispersa por várias atividades – leem enquanto falam ao celular e assistem TV, tudo de modo simultâneo.

Estamos desenvolvendo assim um outro tipo de habilidade?

Possivelmente lidar com muitas coisas ao mesmo tempo signifique dividir a atenção, e isso pode ser útil para determinadas atividades e prejudicial para outras. Ainda não temos distância temporal suficiente para avaliar o impacto desses novos hábitos sobre nossa mente. Há vários grupos de pesquisadores estudando a influência dessas novas tecnologias sobre o cérebro e a capacidade cognitiva das pessoas, mas ainda não temos um quadro muito consolidado sobre o resultado desses estudos. 

Vivemos numa sociedade de imagens, na qual a maior parte dos recursos vem delas. Essa prevalência prejudica os demais sentidos?

Não. Os seres humanos sempre foram mais visuais do que auditivos ou olfativos. Nosso olfato, por exemplo, é muito inferior ao da maioria dos animais. Além disso, não tenho certeza de que apenas a visão esteja sendo empregada pelas novas tecnologias. A audição é muito estimulada também pelos ipods e outras mídias e até mesmo os videojogos estimulam bastante a agilidade muscular e ocular dos jogadores. 

O que determina a inteligência?

Muitos fatores. A inteligência não é única, é múltipla, e suas características são determinadas pela genética e elaboradas pelo ambiente. Se a genética dá a inteligência, mas o ambiente social não permite que ela seja desenvolvida, tudo será perdido. Não há inteligência sem que seja desenvolvida e estimulada pelo ambiente. Ambiente significa escola, educação e cultura. Sem esses ingredientes, a inteligência não se manifesta ou fica muito aquém do que seria possível em circunstâncias sociais mais favoráveis.

Qual o papel da alimentação no desenvolvimento do cérebro de uma criança? É verdade que uma criança mal alimentada em seus três primeiros anos comprometerá para sempre sua capacidade de raciocínio?

O cérebro parece ser bastante resistente à desnutrição e a capacidade de recuperação é grande se a desnutrição neonatal for compensada depois, mas algumas sequelas podem permanecer. Hoje não vivemos mais tão fortemente o problema da desnutrição, mas sim o da obesidade. Em ambos os casos, o cérebro sofre. Mas tanto as crianças muito magras, como as obesas são tão capazes intelectualmente quanto as que têm peso considerado normal e saudável.

Com a idade o cérebro cansa? Um jovem aprende mais fácil que um velho, mesmo que esse velho tenha uma imensa experiência?

Não é que o cérebro canse. É que declina nele uma de suas capacidades fundamentais chamada neuroplasticidade. As pessoas mais velhas, entretanto, compensam a menor plasticidade cerebral com uma estratégia esperta: aprendem a aprender, o que as ajuda a superar as dificuldades que a idade impõe. A idade atinge o cérebro como atinge o corpo.

O cérebro envelhece como os demais órgãos, é um processo inexorável. O que podemos fazer é mantê-lo saudável pelo exercício físico e mental, por uma boa alimentação e hábitos saudáveis, do mesmo modo que podemos manter nosso corpo fisicamente saudável, mas não conseguimos impedir seu envelhecimento.

Os nossos neurônios foram originados ainda quando estávamos na barriga de nossas mães e poucos deles surgem depois do nosso nascimento. Alguns, entretanto, morrem normalmente ao longo da infância e da adolescência e, depois disso, ficamos com os sobreviventes ao longo da vida. Ainda não se sabe quantos neurônios vamos perdendo ao longo da vida, esse é um tema de estudo dos neurocientistas.

Além disso, as sinapses vão sofrendo também a ação do tempo e seu desempenho funcional vai declinando. Portanto, a idade traz alterações biológicas, mas o impacto disso vai variar em cada pessoa. Temos o exemplo de Oscar Niemeyer, nosso arquiteto maior, que com 104 anos ainda nos brinda com projetos incríveis. Esse é um cérebro incansável.

Dois filhos dos mesmos pais criados da mesma maneira. Um será um grande advogado, enquanto o outro jamais conseguirá uma vida equilibrada, flertando mesmo com o crime. A cultura é refém do cérebro?

A inteligência em suas múltiplas facetas resulta de uma interação entre a genética e o ambiente, como já foi dito. O ambiente não é determinado apenas pelo modo como os pais criam os filhos. Há os amigos, as experiências de vida que independem dos pais, a vida interior de cada um. O indivíduo é formado pelas suas características biológicas em intensa interação com o meio. Por essa razão, os filhos podem ser muito diferentes, o que acontece com frequência.

A inteligência é um treino?

A inteligência pode ser desenvolvida pelo treinamento, mas tem diversas facetas, diversos modos de expressão. Um menino(a) com aptidão para matemática só será um matemático(a) se tiver oportunidades educacionais adequadas, além de muito estudo e treino. O mesmo se aplica aos músicos, aos atletas, enfim, a todas as profissões.

A grande missão da educação não é informar, como pode parecer a muitos, mas sim descobrir as aptidões, dando às crianças oportunidades para que sua aptidão seja “descoberta” e desenvolvida. De nada adianta afogar uma criança em informações, porque ela as esquecerá.

Mais útil e produtivo é expô-la a diferentes atividades para que ela própria descubra de qual gosta mais e possa assim, com o auxílio da escola e do professor, desenvolver o que a genética lhe deu de melhor. O treino só funciona se aplicado à aptidão da criança.   

Existem culturas que dão valor a certas especialidades – a matemática, por exemplo. Com o passar das gerações essa habilidade se torna nata?

Não. É sempre um produto da cultura, a matemática, a música, a leitura etc. A interação entre a biologia e o ambiente é muito discutida pelos cientistas, mas, apesar das divergências, já se sabe que todos os seres humanos, como conjunto, têm o mesmo repertório de aptidões, independente da cor da pele, do sexo e origem étnica.

Todos nós somos iguais perante a biologia e, ao mesmo tempo, individualmente somos muito diferentes. A função da educação, em casa e na escola, é descobrir as diferenças para estimulá-las em cada pessoa, mas as habilidades aprendidas não se tornam natas. Morrem com o indivíduo, embora possam ser passadas pela cultura e transmitidas ao longo das gerações.

Quem duvida que aprendemos muito com [William] Shakespeare, [Isaac] Newton, Cecília Meireles e tantos outros grandes homens e mulheres que nos deixaram legados de cultura e ciência? Mas se não pudermos ler e tomar conhecimento desse legado, perderemos a oportunidade de desenvolver algo semelhante a partir de nosso próprio cérebro. 

Algumas pesquisas científicas indicam que o cérebro poderia ser passado de um corpo mais velho para um mais jovem. Acredita nisso?

Por enquanto, essa possibilidade não está no horizonte. Há a possibilidade técnica de transplantar células nervosas, principalmente células-tronco, para o cérebro de pessoas adultas, mas nada indica que seja possível transplantar cérebros inteiros de um corpo para outro. Esse ainda é um tema da ficção científica.

Costuma-se dizer que jogar xadrez auxilia o desenvolvimento do intelecto. Seria isso verdade ou é correta a piada de que jogar xadrez desenvolve o cérebro para... jogar xadrez?

Jogar xadrez, ler muito, ter um projeto de vida, fazer atividade física são ações benéficas para o corpo e para o cérebro. Ajudam a performance do indivíduo em geral.


“A grande missão da educação não é informar, como pode parecer a muitos, mas sim descobrir as aptidões, dando às crianças oportunidades para que sua aptidão seja ‘descoberta’ e desenvolvida”


“Não há inteligência sem que seja desenvolvida e estimulada pelo ambiente. Ambiente significa escola, educação e cultura. Sem esses ingredientes, a inteligência não se manifesta ou fica muito aquém do ?que seria possível em circunstâncias sociais mais favoráveis”


“A inteligência não é única, é múltipla, e suas características são determinadas pela genética e elaboradas pelo ambiente. Se a genética dá a inteligência, mas o ambiente social não permite que ela seja desenvolvida, tudo será perdido”


“A habilidade física é um tipo de inteligência. (...) Um músico, por exemplo, deve ter entre suas aptidões uma enorme habilidade física. É só pensar em um pianista. Além disso, deve associar a essa habilidade a capacidade de transmitir emoções por meio do instrumento”


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