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Intérprete do Brasil

Filho do juiz e catedrático de economia política Alfredo Freyre e de Francisca de Mello Freyre, o sociólogo, antropólogo e escritor Gilberto Freyre nasceu em uma família brasileira antiga, descendente dos primeiros colonizadores portugueses.

Os estudos têm início em 1908, aos oito anos, no Colégio Americano Batista Gilreath, em Recife, capital do estado de Pernambuco, onde nasceu. No início de sua vida escolar, no entanto, o pequeno Gilberto, preocupando a família, não mostrava aptidão para as letras.

“Ele não conseguia aprender a ler”, conta a antropóloga e presidente da Academia Pernambucana de Letras (APL), Fátima Quintas, estudiosa da obra de Freyre. Na época, os pais chegaram a cogitar a possibilidade de terem um filho com limitações intelectuais. Alheios, porém, ao fato de que os “cadernos e mais cadernos” – como conta Fátima – que o menino enchia com pinturas já davam pistas do futuro pensador que ele iria se tornar.

Um dos mais importantes intelectuais do século 20 que o país iria produzir. “Acho que ele tinha uma dimensão precoce do mundo por meio da arte, do sentido da harmonia e, ao mesmo tempo, do contraste, dos paradoxos”, analisa Fátima. Segundo a especialista, Gilberto Freyre sempre afirmou “querer a empatia” além da compreensão. “Ele queria ultrapassar a compreensão como método”, esclarece.

“Max Weber [1864-1920, intelectual alemão considerado um dos fundadores da sociologia] já usava esse recurso, mas Gilberto queria ir além.” Para o pensador, diz ainda Fátima, compreender era importante, mas ele desejava mais. “Precisava sentir o outro. Ou seja, remeter à sua memória, à sua própria história, sua própria narrativa, como exemplo da coletividade. Tanto que ele chama Casa-Grande & Senzala [1933] de uma ‘autobiografia coletiva’.”

Memória do corpo

A curadora e crítica de arte Clarissa Diniz – organizadora, juntamente com Gleyce Heitor, do volume dedicado a Gilberto Freyre na Coleção Pensamento Crítico (Funarte, 2010) – analisa que, mais do que “biográfico”, Casa-Grande & Senzala, o livro mais conhecido e ainda hoje mais vendido de Freyre, trouxe para a teoria “a experiência vivida pelo seu corpo”.

O que se pode notar, segundo afirma, quando o autor fala, na obra, sobre a culinária do Brasil colonial como elemento que aproxima classes, gêneros e origens. “Ele recorre à memória do seu corpo, de já ter comido aquilo”, avalia Clarissa. “De ter preparado aquilo, de ter conhecido os mais diferentes sabores, por ter aprendido a comer cada comida com um repertório de gestos diferentes, específicos.”

Esse seria, ainda segundo a organizadora, um dos diferenciais na abordagem sociológica do país. Um misto de vivência própria com memória coletiva, de saberes empíricos – de quem nasceu no Nordeste brasileiro no início do século 20 – com um conhecimento adquirido ao longo de 65 anos de estudos. Trajetória durante a qual ele reuniu um acervo de 40 mil volumes, hoje disponíveis para pesquisas na Fundação Gilberto Freyre, no bairro recifense de Apipucos, que ele próprio idealizou e ajudou a criar – em março de 1987, quatro meses antes de sua morte, aos 87 anos.

“Método da saudade”

Fátima Quintas observa que Gilberto Freyre “tem muitos pioneirismos”. O primeiro deles, segundo ela, revela-se em sua metodologia, que por conta de uma espécie de repulsa ao distanciamento frio do estilo acadêmico – embora sem perder o rigor científico – pareceu, aos olhos de seus contemporâneos, completamente heterodoxa.

“Ele usou todos os métodos que dessem a ele possibilidade de abordar um fato social”, conta a antropóloga. “Buscou entender o humano em sua complexidade, adentrando caminhos absolutamente inovadores.”

Ousado, como adjetiva a especialista, Freyre inclui em sua bancada de trabalho elementos até então desprezados, como diários pessoais, tradições orais e até mesmo, como ele mesmo chamava, o “método da saudade”, recurso que julgava ser muito útil por se apoiar na memória. “E essa saudade é absolutamente subjetiva”, segue Fátima. “Mas é algo que revela o inconsciente coletivo de uma época. Ele diz que queria chegar ao passado ‘como quem toca em nervos’, com muita cautela.”

História da vida privada

Outro pioneirismo de Gilberto Freyre, ainda na análise da presidente da APL, foi deixar de lado os fatos grandiosos, que geralmente monopolizam a grande história, para se voltar à vida cotidiana e íntima, traço que ele já evidencia em 1922, quando defende a tese Vida Social no Brasil em Meados do Século 19, ao concluir o doutorado em ciências políticas, jurídicas e sociais, na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, onde foi estudar em 1917.

Nesse período se tornou bacharel em artes liberais com especialização em ciências políticas e sociais, na também norte-americana Universidade de Baylor. “Ele vai deixar os fatos grandiosos e partir para o estudo da vida privada”, retoma Fátima, ressaltando que essa linha de abordagem sociológica só seria institucionalizada, em 1929, com o surgimento da École des Annales (“escola dos anais”, em tradução livre do francês), criada pelos pensadores franceses Lucien Febvre (1878-1956) e Marc Bloch (1886-1944) e que passou a dar conta dos fatos até então marginalizados pelas narrativas oficiais.

Segundo Fátima, Freyre dizia querer “olhar pelo buraco da fechadura”, flagrar o que acontece no anonimato, mas que sustenta a construção de uma cultura. “Para ele, é na vida íntima que as coisas acontecem”, diz. “Os costumes, os hábitos, os valores. Você não vê Gilberto estudando fatos heroicos. E isso é absolutamente pioneiro e original.”

Antes de tudo, um escritor

Outro ponto importante na obra de Gilberto Freyre é a pluralidade temática de seus registros. Por isso ele dizia ser, antes de tudo, um escritor, como revela Sonia Maria Freyre Pimentel, presidente da Fundação Gilberto Freyre e filha do sociólogo. “Era como ele gostava de se ver, não como antropólogo, sociólogo, historiador social ou qualquer outro desses títulos”, afirma Sonia. “Ele dizia que a coisa que ele sempre quis fazer na vida era escrever.”

É dessa forma que ele conseguiu contar a história do país partindo de elementos tão inovadores para a época, como o açúcar, por exemplo, que aparece no livro que ele batizou com o nome do produto, escrito em 1939 e que, na primeira metade, analisa a evolução do país por meio dessa produção e, na segunda, traz uma série de receitas. “Absolutamente original”, define Fátima Quintas. “Ele rompe com todos os princípios e pressupostos de que a ciência tem que ser ortodoxa, hermética e chata, escrevendo alguma coisa alegre, de maneira coloquial e sem perder a força, a firmeza.”

Esse é o gancho que fisgou o diretor de teatro – nascido em Recife, mas que vive em São Paulo – Newton Moreno, da Cia. Os Fofos Encenam, que apresentaram o espetáculo Assombrações do Recife Velho, no Sesc Pompeia, uma livre adaptação do livro homônimo de Freyre, de 1958 (veja boxe Mistérios do intelecto). “Com esse livro eu comecei a me aproximar da obra de Gilberto”, informa Moreno.

“O que me encantou foi justamente a riqueza das imagens que há no texto dele. São figuras do fantástico, figuras da história do país e da história da minha terra, da minha cidade.” Para o diretor, a obra do sociólogo destaca-se por ser científica e ao mesmo tempo literária. “A prosa é boa”, diz. “O que torna a leitura diferenciada. E talvez também por isso ele me encante, porque eu reconheço uma outra qualidade ali dentro, para além do olhar científico.”

Amigo do tio Flag

Para os conhecedores de seu pensamento, Gilberto Freyre era um polêmico. Falar da força da miscigenação, como ele fez em Casa-Grande & Senzala, por exemplo, num momento em que o Brasil se via (ou se queria) branco, foi, nas palavras de Fátima Quintas, um choque.

Mas havia pessoas que não enxergavam nada disso. Pequenos olhares que o viam apenas como um pai “normal”, que leva os filhos ao circo – quando não estava viajando, o que ele fazia demais, como lembra a filha Sonia. “Eu só notei que meu pai era diferenciado, vamos dizer assim, depois de mais moça”, conta a ex-dona de casa que, com a morte da mãe, em 1997, assumiu a presidência da Fundação Gilberto Freyre.

“Porque era tudo muito normal na minha infância. Não se fazia notar, em casa, que os amigos do meu pai eram a nata da intelectualidade brasileira. Eles eram meus tios, como os chamávamos. Sabe quem era tio Flag? Manuel Bandeira”, diverte-se, lembrando o apelido com a palavra “bandeira” em inglês (flag) dado ao poeta recifense que foi uma das figuras-chave da Semana de 1922. “Para você ver como era normalzinha essa convivência.”

Sonia conta ainda que a fundação consegue se manter até hoje com o dinheiro dos direitos autorais das obras do pai – que têm como “carro-chefe” Gasa-Grande & Senzala, informa. Embora, ela revela, o livro preferido do pai fosse Sobrados e Mocambos, de 1936, por considerar que suas ideias estivessem mais maduras. “Ih, mas deu uma confusão enorme com esse livro.

Rodrigo Mello Franco de Andrade [1898-1969, jornalista e escritor] disse: ‘Gilberto, que título é esse? Mude esse nome’. Mas ele respondeu: ‘Depois de batizados meus filhos não mudam de nome’.” Sonia conclui ressaltando que, apesar do apreço por Sobrados e Mocambos, “no coração mesmo” Gilberto Freyre tinha Nordeste, de 1937. “Mas esse era porque tinha sido feito com muito amor pela terra dele. Porque meu pai era brasileiro mesmo.”


Brasilianistas

Nomes como Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda e Paulo Prado também fizeram vir à tona um Brasil desconhecido

Quem quiser montar uma biblioteca que dê conta da história e da cultura brasileira em toda sua impressionante diversidade (de lendas, sotaques, costumes, cores e gostos) deve incluir, além de volumes como Casa-Grande & Senzala (1933) e Brasis, Brasil e Brasília (1968), de Gilberto Freyre, também obras como Macunaíma (1928), de Mário de Andrade (1893-1945), Retrato do Brasil: Ensaio sobre a Tristeza Brasileira (escrito entre 1926 e 1928) de Paulo Prado (1869-1943); e Raízes do Brasil (1936) de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) – e isso para formar uma bibliografia básica.

Ainda em décadas em que o Brasil buscava seu reflexo na Europa, essas figuras – juntamente com outras, como Caio Prado Júnior (1907-1990) – colocaram todos os seus recursos a serviço de pesquisas que revelaram as muitas nuanças do verde, amarelo, azul e branco.

Mário de Andrade – O autor de Macunaíma fez uma viagem na década de 1920 por todo o Norte e Nordeste do país, durante a chamada Missão de Pesquisas Folclóricas, que registrou costumes, ritmos e danças. O material compilado aparece na caixa Missão de Pesquisas Folclóricas – Mário de Andrade, com seis CDs, três catálogos e um livreto, lançada, em 2006, pelo Selo Sesc SP em parceria com a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.

Sérgio Buarque de Holanda – Além do livro citado, outra obra de referência do autor é Do Império à República, publicado em 1972. O trabalho percorre a história política do país, abordando desde a crise do Império Brasileiro, no final do século 19, até o modelo adotado pela nossa República – que, na época da publicação do livro, estava mergulhada em uma ditadura militar.

Paulo Prado – Retrato do Brasil: Ensaio sobre a Tristeza Brasileira, livro que levanta questões sobre a formação da nacionalidade brasileira, é uma de suas obras mais conhecidas. Modernista e contemporâneo dos movimentos de vanguarda, Prado esteve diretamente ligado à produção intelectual e artística de sua época.

Caio Prado Jr. – Mais focado na formação econômica do país, montou uma tese que apresenta um Brasil resultante da colonização predatória e mostrou de que formas esses elementos fundamentais, tanto no plano econômico como no social, influenciaram a formação e evolução da história do país.



Mistérios do intelecto

Assombrações do Recife Velho, a partir de livro de Gilberto Freyre, vira espetáculo teatral com histórias de terror 100% brasileiras

“Hesito em começar esta relação de casos de visagens recifenses com a história do Boca-de-Ouro por saber que noutras cidades do Brasil também tem aparecido essa figura meio de diabo, meio de gente, pavor dos tresnoitados.” Assim começa o conto O Boca de Ouro, parte do livro Assombrações do Recife Velho (foto), de Gilberto Freyre, publicado originalmente em 1955 – e que tem edição de 2008 pela Global Editora.

A história é uma das que foram transportadas ao teatro pela Cia. os Fofos Encenam, sob direção de Newton Moreno, em espetáculo que leva o mesmo nome do livro de Freyre e que ficou em cartaz, no Sesc Pompeia, de 14 a 17 de fevereiro. E ela não é a única. Na Rua do Encontro, criada pelo grupo como palco para esses contos de terror 100% brasileiros, ouvem-se também causos de lobisomens e do Papa-figo – figura que saía por Recife raptando crianças para arrancar-lhes o “figo”, como os negros da época pronunciavam a palavra fígado –, mitos também coletados pelo sociólogo.

Juntaram-se a essas outras lendas, pesquisadas pelo próprio diretor para compor a peça. “No roteiro final, tem histórias que vêm do livro do Gilberto e outras que surgiram nessa pesquisa que eu fiz, nos mesmos lugares que ele percorreu para escrever o livro”, explica Moreno. “Até por isso eu chamo de livre adaptação, porque nem todas as histórias da peça foram tiradas de lá. Mas, claro, ele [Gilberto Freyre] é o mote, é o que detonou todo o projeto.” A empreitada teve início em 2003, quando o diretor conseguiu verba do extinto Programa Bolsas Vitae de Artes, para adaptar a obra de Freyre. A peça estreou então em 2005.

Seis anos depois, ela é resgatada do baú “dos Fofos” para o palco do Sesc. “O espetáculo se divide em dois lugares: a história e o mistério”, comenta Newton Moreno, acrescentando que são os próprios atores os responsáveis pela música – ao vivo e que às vezes ajuda a contar a história –, pela sonoplastia e pela contrarregragem. “É uma discussão sobre a morte, o mundo dos mortos e os fantasmas. E fica a dúvida se aquilo aconteceu ou não.”

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