Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Palco de compreensão

O diretor, autor e crítico de teatro Sérgio de Carvalho é um dos fundadores da Companhia do Latão, grupo teatral paulista que desenvolve desde 1997 uma pesquisa artística voltada para a reflexão crítica sobre temas brasileiros atuais. Formado em jornalismo e mestre em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), o encenador foi responsável por conduzir o estudo da obra de Bertolt Brecht (encenador, poeta e dramaturgo alemão, 1898-1956) como modelo para o teatro épico-dialético no país. “Brecht traz uma revolução, a marca própria ligada à dialética na qual tenta aplicar o método das contradições que vem do marxismo no campo da arte”, teoriza Carvalho, em depoimento à Revista E.

Com a primeira direção autoral feita do texto A Morte de Danton, do dramaturgo alemão Karl Büchner, Sérgio contribuiu para que artistas formassem o Latão em 1997. Durante a conversa expôs o método criativo e a pesquisa dialética da companhia, que tem em seu repertório três obras fundamentais de Brecht: A Santa Joana dos Matadouros (1997), Os Dias da Comuna (1999) e O Círculo de Giz Caucasiano (2006), além de outras peças reunidas no livro Companhia do Latão Sete Peças (Cosac Naify, 2008).

Quanto ao Ópera dos Vivos, espetáculo mais recente do Latão, será apresentado de 15 de janeiro a 13 de março (aos sábados e domingos) no Sesc Belenzinho. O projeto terá ainda um especial com série de debates, oficinas e vídeos. A seguir, trechos: 

Mundo da arte

Comecei no teatro pelo interesse literário. Gostava de assistir a espetáculos e, ao mesmo tempo, lia muitas peças. Cursei faculdade de jornalismo e de administração pública, mas, como gostava, sobretudo, de tragédias gregas, procurei fazer o curso de artes cênicas da USP. O contato com a prática teatral me levou a me aproximar primeiro da dramaturgia e da teoria do teatro, depois da direção teatral.

Fui para o teatro porque ele acolhe a mistura de várias artes, pensa na representação do mundo, transforma-se em lugar de vários ideais. Ele acolhe pessoas com interesses em inúmeras áreas. Eu era um deles, pois gostava de literatura, jornalismo, economia, e o teatro foi como uma junção de tudo isso. Eu via a universidade como diversão porque pensava que trabalharia com jornalismo. Tanto que não me graduei em teatro, mas fiz mestrado em artes cênicas.

Não gostava de trabalhar como ator, mas na universidade era obrigado. Apesar disso, ela foi boa para parcerias, conforme fiz com Antônio Araújo, que formou o Teatro da Vertigem. Ainda como estudante, nutri muito interesse pela teoria porque passei a ver o teatro pelo Stanislavski [ator, diretor e pedagogo russo Constantin Stanislavski, 1863-1938] e Brecht. Fiquei fascinado mais pela reflexão do que pela própria prática do teatro. Isso é mais difícil de ocorrer, porque os estudantes querem ir direto para a prática sem refletir primeiro, demonstrando certo anti-intelectualismo.

Direção teórica

O déficit crítico existente no teatro é grande, talvez maior que nas outras áreas artísticas. Atualmente, o pensamento crítico e teórico está aquém da prática. Os próprios artistas que se enveredam pela prática sentem a necessidade da teoria. E, por isso, vários grupos de teatro vão atrás da formação que não tiveram no início. O trabalho da Companhia do Latão, por exemplo, é muito marcado pelo interesse teórico.

A companhia surgiu, aliás, num dado momento de tendência dos grupos teatrais, no qual percebi que, se quisesse participar da autoria da cena de modo mais avançado, eu também precisaria entrar com mais força no campo da direção. No início, dirigi apenas por diversão até resolver fazer um projeto de direção em cima de um texto de que gostava muito: A Morte de Danton, de Büchner [escritor e dramaturgo alemão Karl Georg Büchner, 1813-1837].

Considero esse trabalho como minha primeira direção autoral, que é onde o Latão nasce. Eu já sabia que pretendia uma direção meio teórica, um espetáculo reflexivo, no qual o espectador sentisse que aquilo não era uma peça, mas uma espécie de teoria junto com a peça. E, por isso, eu a chamei de Ensaio para Danton, pelo qual o público assistia a uma desmontagem da máquina teatral. A Companhia do Latão nasce dessa experiência, que me fez optar por estudar a narrativa, o teatro épico e trazer para o palco a compreensão sobre como o teatro pode discutir visões de mundo e como a própria forma artística pode ser discutida.

Pesquisa dialética

A companhia escolheu estudar Brecht como referência, porque percebemos que tínhamos de fazer teatro narrativo em algum nível. Só que teatro épico não permite canção, cor e narrador, mas é preciso discutir o assunto da pesquisa. Vim de uma formação universitária muito formalista, que estuda formas de arte, o ator, as técnicas. Brecht nos exigia, porém, discutir os assuntos, ou seja, antes da pesquisa formal e da linguagem, tem de vir uma pesquisa temática.

Então é nessa espécie de dialética, entre forma e assunto, entre uma coisa que não se separa da outra, que o Latão começou a fazer sua pesquisa. Mas para levar adiante o projeto brechtiano, precisávamos repensar a nossa condição. Isto é, para discutir cultura era preciso levar em consideração o contexto do país, da cidade de São Paulo, das coordenadas atuais do capitalismo global.

O Latão passou a perceber que para radicalizar esse processo épico e dialético, ele tinha de buscar entender a conjuntura atual do país. Ou procurar entender a cultura atual da produção artística de São Paulo, como foi proposto no projeto Ópera dos Vivos. O nosso trabalho começa, portanto, a ter uma linha de pesquisa ligada às temáticas brasileiras. E isso ocorre não por nacionalismo, mas por compreensão da nossa situação histórica. O esforço de compreensão histórica em que uma peça se insere ficou forte no trabalho do Latão.

Trabalho de contradições

Há muitas formas de teatro épico na dramaturgia. Mas o Brecht traz uma revolução, uma marca própria ligada à dialética, pela qual tenta aplicar o método das contradições que vem do marxismo no campo da arte. Tudo no trabalho do Brecht é feito em cima das contradições, que tem a ver com a própria contradição da arte dentro do aparelho produtivo. Ele é um dos artistas do século 20 que mais perturbam o aparelho produtivo da arte, do teatro. E, com isso, ele conseguiu trazer uma renovação para a dramaturgia também.

Quem pensa num teatro crítico, interessado em sociedade, na crítica da ideologia precisa passar pela obra de Brecht. O Latão montou dois textos grandes dele que foram O Círculo de Giz Caucasiano e Santa Joana dos Matadouros. Já em outros usamos a teoria brechtiana, mas procuramos reinventá-la. Quando fizemos o Círculo de giz, nos perguntamos o que significa debater atualmente o direito a propriedade num país latifundiário. Procuramos fazer uma representação artística que atualizasse o debate. O Latão passou, portanto, a atrair espectadores de outros campos, como sindicatos, movimentos sociais, movimento estudantil. Ele trouxe gente que não estava mais indo ao teatro.

O Circulo foi ligado em 2006 ao cinquentenário de Brecht. Mas a montagem que fizemos agora é quase pós-brechtiana e curiosa, porque é muito livre e autoral. O Latão trabalha com muita liberdade e reinvenção sobre o Brecht, e é capaz de atualizar e renovar a obra dele. A companhia tem um ponto de vista específico com relação à obra do Brecht. Acho que o nosso trabalho todo é a experimentação variada sobre a coletivização das relações sobre o coletivo do próprio trabalho, sobre a politização do pensamento.

“Brecht é um dos artistas do século 20 que mais perturbam o aparelho produtivo da arte, do teatro. Ele conseguiu trazer uma renovação para a dramaturgia”.