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A distância já não é problema

por Mauricio Monteiro Filho

Nos 27 anos em que ficou preso na África do Sul, Nelson Mandela teve muito em que pensar. Sua visão política e sua defesa das liberdades civis já são bastante conhecidas nos quatro cantos do planeta, e lhe renderam o prêmio Nobel da Paz, em 1993. O que é pouco divulgado sobre a epopeia do líder sul-africano é que, ao longo de boa parte dos anos que passou na prisão, ele foi também um estudante de direito da Universidade de Londres. Mandela chegou a passar em alguns exames em 1963, mas, por conta da mão pesada do regime do apartheid que dividiu seu país, nunca conseguiu obter seu diploma oficialmente. Para isso, teria de realizar provas finais presencialmente, o que nunca lhe foi permitido.

A biografia de Mandela, crivada de prêmios e, ironicamente, diplomas honorários, tornou-o também o mais célebre aluno do sistema de educação a distância (EAD) do planeta. Porém, se depender da escalada vertiginosa que essa modalidade de ensino vem apresentando no mundo todo, inclusive no Brasil, pode-se prever que muitos outros estudantes com cursos a distância no currículo venham a receber reconhecimento semelhante.

A própria Universidade de Londres, na qual Mandela quase se formou, dá uma amostra disso. Entre os alunos que frequentaram suas aulas por correspondência, há outros quatro ganhadores de prêmios Nobel, nas mais variadas áreas: Frederick Gowland Hopkins, em 1929, pela descoberta do que hoje conhecemos por vitaminas, Ronald Coase, Nobel de Economia de 1991, e os laureados em literatura Wole Soyinka, em 1986, e Derek Walcott, em 1992. E a lista de alunos célebres do sistema de EAD da instituição continua com H. G. Wells, originalmente formado em zoologia, mas que se notabilizou com obras fantásticas de ficção científica, como A Guerra dos Mundos.

Por muito tempo, foi nesse campo que a EAD figurou no imaginário coletivo: o da fantasia. O desconhecimento sobre a prática a tornou alvo de todo tipo de preconceito e ceticismo. Entretanto, nos últimos anos, essa modalidade de ensino vem conquistando espaço e mostra que pode revolucionar até as formas tradicionais de aprendizagem. Mesmo áreas como a saúde e a defesa, que pareciam apresentar barreiras intransponíveis à adoção do sistema, hoje já contam com forte participação de cursos não presenciais e recursos virtuais como apoio ao formato tradicional. Investimentos em melhor formação dos tutores e gestores de conteúdo e apoio público por meio de regulação garantem o aumento da participação da EAD no sistema educacional brasileiro e mundial.

Para quem ainda mantém preconceitos, os números desse formato, que vem moldando cada dia mais o que será o futuro da escola e da transmissão de conhecimento, são eloquentes. A Universidade Aberta do Paquistão tem 1,8 milhão de alunos. Na Índia, a Universidade Indira Gandhi atinge ainda mais público: 3,2 milhões.

Segundo o professor Fredric Michael Litto, da Associação Brasileira de Educação a Distância (Abed), não é à toa que se verifica tamanha procura por EAD. “A aula presencial continua muito tradicional. Preciso admitir que uma palestra de 45 minutos, bem feita, é um voo intelectual. A sala de aula, entretanto, não permite a colaboração que a sociedade moderna está exigindo de futuros executivos e profissionais”, explica.

Diversidade de meios

A Abed define, em termos gerais, a prática como “a modalidade de educação em que as atividades de ensino-aprendizagem são desenvolvidas majoritariamente (e em bom número de casos exclusivamente) sem que alunos e professores estejam presentes no mesmo lugar à mesma hora”. Ela se contrapõe à educação tradicional, chamada de presencial, mas também pode complementá-la. Atualmente, já é utilizada da educação básica ao ensino superior, em pós-graduação, capacitação interna em empresas – por meio de cursos corporativos – e em órgãos públicos, bem como na formação técnica, entre outras opções.

Na opinião de Litto, uma das características da EAD é a mudança de papel do professor. “Ele não é tão importante como na educação presencial. Ainda é o arquiteto do curso, mas, uma vez passado o conteúdo, deixa de ser tão essencial. A EAD não se baseia em uma só pessoa, mas numa equipe”, diz. Uma peça fundamental desse time é o tutor, responsável por acompanhar de perto o aluno e ajudá-lo a resolver suas dúvidas.

A partir daí, a mágica fica por conta da diversidade de meios de comunicação e tecnologias. Os cursos de EAD utilizam um arsenal de mídias, isoladas ou combinadas, como material impresso distribuído pelo correio, transmissão de rádio ou TV, fitas de áudio ou de vídeo, redes de computadores, sistemas de teleconferência ou videoconferência e telefone.

Esse pacote comunicacional explora todo o potencial de interatividade que a EAD permite, além de outras vantagens. Segundo o professor Litto, uma das mais evidentes é a assincronia. “É possível alterar espaço e tempo na educação online, favorecendo a conveniência do aluno”, explica.

Campeão de audiência

O sistema, segundo o CensoEAD.br, extenso estudo realizado numa parceria entre a Secretaria de Educação a Distância (Seed) do Ministério da Educação (MEC), a Fundação Getúlio Vargas Online e a Abed, já atingia 2.648.031 alunos em 2008, matriculados em cursos de diversos níveis. De 2000 a 2008 a modalidade registrou crescimento de impressionantes 45.000%, de acordo com dados da Abed – uma onda de expansão que também impulsiona os fornecedores de serviços, insumos e produtos para o mercado de EAD. Em 2009 a tendência se manteve, com o acréscimo de mais de 300 mil inscritos.

A avaliação dos dados levantados pelo CensoEAD.br permite traçar um perfil do aluno de educação a distância. Reforçando a busca feminina por desenvolvimento para o mercado de trabalho, a maioria dos estudantes são mulheres, 54%. Em termos etários, a faixa que mais procura o novo formato de aprendizagem tem entre 35 e 39 anos (30%), seguida pela de 25 a 29 anos (26%) e pela de 30 a 34 anos (21%).

Socioeconomicamente falando, o nível de renda da maioria dos alunos (29%) fica entre um e três salários mínimos. Em segundo lugar, ambos com 18%, empatam aqueles que recebem de três a cinco e de cinco a dez salários mínimos. Os últimos dados do CensoEAD.br também identificaram as instituições que oferecem cursos a distância por área de atuação: 58% são órgãos de governo, 22% operam no setor de serviços, 8% na indústria e 4% no comércio.

Para o alto e avante

Foi em clima de celebração, em virtude dos números auspiciosos, que aconteceu em Foz do Iguaçu (PR) o 16º Congresso Internacional de Educação a Distância, organizado pela Abed, entre os dias 31 de agosto e 3 de setembro de 2010. E, confirmando a espiral positiva, o evento também bateu recordes. Foram 1,4 mil pessoas presentes, entre convidados e expositores, e 160 trabalhos científicos apresentados por especialistas de vários países sobre temas relativos à EAD. “Foi um sucesso”, avalia o professor Litto.

Logo na primeira mesa do encontro, o professor Vijay Kumar, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), demonstrou que o mundo todo vive uma onda de expansão tanto da oferta de conteúdos e do número de instituições envolvidas como do total de acessos no universo da EAD. A rede mundial de cursos livres OpenCourseWare Consortium congrega mais de 200 universidades e associações mundo afora, que fornecem materiais educacionais digitais de nível superior. Somente nesse segmento de ensino, de que participam instituições renomadas como a Universidade de Yale e o próprio MIT, são cerca de 10 mil cursos online e 2 milhões de acessos mensais.

A filosofia por trás desses cursos livres introduz importantes inovações na educação do século 21, que levariam muito mais tempo para acontecer na rotina de ensino e aprendizagem se dependessem apenas da renovação dos métodos tradicionais, que sabidamente evoluem a passos lentos.

A principal dessas mudanças é a criação de um ambiente colaborativo, menos individualizado. Segundo o professor Josep Duart, da Universidade Aberta da Catalunha, isso é viabilizado pelos modelos educativos do chamado “e-learning” (modalidade de EAD que se apoia exclusivamente nos meios eletrônicos, seja em rede ou não). Em sua apresentação no congresso, Duart enfatizou que o câmbio tecnológico em curso leva “de conteúdos fechados a abertos, do software comercial ao livre, de um único formato – o livro – a multiformatos”. Isso deve impactar a própria estrutura física de ensino: os campi se tornariam plataformas, no entender do catalão, flexíveis, interativas, personalizadas segundo o gosto dos usuários e adaptáveis a professores e alunos.

Nesse panorama, redes sociais e recursos tecnológicos – computadores, smartphones, iPads, Facebook, Twitter e outros – se tornam ferramentas de ensino e aprendizagem, ocupando o espaço antes monopolizado pelo quadro-negro e pelos livros didáticos. No que tange aos telefones celulares inteligentes, já existe uma disciplina específica em EAD que começa a gerar frutos: o “m-learning”, algo como aprendizado móvel.

Segundo Regina Helena Silva Ribeiro, coordenadora do Núcleo de Tecnologias Aplicadas à Educação do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac) de São Paulo, por conta dessas transformações, a EAD derruba paradigmas. “Essa é uma modalidade da educação em que é possível interagir com qualquer pessoa do mundo, por meio do ambiente virtual, utilizando os recursos disponíveis, que são colaborativos, como redes sociais e chats”, diz ela. “Nossos alunos aprendem por essas mídias. E isso representa uma necessidade que vem da sociedade e de que a educação presencial não consegue dar conta sozinha”, completa.

Inclusão

Apesar de estar fortemente associada às novas tecnologias e aos novos tempos, a modalidade tem sua origem na mais analógica das mídias e tem uma história secular. Os primórdios da história da EAD remontam aos cursos por correspondência – o da Universidade de Londres, pioneira no ramo, comemorou, em 2008, 150 anos.

Depois da correspondência, foi a vez do rádio. O Senac, no final da década de 1940, já oferecia conteúdos por essa via. Em seguida, vieram a TV, a teleconferência e, por fim, a rede mundial de computadores – a grande responsável por alavancar os números da EAD na última década. “Com a internet, a modalidade realmente explodiu”, avalia o professor Litto. “Até dois anos atrás, a maioria dos alunos ainda usava as telessalas. Porém, com a disseminação da rede, houve uma migração para a internet, com a utilização de aulas gravadas ou mesmo sem uso de vídeo”, acrescenta.

A experiência do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) evidencia essa alteração de plataformas. Segundo a entidade, que desenha e fornece cursos de EAD, a demanda atual já inclui a exigência de que os conteúdos sejam ofertados pela web. “Hoje, as empresas já falam em e-learning”, conta Airton Almeida Moraes, supervisor de EAD do Senai de São Paulo.

O perfil do público atendido pelo Senai demonstra a efetividade de outra virtude da EAD: a inclusão. Um dos benefícios mais reconhecidos dessa nova forma de transmissão de saberes é possibilitar o acesso à educação àqueles que não teriam condições. Isso vale tanto para portadores de deficiências como para pessoas de baixo poder aquisitivo. Em ambos os casos, a EAD está se mostrando eficaz.

Como atestam os próprios dados do CensoEAD.br, a maioria dos alunos que recorrem a esse formato de aprendizagem tem baixa renda. No caso do Senai, para complementar a formação desses estudantes, a entidade oferece a possibilidade de treinamento prévio em informática básica, para os que necessitem, garantindo assim a inclusão digital.

Também por conta disso, a instituição vivencia um boom ainda mais intenso que a média nacional. Em 2007, havia 2.331 alunos matriculados em cursos oferecidos pelo Senai. No ano seguinte, eram 14,8 mil. Em 2009, 40.813. E a projeção para 2010 é de cerca de 63 mil. “Estamos em um momento muito bom para a EAD no Senai. Ofereceremos 20% das disciplinas de todos os cursos superiores nessa modalidade”, diz Airton.

Para isso, o aprimoramento tem de ser constante. No início de 2010, ele e outros três profissionais da entidade visitaram 11 instituições que trabalham com EAD no Canadá, país que é referência mundial no segmento, para buscar inspiração nas melhores práticas.

Resultados

Uma preocupação do Senai é manter o cuidado quanto a um componente bastante sensível quando se trata de EAD: o atendimento ao aluno. Afinal, essa modalidade de ensino e aprendizagem requer atenção na preparação dos conteúdos dos cursos, mas exige tanto, ou mais, dedicação na hora de resolver as dúvidas dos estudantes. É aí que entra a chamada tutoria, por meio da qual profissionais atendem às necessidades dos alunos, depois de transmitidos os conteúdos.

É natural que as instituições sérias que trabalham com EAD tenham toda a cautela em relação a esse atendimento, que representa o maior diferencial entre um serviço ruim e um bom. Elas venceram uma grande barreira para gozar do reconhecimento que começam a experimentar: o preconceito.

A atitude receosa em relação aos cursos de EAD, que ainda permanece em alguns setores do mercado, tem sua razão de ser. O próprio professor Litto explica: “Com a expansão, como ocorre no ensino presencial, surgem instituições que visam ao lucro e não à qualidade”.

A tutoria é um bom medidor dessas deficiências. Segundo Litto, há cursos em que existe um profissional responsável pelo atendimento às dúvidas de 500 a 800 inscritos. “Para os alunos, é péssimo, pela demora na resposta às perguntas”, diz ele. “Há também os que dizem que o estudante brasileiro não gosta de ler e por isso condensam conteúdo de apostilas. Em vez de elevar o nível do aluno, baixam o do texto”, avalia.

Como efeito disso, o MEC, através da Seed, já começa a adotar uma postura repressiva. Enquanto de 2000 a 2008 só foram registrados credenciamentos de instituições de ensino superior, em 2009 já houve um descredenciamento, e no ano passado, dois.

De acordo com Litto, as reservas em relação ao sistema se manifestam até em nível nacional. Um exemplo seria que o Brasil foi o último país entre aqueles com população superior a 100 milhões de pessoas a criar sua universidade aberta. Segundo o secretário de Educação a Distância do MEC, Carlos Bielschowsky, em sua apresentação no congresso de Foz do Iguaçu, a Universidade Aberta Brasileira (UAB) representa uma estratégia para democratizar “o ensino superior também por meio da EAD”. Hoje, a UAB é composta por 92 instituições públicas de ensino, que têm a previsão de atender 500 mil alunos em 2012.

Os especialistas, no entanto, avaliam que a tendência é de diminuição do preconceito. É o que pensa Regina Ribeiro, do Senac: “Isso vai se dissolver nos próximos anos. E as empresas que ficarem serão as que têm uma proposta pedagógica adequada”.

A melhor forma, contudo, de combater essas distorções é com resultados. Um bom exemplo está em um estudo de 2007 publicado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). O documento confronta as avaliações nas modalidades de educação presencial e a distância no Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade/2006). Os alunos de EAD se saíram melhor em sete de 13 áreas: pedagogia, biologia, física, matemática, ciências sociais, administração e turismo.

Nada disso é novidade para Airton Almeida, do Senai. “O gestor que conhece a EAD vai escolher contratar alunos dessa modalidade, pois sabe que vai dar uma vaga a alguém mais disciplinado, autoconfiante e que tem maior capacidade de organizar seu tempo”, garante. “Nas empresas em que ainda há preconceito, ele dura 15, 20 minutos. Quando fazemos nossa apresentação, mostrando as possibilidades de interação entre os alunos, seus colegas e docentes, ele cai por terra rapidamente”, complementa.