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Passo a passo com o público

Ilustrações: Marcos Garuti

Uma das dificuldades encontradas na formação de público para a dança contemporânea é o fato de esta ter-se tornado campo de experimentação de linguagem que, muitas vezes, mantém um diálogo fechado consigo mesmo. Porém, muitos artistas se mostram preocupados com tal situação e se empenham em criar estratégias de aproximação dos espectadores.

Em artigos inéditos, o bailarino e coreógrafo Sandro Borelli e a pesquisadora e curadora em dança Cássia Navas analisam o cenário e propõem soluções para a questão.


Danças para todos! (mas nem todas para todo mundo)
por Cássia Navas

Entramos na sala de espetáculo. Uma bailarina está deitada de costas para a plateia, em um palco vazio, sem música, luz especial, de cortinas abertas. Conversamos, procuramos nossas poltronas e, com sorte, vamos paulatinamente aquietando a respiração e as ideias, deixando para trás o acontecido em dia provavelmente atribulado. 

A bailarina segue imóvel, atuando em espera. O espetáculo não se inicia e começamos a nos perguntar: Quando começará? Quando esta moça vai dançar? Quando começará a coreografia, enfim A resposta: o espetáculo já começou e durante todo esse tempo estivemos dele participando, ao presenciar alguém que não se move frente a um conjunto de pessoas que se move à espera da dança de uma bailarina. Alguns estariam se perguntando – “Isto é dança?”. Sim, é uma das possibilidades de sua apresentação contemporânea frente a nós.

Subitamente, também me percebo impaciente frente à cena e uma torrente de questões me acossa: estou cansada de tanta dança conceitual, de tanta “não dança”, onde o movimento pode se apresentar muito ralentado para que, em cena, se estude a estrutura da linguagem, revelando-nos os processos de cada criação.

Estou cansada da ruptura com as estruturas do balé e da dança moderna pela simples afirmação do rompimento pelo rompimento. Estou cansada dessa vontade de se vender um bem cultural como o “grito da moda” e da vocação quase automatizada para um alinhamento com as tendências mundiais.

Enquanto minha mente se agitava, a bailarina lá permaneceu. Observo-a e aqueles que estão comigo, sentados ou começando a se sentar, e modifico meus sentimentos. Começo a me comover com ela, por sua solidão e quase insignificância, como que amalgamada ao chão, suas roupas confundidas com a cor da madeira.

Não fico mais esperando pela música, pelo apagar das luzes da plateia e pelo acender da iluminação da cena, por um soar de trombetas, pelo “sei mais lá o quê”. Sentada, espero que o espetáculo continue e agradeço aos artistas que colocaram no palco esses aspectos de nossa (minha) humanidade – a imobilidade e a solidão, o descanso e a necessidade do breque frente ao fluxo contínuo.

No espetáculo, é possível que essa artista esteja a nos representar em nossos momentos de angústia, imobilidade, becos sem saída, já que a vida não é feita somente de saltos, movimento e beleza, mas de impasses, paradas, contradições.

A dança trabalha com o que está no mundo, a partir das ideias corporificadas por artistas especializados em traduzir questões humanas que, colocadas no palco (à maneira da dança), transformam-se em metáforas corporais. É uma escrita específica, feita por pessoas em presença de pessoas e que, em suas origens, prescinde de estruturas mais notadamente verbais, como o que ocorre com o teatro.

No século 21, a variedade desses processos vai se materializando em diversidade de modelos e maneiras de apresentação, constituindo-se um panorama em que se mesclam obras novas (e novíssimas) a outras remontadas a partir de partituras coreográficas de outros períodos, como os balés de repertório do final do século 19 ou as criações modernas do começo do século 20.

Nesse panorama, sobretudo descortinado em cidades onde o circuito de difusão de dança se apresenta mais vigoroso, podemos refazer o ritual de “ver dança”, entre artistas e públicos estabelecendo-se um acontecimento novo – efêmero – quando os sentidos das coreografias circulam entre arte e plateia.

No palco estará a concretude de cada obra, construída a partir do modo com que aqueles artistas refletem as questões em que estamos inseridos, como comunidade. A dança nos representa em nossos conteúdos corporais: se estamos em tempos de afobação, talvez as obras se apresentem “afobadas”; se estamos em tempos de solidão, talvez se apresentem como que “solitárias”; em tempos de destruição, teremos obras “aos pedaços”; em tempos de celebração, “criações esfuziantes”.

A cena nos representa de maneira cifrada, articulando vários sistemas sígnicos complexos e, muitas vezes, trazendo, de maneira redundante, questões das quais já nos apercebemos. Mas também faz emergir novidades, invenções que rompem, mediante intensidades diferentes, com padrões conhecidos, quebrando-se com processos de repetição, que estabelecem hábitos. 

Conhecido e desconhecido, como na vida – redundância e originalidade –, se apresentam na arte, em estruturas que se refrescam, através dos tempos, a cada momento de sua fruição. Pelo fato de a expressão em dança ir se estruturando por metáforas corporais, e não por estruturas emergentemente ligadas às matrizes verbais, sobre ela, às vezes, nada há a dizer, somente reiterar que “nada temos a dizer”.

Nesse caso, tenhamos paciência, capacidade de escuta/visão e espera – o que foi dito está dito, mostrado/expresso/dançado e já chegou até nós, o que poderíamos estar dançando, à nossa maneira, o que acabamos de ver.

Com tudo isso não se quer dizer que temos que achar todas as obras interessantes e portadoras de potência estética capaz de significativamente modificar nossa noite ou nosso dia, transportando-nos para longe do “aqui e agora”, arrojando-nos em outro estado de sentimento.

Assim como a modernidade acena com a diversidade, os públicos modernos se tornam diversos e devem expressar a diferença quando da recepção das obras de arte. Mas não gostar de uma dança não deveria significar um rechaço a toda dança – notadamente a que se nomeia como “dança contemporânea”, que acaba, por força das circunstâncias de tanta ruptura pela ruptura, transformando-se em vilã.

Há muitas formas de ser dança contemporânea, de ser dança, enfim. Não gostou de uma dança? Tente outra, venha para os espetáculos como o cinéfilo que gosta de seus filmes e, portanto, de cinema, e não de “todo o cinema”.

De maneira diferente, pare e pense no que viu. Os pensamentos em dança são sussurrados, gritados, ditos, anunciados pelo corpo e suas relações, em maneira não completamente por você ignorada, visto ter/ser um corpo que se mexe em ambientes mesmos onde bailarinos estão também imersos.

Além disso, essa arte comunica como em um ritual, e nele estamos, diante de um palco (italiano, de arena ou em uma instalação), pois, a cada performance, para além de familiaridades mais contemporâneas, ainda estão a residir certos sentidos de cerimônias muito antigas, onde todos dançávamos juntos.

Depois de um tempo decorrido para a decantação dos conteúdos corporais presenciados, se o que viu não for de seu agrado, volte outra vez, para ver algo diverso – não desista. Se não achar nada diferente por aí, reclame. Escreva para o programador, para o curador, para o artista, para o jornal. Não concorde, necessariamente, com os entendimentos que temos disso tudo.

Esperamos por sua opinião, não somente em forma de palmas entusiastas, educadas ou vaias, aliás, uma atitude corporal pouco em voga. Esperamos por suas cartas, bilhetes, mensagens de/em redes sociais, através das quais alguém nos pergunte de tudo, até mesmo, se “isso é dança” e o porquê de “tanta dança contemporânea”.



Cássia Navas é ensaísta e professora-pesquisadora do Instituto de Artes/Unicamp. Foi curadora de vários espaços e programas em dança.




“A dança trabalha com o que está no mundo, a partir das idéias corporificadas por artistas especializados em traduzir questões humanas que, colocadas no palco (à maneira da dança), transformam-se em metáforas corporais”




Dança: para quem?
por Sandro Borelli

Há muito se tem discutido sobre a falta de público para a dança contemporânea. Porque as propostas estéticas e reflexivas dos atuais espetáculos não conseguem seduzir o cidadão comum a ponto de fazê-lo sair de casa e ir ao teatro?

Longe de ser um artigo acadêmico, pois esta é uma simples reflexão pautada em 33 anos de militância artística, acredito que essa situação foi criada e é alimentada por nós, explico: As ferramentas ou signos usados na construção de um trabalho coreográfico são, muitas vezes, de difícil acesso a quem nunca viu dança contemporânea.

O artista passou a ignorar o público e declarar, talvez influenciado pelo discurso de pesquisadores e acadêmicos, que dança de pesquisa ou de experimentação não se atrela às grandes plateias por um motivo básico: o público comum está a anos luz de compreender a vanguarda. Será?

Quantas e quantas vezes ouvimos de companheiros nossos: “Tem pouca gente assistindo porque é de difícil entendimento para eles”, “o público precisa conhecer os códigos adequados para apreciar a dança contemporânea”, “meu espetáculo é para pouco público mesmo”, e por aí vai...

Também se tornou comum ouvir: “Espetáculo em processo de construção”. Para nós do meio, tudo bem, mas e o público leigo? Quase sempre não é informado do que vai ver e, quando o coitado do desavisado aparece no teatro, meu Deus!!! Sai dessa dura experiência jurando nunca mais assistir a um espetáculo de dança contemporânea, quer dizer, apenas “dança dos famosos” ou coisa parecida.

Outro fato que considero determinante é o distanciamento do drama, da lágrima e da emoção. Quase tudo se tornou hermético demais. Ao público restou o incômodo de ser um boneco acomodado na poltrona do teatro, sentindo-se um idiota por não compreender o que está ali bem a sua frente.

A insistência em um discurso arrogante, no qual se acreditava que só havia vida pensante dentro dos seus próprios domínios, foi tanta que a dança acabou construindo ?sua própria armadilha e se aprisionou nela mesma. Não percebeu que se tornou ecoica, solista de sua própria coreografia, voyer de si mesma. E o público se sentiu alijado desse universo criativo.

Talvez por conta disso, a dança foi perdendo o pouco espaço que tinha na imprensa, e, consequentemente, não houve renovação de profissionais qualificados nessa área; pelo contrário, essa profissão está em vias de extinção. A crítica, salvo algumas exceções, desapareceu dos veículos de comunicação, e o que poderia ser um bom combustível para impulsionar as produções faz parte do passado.

Penso que ainda o artista esteja mais preocupado com a sua labuta, que aqui poderia também chamar de “umbigo”, do que propriamente na formação do seu público. Se o artista materializa o desejo de expressar-se em sua obra, é essencial investir na difusão de suas produções e é preciso ter para quem comunicá-las!

Não cabe mais não pensar na formação de público, não cabe mais não investir em planos de ação e numa assessoria de imprensa que trabalhe e compactue com ele. Acredito ainda que quem não puder arcar com esse ônus será obrigado a se organizar coletivamente para fazer frente às necessidades centrais de produção e divulgação.

A nós não há outro caminho, a não ser o que nos leve de fato ao coletivo. O artista não deve abrir concessões ao modelo mercadológico atual, mas deve sim, e é urgente, reconquistar as plateias que desejam ter suas almas tocadas. E a dança pode fazer isso, temos belos exemplos: Pina Bauch, Kazuo Ohno, Denilto Gomes, Umberto Silva, Marilena Ansaldi, entre tantos outros grandes artistas da dança ligados à vanguarda e à emoção.



Sandro Borelli é coreógrafo e fundador da Cia. Borelli de Dança. Suas últimas criações foram Estado Independente, inspirado na obra política e poética de Che Guevara, e Produto Perecível Laico, inspirado na poesia A Morte de Cruz e Souza. Atualmente é presidente da Cooperativa Paulista de Dança. 
 


“Quase tudo se tornou hermético demais. Ao publico restou o incômodo de ser um boneco acomodado na poltrona do teatro sentindo-se um idiota por não compreender o que está ali bem à sua frente”