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Cifras da agenda cultural

Desde a década de 1960, as principais capitais do mundo têm investido na instrumentalização da cultura. A iniciativa se intensificou com a globalização, e as atividades locais têm sido motor de turismo internacional, como ocorreu no bairro SoHo, em Nova York, e agora em Bilbao, com a implantação do Museu Guggenheim na Espanha. Cidades como São Paulo também procuram se fortalecer na área, com salas de concertos, eventos de moda, teatro e gastronomia. O valor da cultura gerado nas cidades é analisado pela economista da cultura Ana Carla Fonseca Reis e pela doutora em Comunicação e diretora científica da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Turismo (Anptur) Susana Gastal.

Cultura, economia e cidades – uma aliança criativa
por Ana Carla Fonseca Reis

“Tudo isso? Não vale o que custa!” Quem não ouviu ou disse isso? E eis que encontramos, traduzida para o vernáculo hodierno, nossa mais legítima e subjetiva avaliação de valor, frente à etiqueta de preço que a acompanha. Melhor seria dizer “valores”. Valor afetivo, valor religioso, valor espiritual,?são tantos os valores que coexistem em nosso íntimo. Mas a percepção de que, a partir de determinado ponto, os valores se rendem ao preço (“todo mundo tem seu preço?”) deixa na boca uma inquietação. E o valor da cultura?

Bem, a cultura, com a generosidade que lhe é peculiar, abarca não um, mas múltiplos valores, ainda que entendamos cultura sob a ótica restrita de bens, serviços e expressões culturais. O valor simbólico – identitário, social, intangível – é seu por excelência. Mas é nos enredamentos entre valor cultural, valor político e valor econômico que repousam muitas das trajetórias geopolíticas que vêm pautando a humanidade.

Gaius Mecenas, o alto funcionário do Império Romano que deixou registradas em trocas epistolares encomendas e mais encomendas de obras de arte para Roma, era ciente do endosso que esses trabalhos davam ao poderio do Império e de sua eficácia para representar as múltiplas influências e povos que o constituíam. Nos séculos seguintes, o apetite das classes abastadas – aristocracia, clero, burguesia – por obras arquitetônicas, dramáticas, visuais, musicais crescia não só pela apreciação estética, mas conforme aumentava seu poder e o de sua nação, no palco do mundo então conhecido.

Foi, porém, em tempos não tão distantes que as relações entre poderio econômico, influência política e presença cultural se tornaram mais evidentes, como nos revelam algumas passagens emblemáticas. Na década de 1930, os Estados Unidos possuíam “Escritórios de Cultura e Comércio” em países de seu interesse estratégico. Em 1946, meses após o término da Segunda Guerra Mundial e precedendo a Guerra Fria, o Acordo de Blum-Byrns selou a oferta de um pacote financeiro (como anistia de parte da dívida da França para com os Estados Unidos e nova ajuda financeira de longo prazo), por uma contrapartida explicitamente cultural. Por três semanas a cada mês, os filmes veiculados nos cinemas franceses seriam decididos não mais por estes, mas sim pelas produtoras de Hollywood.

Em jogo estava, claramente, a capacidade das indústrias culturais de motivar desejos de consumo de bens e serviços de toda a economia, de suscitar emulações a um determinado estilo de vida e de desenvolver simpatia pela cultura de um país. Do carro de Rock Hudson ao vestido de Deborah Kerr, os modos, costumes e valores (ei-los de novo…) eram facilmente absorvidos e mimetizados. Como, em menor escala, acompanhamos em nossas próprias telenovelas.

Nas últimas poucas décadas, a cultura passou a ser analisada sob óticas complementares. A padronização de bens e serviços e a globalização catapultaram a busca por experiên-cias e vivências, a valorização dos atributos emocionais. Desenvolveu-se assim o marketing cultural, levando uma miríade de empresas a investir em projetos culturais como forma de trabalhar a imagem de seus produtos e serviços, o conhecimento de suas marcas, suas relações com fornecedores, clientes e funcionários. Em paralelo, o turismo atingiu uma escala sem precedentes. A Organização Mundial de Turismo computou 806 milhões de turistas em 2004; e estima que o número dobrará até 2020.

Mas, para onde esses turistas vão e em busca de quê? Para onde as pessoas resolvem se mudar e o que as leva a optar por um ou outro bairro, cidade ou país? Qual o papel da cultura, nessa equação de buscas e valores? Todos nós nos entendemos como seres urbanos. Mas o que, de fato, valorizamos em nossa cidade?
Pense em uma cidade criativa. Barcelona? Londres? São Francisco? Estudo que desenvolvi junto a 18 peritos (economistas, urbanistas, sociólogos) de 13 países revelou que, independentemente de sua escala, de seu contexto socioeconômico ou de sua estratégia de desenvolvimento urbano, uma cidade criativa apresenta três características comuns.

A primeira é inovação – e das mais diversas ordens. Da construção de telhados com garrafas PET às descobertas científicas, se a necessidade é a mãe da invenção, a criatividade é o pai da inovação. Quem não gosta de viver em uma cidade em permanente estado de inovação, capaz de encontrar soluções originais e de pescar no ar oportunidades que nem todos veem?

A segunda característica das cidades criativas são as conexões. Conexões entre pessoas de círculos sociais diferentes, de profissões variadas, de origens diversas. Conexões também entre áreas da cidade – destas nossas cidades fragmentadas, com áreas inteiras que escapam aos nossos mapas mentais e com as quais, por desconhecimento, pouco nos importamos. Em uma cidade criativa, a integração se dá não só pelos transportes, mas pela vontade das pessoas de circular por regiões onde não moram nem trabalham. Mas, para que eu me disponha a ir até lá, algo de muito interessante e imperdível deve estar acontecendo…

É justamente com isso que tem relação o terceiro traço de uma cidade criativa: cultura. Cultura, primeiro pelo que ela é: expressão de um povo, fator de identidade, de cidadania. Mas são muitos os valores que a cultura movimenta. Na cidade de São Paulo, o impacto econômico da cultura – dos teatros às salas de concerto, da gastronomia à São Paulo Fashion Week – é cada vez mais evidente. Mas cultura também por sua conexão com os outros requisitos de uma cidade criativa.

A cultura tem enorme capacidade de inspirar ambientes mais criativos, que favoreçam olhares diversos, motivando assim inovações. É também um fator de atração e mobilidade das pessoas dentro da cidade, reforçando as conexões urbanas, os encontros com quem é diferente, o convívio.

É por tudo isso que cidades de todos os cantos do mundo – da Austrália ao México, da África do Sul à Alemanha – têm reconhecido crescentemente a importância dos centros culturais, das galerias, dos espaços de encontro, das festas de rua, dos festivais. Não mais concentrados em um ou outro bairro, mas espalhados pela cidade, unindo pedaços, lançando pontes de cidadania e interesse das pessoas em conhecer, reconhecer e valorizar o espaço em que vivem. Esse espaço que oferece a nós ainda muito por descobrir e com tantos fascínios a revelar, que chamamos de cidade.

Ana Carla Fonseca Reis é economista da cultura e doutoranda em urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), também consultora sênior da empresa Garimpo de Soluções, conferencista em mais de 20 países e autora de vários livros, entre os quais Economia da Cultura e Desenvolvimento Sustentável (Editora Manole, 2007), premiado com o Jabuti



“Na cidade de São Paulo, o impacto econômico da cultura – dos teatros às salas de concerto, da gastronomia à São Paulo Fashion Week – é cada vez mais evidente”

Valor da Cultura
por Susana Gastal

Mesmo que alguns não concordem, hoje a cultura é um produto em termos de mercado e serviços. Explique-se: as facilidades do mundo eletrônico tiraram o peso econômico do disco/cd e do livro impresso, por exemplo, mas a música e a literatura não morreram. Ao contrário, houve o revigoramento da área de shows e de eventos literários. O livro eletrônico, dispensando o papel, criou a figura do autor-editor, que agora, além de escrever, faz pessoalmente o trabalho de editoração e disponibilização on line, com maior autonomia nas diferentes etapas do processo.

Para entender esse novo mercado, é necessário reportar à organização sociocultural implantada a partir dos anos de 1960. Em termos econômicos, a segunda metade do século 20 encaminhou a expansão do capitalismo globalizado. Em termos sociais, a geração do baby boom – aqueles nascidos no pós-guerra – chegou à adolescência. São os jovens que estarão nas ruas de Paris, México e São Paulo, mas também nas de cidades menores, ao longo da década, buscando novo status para a sua faixa etária.

Brigaram, em Paris, contra o sistema acadêmico conservador; em São Paulo e outras cidades brasileiras, contra a ditadura militar; em Los Angeles, pelos direitos civis (e outros) dos gays; em Nova York, pela liberação feminina e pelo fim da Guerra do Vietnã. Se as motivações eram diferentes, o espírito de luta “jovem” seria o mesmo.

Em termos culturais, as mudanças não serão menores. A indústria cultural permite que o desfrute de um concerto sinfônico com uma boa orquestra deixe de ser privilégio das elites econômicas. E para ver um Picasso de perto, não é mais necessário ir a Paris e visitar o Louvre, pois as exposições com obras de grandes artistas passaram a percorrer o mundo.

Os jovens adultos dos anos de 1950 e 1960 desfrutaram de uma indústria cultural que começara a se firmar na música, com Elvis Presley como um dos seus ícones e o rock como sua apoteose, acrescentando aos ritmos mais marcados e estridentes uma intensa participação cênico-corporal. Com o rock, a música, para além do auditivo, será também uma experiência visual e grupal; na plateia, a discreta assistência dos teatros é substituída pelas multidões feéricas a lotar estádios de futebol, transformados em novos espaços culturais.

A música é, talvez, a manifestação artística que recebe maior impacto dos novos tempos, mas a era da comunicação, do consumo e da consagração da indústria cultural não deixará nenhuma das esferas artísticas imunes. Elas repetirão um padrão: a estetização marcada pela preponderância do visual; a experiência cultural não mais como uma vivência intimista e pessoal, mas coletiva e grupal; o consumo cultural estendendo-se a amplos públicos consumidores e não mais restritos às elites cultas, a dessacralização dos espaços culturais, assim como a alteração da dicotomia entre erudito e popular.

Na década de 1960, a cultura integrar-se-ia à produção de mercadorias em geral, envolvendo, no dizer de David Harvey (1992), a transformação dos hábitos e atitudes de consumo, bem como um novo papel para as definições e intervenções estéticas, em que o capitalismo passa a estimular as sensibilidades individuais, para criar uma estética que superasse e até se opusesse às formas tradicionais da alta cultura. Em termos de conteúdo, os anseios das minorias – jovens, mulheres, gays, afro-descendentes... – passaram a ser expressos pelos produtos da indústria cultural.

Séries de televisão como Raízes (Roots, 1977) resgataram o passado e as marcas da escravidão nos Estados Unidos, alimentando novas identidades black power. Filmes como Uma Mulher Descasada (An Unmarried Woman, de Paul Mazursky, 1978) e a série brasileira Malu Mulher (Daniel Filho, 1980) ajudaram as mulheres a construir uma identidade para além e independente do casamento.

Esse momento cultural, gerado no contexto aqui rapidamente apresentado, tem sido chamado de pós-modernidade. Mesmo que no meio acadêmico não haja unanimidade quanto à denominação, as alterações nos comportamentos e nos cotidianos das pessoas nas décadas finais do século 20 são inegáveis, mesmo que a ênfase seja diferenciada de lugar para lugar. Pós-modernidade seria, portanto, o equivalente cultural da economia capitalista globalizada.

Os estudos sobre a pós-modernidade são, de certa maneira, decorrência desta nova atenção à esfera do consumo, resultado do que o teórico estadunidense Fredric Jameson denomina de capitalismo multinacional high-tech ou de capitalismo no seu estágio pós-moderno, caracterizado por uma profunda interrelação entre o capital e a mídia, levando a que o econômico avance sobre o social e cultural.

A partir da década de 1960, a cultura integra-se à produção de mercadorias, envolvendo, segundo Harvey (1992), a transformação nos hábitos e atitudes de consumo e um novo papel para as definições e intervenções estéticas, em que o sistema passaria a estimular sensibilidades individuais para criar uma nova estética que superasse e se opusesse às formas tradicionais de alta cultura.

Essa nova estética será difundida pela mídia, impondo um padrão – que muitos teóricos consideram como um padrão americano e, portanto, como uma americanização do mundo – que mexerá não apenas com as identidades individuais, como com as tradicionais identidades coletiva e mesmo com as nacionais.

O campo cultural, portanto, deixou de ser algo alheio ao sistema econômico, passando a se organizar em termos de produção e consumo. Assim como o capitalismo globalizado alterou padrões do capitalismo industrial moderno, a cultura da indústria cultural organizada a partir do século 19, com o cinema, rádio e livro, entre outros, e que se consolidou na primeira metade do século 20 em termos de mercado, com grandes tiragens de jornais e livros, grandes salas de cinema e a crescente presença da televisão, legara aos anos de 1960 um situação estabelecida de produção e consumo cultural, na qual passaram a circular valores financeiros consideráveis.

Tal circunstância não foi vista com bons olhos, em especial pelas tradicionais elites eruditas. E não seria diferente, pois a cultura moderna se colocava como diferencial de classe. O concerto de câmara no salão burguês era privilégio de poucos; agora é consumo de muitos, via disco ou DVD. O mercado cultural contemporâneo mobiliza grandes plateias, inclusive com segmentos exigindo produtos cada vez mais sofisticados.

Claro que, em paralelo, continuaremos a ter a presença de produtos populares, marcados pelas simplificações de forma e conteúdo. Mas um filme, erudito ou popular, irá empregar roteiristas, iluminadores, figurinistas, continuistas, encaminhando a formação de um mercado de profissionais especializados, responsáveis pelas diferentes etapas do processo.

Por essas razões, a produção cultural é importante para as localidades, em termos econômicos. Sem esquecer que o mundo, antes dividido entre pobres e ricos, agora estaria separado entre produtores e consumidores de bens simbólicos. E ter autoria em termos de bens simbólicos significa emancipação para autoproduzir identidades pessoais e coletivas.

Susana Gastal é jornalista, com mestrado em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutora em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Também é consultora do MinC (Ministério da Cultura) e professora, pesquisadora e orientadora do mestrado em Turismo da Universidade de Caxias do Sul. Atua ainda como diretora científica da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Turismo (Anptur)


“O campo cultural deixou de ser algo alheio ao sistema econômico, passando a se organizar em termos de produção e consumo”