Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Humano, demasiado humano

O embate entre ética e moral define toda a história da filosofia ocidental, sendo que o campo da ética seria demarcado por escolhas pessoais diante de acontecimentos muitas vezes trágicos. É justamente nessa seara que se encontra a filmografia do cineasta polonês Krzysztof Kieslowski.

Ela existe na medida em que a moral – imposta por um sistema religioso – é confrontada com os desejos dos personagens, quando optam por um caminho. O filósofo esloveno Slavoj Zizek afirma em Lacrimae Rerum – Ensaios sobre o Cinema Moderno (Boitempo Editorial, 2009) que o tema em Kieslowski se define “pela passagem da moral para a ética”.

O próprio Kieslowski ajuda a delimitar sua área de atuação em depoimento para o documentário Krzysztof Kieslowski: I’m So-So, dirigido pelo também polonês Krzysztof Wierzbicki em 1995: “A igreja quer que sigamos um determinado conjunto de regras. As pessoas não gostam de ser guiadas. Cada um de nós conhece nosso jeito de viver. Não queremos que nos digam: ‘Vá somente por essa direção’. Por que não escolher outra direção?”.


Caminhos cruzados

Nascido em 1941, em Varsóvia, Kieslowski ingressa, quando jovem, na escola técnica de teatro. E, no início dos anos de 1960, na Escola de Cinema de Lodz. Seus primeiros documentários mostram a vida política marcada pelo movimento operário, as dissidências do partido comunista e o cotidiano de um país “cinza, sem cor”.

A temática também está presente em ficções como Personal (1975), A Calma (1976), A Cicatriz (1976) e Amador (1979) que fizeram relativo sucesso na Polônia, apesar de terem sido censurados e engavetados por alguns anos. “Nossas ferramentas descritivas são utilizadas com fins propagandísticos. O comunismo usava o termo liberdade, mas não éramos livres”, afirma Kieslowski para as lentes de Wierzbicki.

O ano de 1985 foi definitivo para que sua obra ultrapassasse os muros da Guerra Fria. O Festival de Roterdã, na Holanda, exibiu pela primeira vez Sem Fim. Kieslowski era desconhecido dos críticos internacionais, mas angariou o prêmio especial de melhor filme. Por meio de Hubert Bals, organizador do evento, muitos cineastas eram revelados ao grande público.

“Roterdã foi o festival que descobriu Kieslowski, assim como descobriu Tarkovski, Fassbinder e Wim Wenders”, afirma Carlos Reichenbach. No mesmo ano, o cineasta brasileiro foi convidado por Bals para o festival a fim de apresentar seu Lílian M – Relatório Confidencial (1975) e travou contato com a obra do polonês. “Eu estava lá no momento que o Sem Fim recebeu o prêmio de melhor filme. Chamou a atenção o fato de que, entre tantos experimentais, o dele tenha se destacado. Seus filmes ganham pela simplicidade”, diz Reichenbach.

A partir do Festival de Roterdã surgiu o convite para participar de um projeto que reuniria 12 cineastas de todo o mundo para compilarem uma série de três horas. Krzysztof Kieslowski e Carlos Reichenbach trabalhariam juntos em City Life. “Em um jantar, sentei-me à mesa de Kieslowski.

Ele me pareceu reservado, sempre acompanhado de poloneses, já que naquela época não falava inglês”, afirma. “Na verdade, ele era tímido. Talvez não se enxergasse muito como criador. Parecia que não se dava por satisfeito, não se acomodava no sucesso.”

Em uma cena de guerra de egos, lembra que o diretor do episódio alemão juntou-se com Béla Tarr numa briga com os produtores do filme. Eles queriam editar a película e mudar a ordem de exibição da série. “A barra pesadíssima”, afirma Reichenbach, cessou quando o polonês interveio: “O filme tem vida própria.

Vai existir independente de vocês estarem no começo, meio ou fim”. Segundo Reichenbach, Kieslowski sugeriu que seu filme fosse o último. “Quando ele ganhou o Euro Oscar [European Film Awards], pôs o troféu no chão para ler o papel de agradecimento. Não soou como desprezo, foi uma atitude simples, como se dissesse: ‘Isso é um troféu, por que estão me dando isso?’”, diz o brasileiro. Essa postura marcará toda a obra e vida do cineasta polonês.


Defesa dos ideais

Kieslowski afirmava que antes de contar estórias era preciso conhecer sua identidade e origem, assim tornava-se possível entender a vida das pessoas. A produtora de cinema Urszula Groska, também polonesa de Varsóvia, radicada no Brasil, afirma que o caminho traçado por Kieslowski – um cineasta que não se envolveu com a política em um momento que muitos se associaram ao Solidariedade, partido de oposição ao regime comunista – era fruto da segurança com que mantinha suas posições. “Ele dizia que há algo que ninguém tira: a própria vida e seu ponto de vista”, relata a produtora.

Em Decálogo, série feita para a TV polonesa nos anos de 1980, Kieslowski encena os dez mandamentos bíblicos do ponto de vista pessoal, subvertendo a moral religiosa tão presente na Polônia, marcada pelo poderio da Igreja Católica.

“Não pecarás contra a castidade” torna-se Não Amarás – mais tarde transformado em longa-metragem –, o qual retrata um inocente adolescente voyeur perturbado pelo amor impossível por uma mulher mais velha. Para muitos críticos, a influência de Alfred Hitchcock, com A Janela Indiscreta é notável. “Ele trabalhava com orwo, um negativo da Alemanha comunista.

Esse negativo puxava a cor da película para o verde ou amarelo. Ele usava essa ausência de cor como linguagem cinematográfica. Não Amarás e Não Matarás são filmes sombrios”, detalha Reichenbach.
A partir de Decálogo, o peso da obra do diretor francês Robert Bresson também estará presente em suas produções.

“Um Bresson pela temática filosófica e religiosa”, define Antônio Gonçalves Filho, repórter especial de cultura do Caderno 2 de O Estado de S. Paulo. Porém, como afirma Gonçalves Filho, ele mantém uma postura de descrença como cineasta. “Há um ceticismo com relação ao futuro da humanidade. Seus filmes não são nada otimistas”, afirma. Em I´m so so, de Wierzbicki, ao ser questionado sobre o assunto, Kieslowski revela: “Tenho uma boa característica: sou um pessimista. Então sempre imagino o pior. Para mim o futuro é um buraco negro”.
A radicalidade da vida

Após a série para a TV polonesa, de enorme sucesso, Kieslowski é chamado para filmar na França. Realiza A Dupla Vida de Véronique, em 1991, sobre uma personagem e seu duplo, cuja identidade se desdobra em polonesa e francesa. Em meados dos anos de 1990, ocorre na Europa o Bicentenário da Revolução Francesa e parte daí a ideia de filmar a Trilogia das Cores – roteiro pelo qual Kieslowski questiona os ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade vividos na intimidade de cada personagem.

Depois da Trilogia, seu último projeto filmado, Kieslowski passa a ser considerado um humanista. “Se você tiver sido um bastardo, continuará a ser um bastardo, apesar da fatalidade. Se você tiver sido uma pessoa boa, isso não mudará”, afirma em um dos momentos mais emocionantes do documentário I´m so so.

A Fraternidade é Vermelha, último filme da trilogia, é o acerto final de contas do polonês com o mundo. Mostra a força do acaso na vida e salva de um naufrágio todos os personagens da série: um polonês, dois franceses, um inglês, numa clara alusão à possibilidade de recomeço e unificação da Europa.

Questionado por Wierzbicki sobre a mensagem final do filme, Kieslowski dispara: “Nós estamos claramente em uma crise cultural. É uma fase em que tentamos distinguir valores de vida. As pessoas estão procurando por uma solução e talvez a encontrem. A radicalidade da procura mudará sua visão de vida”. Para o repórter Antônio Gonçalves Filho, A Fraternidade é Vermelha revela o quanto ele acreditava na possibilidade de redenção para a humanidade.

A obra do cineasta polonês é marcada pela presença constante do jurista e roteirista Krzysztof Piesiewicz e pelo compositor Zbigniew Preisner (mais informações sobre o maestro no Dossiê desta edição), responsável pela trilha sonora de seus filmes. “Antes de conhecer Preisner, ele ouvia música como qualquer um. Seu encontro com o músico foi decisivo para a força de sua obra, diz a amiga Urszula Groska.

“Há cineastas que encontraram colaboradores que definiram sua estética. O Kieslowski contou com Preisner para transmitir a dimensão épica de suas criações. O poder da imagem de Decálogo e A Trilogia das Cores só funciona se tiver uma música igualmente épica”, completa Gonçalves Filho.

Após terminar A Trilogia das Cores, em 1994, o cineasta anunciou que iria se aposentar. “Estou chegando ao fim da paciência. Os mais inteligentes sabem que não estou feliz com o que sinto no momento”, relata no livro Kieslowski on Kieslowski, editado por Danusia Stok.

Mesmo assim estava escrevendo a história baseada na Divina Comédia, de Dante. Seu objetivo era que outros cineastas filmassem seus roteiros. Recentemente, cineastas de renome realizaram o desafio. O alemão Tom Tykwer concluiu Paraíso (2002), o bósnio Danis Tanovic produziu sua versão do Inferno (2005) e o polonês Stanislaw Mucha fez Purgatório (2007).

Em março de 1996, a morte do polonês, aos 54 anos, põe fim à trajetória do diretor que, se não fechou um ciclo no cinema autoral europeu, foi um dos últimos a imprimir a força da escolha ética na vida de seus personagens.


Ótica moderna

Mostra revisita a obra do diretor

O Sesc Santos exibiu entre os dias 3 de maio e 5 de junho a mostra ?O Decálogo de Kieslowski, a série de maior sucesso do cineasta polonês, realizada em 1988 para a TV. “Kieslowski é uma das grandes referências do cinema realizado na Europa no final do último século. Diálogos escassos, contemplação, movimentos leves e interrupções abruptas são alguns dos elementos mais presentes nos trabalhos do diretor”, analisa Silvio Luiz, responsável pelas áreas de cinema e cultura digital do Sesc Santos.

A escolha do Decálogo (foto) se deu por ser uma obra pouco acessível ao grande público. Para Luiz, elementos constitutivos da filmografia de Kieslowski – o intimismo e a estética limpa, simples – estão sendo reconhecidos pelas novas gerações de diretores. “As facilidades de produção de obras audiovisuais têm tornado esse tipo de abordagem cada vez mais presente nas salas de cinema”, analisa. Fato que afirma a perenidade da obra do cineasta polonês. ::