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Cultura em movimento

ilustrações: Marcos Garuti

A relação dos países do Cone Sul, por muito tempo, concretizou-se com mais força no âmbito comercial, em decorrência do Mercosul, tratado que uniu Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina em torno de interesses comuns e livres taxas aduaneiras. Mas, ainda assim, esses e os demais países da América Latina mantiveram-se por muito tempo alheios à produção cultural de seus vizinhos.

Com a globalização e a expansão das relações internacionais, a produção artística passou a ser um bem em trânsito, possibilitando maior acesso ao que está sendo articulado dentro do nosso próprio continente. Em artigos inéditos, a curadora e crítica de arte Aracy Amaral e a diretora executiva da Televisão América Latina (TAL) Malu Viana Batista analisam esse cenário.


Intercâmbio cultural: Brasil e América Latina

por Aracy Amaral


É corrente ouvirmos que o Brasil está de costas para a América Latina e de frente para o oceano, o exterior, Europa e Estados Unidos. E que ignoramos, em geral, soberanamente, nossos vizinhos. Em grande parte, é verdade. Trata-se, de certa forma, de um complexo ainda colonial do qual não conseguimos nos despregar. Buscamos as matrizes e não aceitamos nossos similares (igualmente colonizados, como nós).

Quando há muitos anos estive na África para um congresso de críticos, observei que os africanos em geral tinham relações intelectuais e de formação para artistas e críticos com os países que os colonizaram (Nigéria com Grã-Bretanha, Senegal com França, Congo com Bélgica etc.) e não entre si. Talvez hoje a situação haja mudado, não sei. Mas não é muito diferente do que se passa entre nós.

Assim, é usual conhecermos artistas ansiosos por expor na Europa e nos Estados Unidos, ou participar de feiras e bienais de arte. Quantos, no entanto, fazem contatos para expor, por exemplo, na Argentina, Uruguai, Venezuela, Colômbia, Chile ou Peru?

Os que expõem em países latino-americanos o fazem em geral por iniciativa de feiras e bienais desses países ou a convite de brasileiros que atuam como delegados nesses eventos. São raros, contudo, nas gerações mais novas, os brasileiros que estabelecem relações com os países que os convidam e que mantêm relações permanentes que gerem uma sequência de participações nas nações vizinhas.

Ao contrário do que se diz, a arte não é universal. É preciso certa aproximação cultural, a construção de uma empatia para com “o outro”, uma busca de conhecimento, enfim, para se obter uma motivação mesmo para a fruição de sua criação artística. Isso vale tanto para as artes visuais, como para a literatura, o cinema, a música.

Daí o motivo de hoje me parecer uma exceção a participação recente de Lucia Koch, por exemplo, em eventos na Argentina, Peru e México, entre os raros artistas brasileiros que se interessam pelos centros de arte hispano-hablantes. Ao mesmo tempo, não deixa de ser observável que o jovem brasileiro não vai mais com a frequência de décadas atrás, em sua primeira viagem ao exterior, a Buenos Aires, Cuzco ou Bolívia, mas dá preferência a Londres, Paris, Nova York ou Florença (ou, quem sabe até, a Pequim, dada a curiosidade dessa potência de hoje, muitos até colocando que atuam na China e em sua cidade natal, simultaneamente!).

Talvez seja resultado da melhoria das finanças da classe média de nosso país? Ou simples falta de curiosidade? Pois os que se aventuram à Guatemala regressam encantados com sua paisagem, ou os que vão ao México voltam maravilhados com sua riqueza artística (do pré-colombiano ao gótico do século 16 aos dias de hoje!)
Claro que as bienais de São Paulo e, há 16 anos, as bienais do Mercosul têm tentado apresentar a produção desses países.

Mas há pouco, na Trienal de Santiago de 2009, curadora num segmento desse evento, fiquei indignada pelo fato de o Brasil ter sido completamente “esquecido” numa exposição organizada pelo historiador uruguaio Gabriel Peluffo sobre arte e política, mesmo que eu tivesse chamado sua atenção sobre um sem-número de artistas brasileiros de primeiro nível que se expressaram com vivacidade sobre esse tema, num difícil momento de nossa vida política.

Ao mesmo tempo, menciona-se frequentemente na imprensa brasileira a aquisição deste ou daquele artista brasileiro por uma coleção de museu do exterior, como se lá fossem superconhecidos. Na verdade, talvez o sejam de alguns curadores, mas a unanimidade não é tão vasta ou pública quanto se imagina.

Prova disso, em outras áreas culturais, observei quando participei do Júri Internacional do Prince Claus Award de Haia, de 2002 a 2005, que, ao mencionar em várias ocasiões os nomes de Chico Buarque, Gilberto Gil ou Maria Bethania, ninguém os conhecia nesse colegiado internacional. Assim como ao batalhar por um prêmio para Ferreira Gullar, os argumentos tinham de ser fortes, pois era totalmente desconhecido. Ou conceder um prêmio ao argentino Quino, autor de Mafalda, era uma temeridade, pois quem conhecia sua famosa personagem?

Rendamo-nos conta, portanto, de que tudo é relativo, e, apesar de globalizado o mundo, as culturas não se comunicam tanto quanto se imagina. Claro que Carlinhos Brown é conhecido unanimemente. Porém, neste caso, é porque o músico baiano pertence ao show business internacional, o que está a quilômetros-luz do restrito e elegante universo das artes visuais, tão dominado pelo mercado.

Outro dado, também, que já observei ao longo do tempo é que o artista plástico – ou visual, como se queira – tem pouco interesse por outros artistas (exceto em seu período de formação, mas o pior é desconhecerem a historia da arte!), a não ser pelo seu próprio trabalho. Assim, frequentemente hoje vemos que em bienais os artistas chegam, montam suas salas ou trabalhos e partem muitas vezes antes mesmo da abertura oficial do evento.

Certo que em nossos dias opera o nomadismo do artista, sua solicitação quase simultânea em vários eventos que se encadeiam, o que o impulsiona a ser um “frequent flyer”. Dessa forma, o artista é mais encontrável em portas de embarque ou a bordo que em terra apreciando o trabalho de seus companheiros de “métier”. Talvez seja mais possível ele ser nomeado hoje como um arts entrepeneur do que o romântico criador que deseja sentar-se num café e tomar umas e outras antes de discutir arte com seus colegas... 

Mas sei, também, que o idioma é o principal obstáculo para a dificuldade de contatos, pois o brasileiro em geral não domina com facilidade idiomas estrangeiros, mais uma consequência de nosso péssimo sistema educacional, prejudicial tanto no intercâmbio cultural como no comercial para nosso país. Não posso esquecer que quando visitei a China há uns três anos – país de um idioma tão distante do nosso e tão difícil! – me surpreendi com a fluência dos guias em espanhol.

Informaram-me que aprenderam o espanhol na faculdade, em três anos! Como nosso país é atrasado! Um arquiteto sul-americano amigo, por sua vez, em congresso em São Paulo comentou comigo que o Brasil dava a impressão ao visitante de não necessitar de turistas estrangeiros, tal o despreparo e dificuldade de interlocução na recepção de um hotel (seja em inglês, espanhol ou francês)...

Assim, ao abordar o tema das relações do Brasil com a cultura na América Latina ou América do Sul, na área em que tenho atuado – artes visuais –, devo dizer que o brasileiro, embora entenda o espanhol sem problemas, sabe que não é compreendido quando se expressa em português.

Ou seja, é obrigado a aprender/falar espanhol, ou expressar-se em portunhol, o que é pouco adequado em simpósios e colóquios. E esse dado impede a discussão e o debate espontâneos em encontros, limitando-se, em geral, o participante à apresentação de seu comunicado.

Pertenço a uma geração que participou de vários colóquios de críticos de arte na América Latina nas décadas passadas e houve a oportunidade de estabelecermos relações de amizade que perduram até hoje. Fora raríssimas exceções, nas novas gerações, como é o caso de Adriano Pedrosa, poucos vínculos profissionais e pessoais da parte do Brasil vejo aparecer para meu conhecimento.

Nesse aspecto, creio que a Bienal do Mercosul tem desempenhado um papel relevante. O que percebemos, isso sim, é que curadores latino-americanos trabalham correntemente no Brasil. Há muito que atua no Brasil Gerardo Mosquera (Cuba), precedido, é claro, por Juan Acha, na 1ª Bienal Latino-Americana de São Paulo, ainda em fins dos anos de 1970.

Mas, sem dúvida, o dinâmico curador da Bienal do Mercosul neste 2011, José Roca (Colômbia), deve ser citado, e vários outros, como Luiz Pérez Oramas (Venezuela) e Gabriel Perez Barreiro, Alejandro Cesarco (Uruguai), Victoria Noorthorn (Argentina) e Camilo Yañez (Chile), entre outros, além de participar desta próxima Bienal do Mercosul Paola Santoscoy (México) e Alexia Tala (Chile). O que significa que há oportunidades, entre nós, sem qualquer dúvida.

Mas, indago: será que há espaço em outros países para curadores brasileiros? Se a nossa cena artística interessa tanto a esses curadores, por que não ocorre com a mesma frequência a ida de nossos curadores para outros países? E, para refletir: quais seriam nossas reais limitações ou qual o volume das dificuldades de penetrar em tão exclusivo corredor?


“Ao contrário do que se diz, a arte não é universal. É preciso certa aproximação cultural, a construção de uma empatia para com ‘o outro’, uma busca de conhecimento”



Aracy Amaral é crítica de arte e curadora, no Brasil e América Latina, e ex-diretora de museus (Pinacoteca do Estado de São Paulo e Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo). É curadora convidada da 8ª Bienal do Mercosul, ?para a exposição Além Fronteiras



A Circulação da Cultura nos Países Latino-Americanos
por Malu Viana Batista

A cada dia mais o mundo está cercado por uma mídia convergente. Por isso, os meios de comunicação estão passando por processo de intensa adaptação para assegurar conteúdo multimídia. Com isso, nasce uma nova maneira de criar, produzir, circular e consumir cultura no mundo em geral e na América Latina em particular.

Vive-se uma verdadeira experiência revolucionária na área da comunicação de massa, na qual os canais de televisão públicos e culturais enfrentam crescente demanda por mais qualidade em diferentes plataformas e tendo que lidar ainda com as restrições orçamentárias frequentes. Esses desafios requerem diferentes iniciativas de caráter cooperativo no âmbito local, nacional e internacional.

Foi nesse contexto que surgiu a TAL (Televisão América Latina), organização cooperativa sem fins lucrativos e com parceria acumulada superior a oito anos entre canais de televisão públicos e culturais. A TAL é uma resposta prática à imensa carência de informação e conhecimento multimídia entre os países latino-americanos.

A consciência da existência de laços dispersos, imponderáveis, que unem os povos latino-americanos, ultrapassa a barreira do sonho da união regional. São laços que estão no inconsciente da identidade, algo como um registro genético: somos latino-americanos e compartilhamos da mesma história. Mas, pouco se conhece dessa história, e restrito é o acesso às imagens não estigmatizadas ou não caricatas de nossas múltiplas paisagens físicas e humanas.

A missão da TAL é promover maior e efetiva aproximação cultural entre os países latino-americanos. Poder contribuir para o fortalecimento de novas formas e conteúdos de cooperação. O foco maior é participar ativamente da dinamização da produção, da difusão de bens culturais de multimídia, especialmente audiovisuais.

O objetivo inicial foi o aprimoramento da qualidade da televisão cultural latino-americana, mas existe um engajamento mais e mais em formatos multimídia. Já ultrapassaram-se oito anos de esforços coletivos construindo uma plataforma multimídia de intercâmbio de conteúdo audiovisual com mais de 200 associados nas Américas e Península Ibérica, composta por canais de TV, organizações educativas e culturais.

Em 2005, através de parceria com Ministério da Cultura do Brasil, a TAL iniciou as atividades para construção de vasto banco de conteúdo do audiovisual latino-americano, o Banco de Documentários da América Latina (B.DOC). Atualmente o acervo possui mais de sete mil títulos, entre documentários, curtas-metragens, programas culturais de TV e animações. Trata-se de um arquivo único, devido a sua diversidade geográfica e natureza multicultural. Serve, portanto, como memória audiovisual do continente.

Vale ressaltar, no Brasil, o papel decisivo do SescTV, que se tornou um dos mais ativos associados da TAL, como ocorreu ao disponibilizar parte de seu acervo para o B.DOC. No modelo operacional da TAL, os associados não necessitam pagar para a utilização dos conteúdos. A empresa firma acordos de cooperação com cada associado, que licencia por um determinado tempo seus conteúdos audiovisuais, que, por sua vez, podem ser utilizados por todos os demais associados.

Para garantir a qualidade e pluralidade do material, a TAL faz a curadoria dos programas, selecionando o que há de melhor e mais representativo dos países latino-americanos. Em seguida, é feita uma adaptação, com preparação de legendas em português ou espanhol.

A parte da difusão desse material acontece de duas maneiras: pelos canais parceiros e pela webtv. A TAL envia periodicamente grupos de programas para seus associados que possuem sinal de TV. Além disso, uma ampla e diversa programação é disponibilizada pelo site www.tal.tv, que tem acesso livre e gratuito. A programação é renovada diariamente para todos os internautas.

A fim de estimular esse intercâmbio cultural e aproximar os realizadores latino-americanos, a TAL também elabora e executa projetos de produção. Buscam-se parcerias com jovens diretores e produtores independentes, sempre procurando inovar e cedendo espaço ao olhar de um povo sobre ele mesmo. Com esse espírito de agregar sempre gente nova nas atividades são lançadas convocatórias públicas para seleção de talentos, anunciadas na mídia e no site multimídia.

Assim, a TAL tem participado de forma crescente nos esforços coletivos de ampliar a circulação da cultura entre os países da América Latina. A base inicial foi audiovisual e agora avança-se cada vez mais para ferramentas de multimídia. A experiência tem trazido muitas lições a fim de educar para compreender as peculiaridades das mais diferentes estéticas, narrativas e riquezas naturais e humanas.

A ambição é caminhar para níveis mais avançados de interatividade multimidiática, inclusive passando para a aplicação das mais diferentes formas de intercâmbio para além da virtual. Por exemplo, planejam-se desenvolver trabalhos de aproximar fisicamente as pessoas que mais se interessem pela América Latina, de tal forma que se possa sedimentar experiências individuais e de grupos capazes de se multiplicar através de ferramentas multimídia.

Existem inúmeros programas de intercâmbio que levam os jovens aos Estados Unidos, Europa, Austrália, Nova Zelândia e Canadá. Mas quantos programas existem para viabilizar a circulação de jovens dentro da América Latina para nós próprios latino-americanos?

Esse é um dos desafios que se planeja vencer de maneira diferenciada, incluindo especialmente adolescentes, universitários, profissionais de cinema e TV, cientistas, ecologistas e artistas em geral. As experiências de cada participante serão divulgadas diariamente pela TAL e depois irão resultar em diversos formatos e conteúdos permanentes, especialmente documentários que sintetizem as experiências vividas.

Os cercos do mundo de mídia convergente necessitam ser ultrapassados com ações concretas. Não se pode ficar passivo, apenas acompanhando o processo de intensa adaptação dos meios de comunicação para assegurar conteúdo multimídia. É preciso ser também participante ativo nas novas maneiras de criar, produzir, circular e consumir cultura na América Latina.


“A consciência da existência de laços dispersos, imponderáveis, que unem os povos latino-americanos, ultrapassa a barreira do sonho da união regional”


Malu Viana Batista é produtora e diretora executiva da Televisão América Latina (TAL)