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Literatura falada

Quando era menina, lá em Belém do Pará, cresci ouvindo muitas histórias, sobretudo as folclóricas: mula sem cabeça, saci-pererê, boitatá, boto-cor-de-rosa... Todas eram recheadas com muita fantasia e imaginação. São inesquecíveis os trejeitos e o tom de voz daqueles que contavam as histórias, assim como as encenações feitas com lençóis ou almofadas para forjar algum elemento característico da trama, ou os sons retirados de panelas e potes de vidro para compor a melodia do enredo. Tempo fantástico! Os “causos” também não faltavam, eram os preferidos do meu pai, assim como os trocadilhos e os trava-línguas. Brincadeiras que constituíam e ampliavam simbologias de instantes mágicos extraídos das narrativas populares. Ao relembrar essas histórias afloro em mim um tempo outro, cheio de significados e de sentidos afetivos, percorro o já vivido, onde me encontro e reinvento minha história.

Tão importantes quanto a literatura escrita, as “narrativas orais” trazem as cores vivas da memória que se revelam nos sons, espaços, costumes, gestos e objetos; traduzem em crônica, de forma simples e mágica, a história de um povo e expõem facetas do cotidiano. Presentes em todos os povos, as narrativas contam há séculos, em verso e prosa, a aventura humana, manifestando, em poesia, sonoridade e encenação, a memória coletiva, e, com ela, nossas emoções, desejos e medos. Tomando o texto épico de Homero, A Ilíada, que narra o destino de heróis gregos e troianos, até o nosso Guimarães Rosa, que traz a voz e a vida do homem simples, podemos observar que cultura, narrativa e vida humana são indissociáveis.

Afirmam, ainda, os estudiosos dessa área que a experiência de narrar ou ouvir histórias suaviza a aridez dos caminhos da vida, alimenta a inspiração e abre o portal da intuição, que, aliada à inteligência, nos ajuda a superar os desafios do real. Gilbert Chesterton, importante pensador do mundo moderno, grande defensor de contos de fada, nos diz que tais contos são a pura verdade. Não porque afirmam que os dragões existem, mas porque mostram que eles podem ser derrotados.

Ao olhar o caminho que a narrativa percorreu, pergunto-me se na sociedade atual a leitura de obras literárias e a “contação” de histórias ainda têm espaço. A experiência da imagem difundida pelos meios multimídia (TV, cinema, internet, jogos eletrônicos, celulares...) é hoje, sem dúvida, uma poderosa forma de mediação das relações humanas. Entretanto, apesar de vivermos cada vez mais num ciberespaço imagético, de sofisticada tecnologia e comunicação instantânea, a palavra literária, falada ou escrita, permanece como uma rica e eficaz forma de ler, perceber e compreender o mundo e a si mesmo. Isso porque sua matéria-prima, como nos orienta Nelly Novaes Coelho, é a existência humana e o seu meio transmissor é a palavra, a linguagem verbal, o meio do qual tudo no mundo necessita para ser nomeado e existir verdadeiramente para os homens, seja na realidade ou na ficção.
Daí a importância da audição prazerosa de histórias, do contato afetuoso com a palavra, da incrível viagem pelo mundo da imaginação que a literatura nos proporciona. Instigado por essa perspectiva, o Sesc elabora e realiza uma série de projetos literários, como De quem é essa história?, As palavras e o mundo, Pedro Bandeira está pra brincadeira... Ações que têm o intuito de propiciar às crianças, jovens, adultos e idosos oportunidades de assimilar novas maneiras de ver e pensar a realidade, relacionando-se de maneira mais fecunda com ela.

Promover esse contato lúdico com a literatura é uma forma de oferecer ao público a possibilidade de ampliar seu contato com o livro e aumentar seu interesse pela leitura, transformando-o, assim, num leitor mais crítico, com maior capacidade de desenvolvimento, tanto no campo individual como na esfera social. E ao mesmo tempo, talvez, de despertar os “contadores de histórias” presentes em cada um de nós, trazendo à tona a capacidade criativa que é inerente ao ser humano.

Fabíola Gaspar das Dores, graduada em Ciências Sociais e Mestre em Sociologia pela Unesp, é coordenadora de programação do Sesc Rio Preto.