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Voto, um poder desvalorizado

por Herbert Carvalho

Nos 190 anos de eleições para a escolha de deputados, as relações dos brasileiros com seus parlamentares se pautaram pela ambiguidade. Desde o primeiro pleito de 1821 – para definir quem representaria o Reino Unido do Brasil nas Cortes de Portugal, após a volta à metrópole de dom João VI por causa da revolução liberal que limitou o poder então absoluto dos monarcas – à posse este ano dos congressistas eleitos em 2010, o sentimento nacional ante os legisladores varia do reconhecimento pelas conquistas sociais obtidas ao repúdio diante de atitudes motivadas por interesses pessoais, oligárquicos ou corporativos.

Portador há 130 anos do título de eleitor – documento criado em 1881, durante o Império, pela reforma eleitoral de Ruy Barbosa –, o brasileiro se tornou referência pelo uso pioneiro, desde 1996, da urna eletrônica, que apura resultados em até 24 horas. Apesar disso, não conseguiu, ao contrário do europeu e do americano, usufruir de regras eleitorais estáveis e legendas políticas duradouras com perfis ideológicos nítidos. Após quase dois séculos da alternância de ciclos autoritários e ditatoriais com períodos breves em que o poder emanou do povo pelo voto e em seu nome foi exercido, nossa democracia, restaurada há pouco mais de duas décadas, tropeça no sistema eleitoral de regras mutantes e no amontoado de quase 30 partidos registrados e outros tantos em organização.

Nesse cenário nebuloso, que dificulta a participação e a conscientização política, agravado pela substituição da praça pública pela mídia (sobretudo eletrônica) como espaço de disputa do voto, pelo alto custo das campanhas e pela nefasta influência do poder econômico que as financia, a escolha do eleitor por vezes recai em celebridades ou figuras bizarras como a do palhaço Tiririca – fenômeno de repercussão mundial por ter obtido mais de 1 milhão de votos para deputado federal em São Paulo, a partir do bordão “pior do que está não fica”.

Compromisso firmado no discurso de posse pela presidente Dilma Rousseff, uma reforma política que fortaleça os partidos e o exame de projetos nacionais no debate eleitoral tem sido tema recorrente no Congresso e na sociedade desde a Constituinte de 1988. Para subsidiar com a experiência histórica debates em torno de propostas como o fim da reeleição e do voto obrigatório, a introdução do sistema distrital ou de lista fechada, o financiamento público de campanhas, a cláusula de barreira contra legendas inexpressivas ou de aluguel e a fidelidade partidária, Problemas Brasileiros recorda a trajetória do voto em nosso país, que já foi um privilégio de poucos.

Sistema complexo

Durante os 300 anos do Brasil Colônia, somente vereadores eram eleitos, num processo restrito às famílias ricas de cada vila. Para as eleições gerais de 1821 foram estabelecidas regras relativas ao eleitorado que, com pequenas variações, vigoraram nos 60 anos seguintes. Podiam votar ou ser votados homens brancos, católicos e maiores de 25 anos com renda anual de no mínimo 100 mil-réis. Escravos, inexistentes como cidadãos, mulheres, índios, soldados e assalariados ficavam de fora. Curiosamente, analfabetos participavam desse início de vida política, porque havia muitos senhores de escravos iletrados. O sistema era complexo: províncias elegiam representantes paroquiais, que escolhiam os candidatos das comarcas, de onde saíam os deputados. Dos 72 representantes brasileiros nas Cortes portuguesas, apenas 46 cruzaram o Atlântico. A bancada mineira considerou inútil a longa viagem, ante a iminência da Independência. Antônio Carlos Ribeiro de Andrada e Silva, Cipriano Barata e Diogo Antônio Feijó, entre outros, acabaram expulsos de Portugal sob pedradas e cusparadas.

A segunda experiência parlamentar brasileira teve novo desfecho autoritário: irritado com os rumos da Assembleia Constituinte instalada em maio de 1823, dom Pedro I a dissolveu seis meses depois e mandou prender deputados como o patriarca José Bonifácio de Andrada e Silva. Em 25 de março de 1824 outorgou a primeira Constituição brasileira, elaborada por um conselho nomeado, que vigorou até a República. Seguia o modelo inglês de monarquia constitucional, com a inovação do Poder Moderador, concentrando vastas prerrogativas no imperador: dissolver a Câmara, nomear ministros, senadores, presidentes de províncias e juízes, sancionar e vetar atos do Poder Legislativo.

Para eleger deputados, cada província se dividia em círculos, o que hoje equivaleria ao voto distrital, tal como adotado em países europeus e nos EUA. Senadores deviam ter pelo menos 40 anos de idade e renda anual superior a 800 mil-réis. Eram escolhidos pelo imperador entre os nomes das listas tríplices eleitos em cada província na proporção de metade dos respectivos deputados. Destes, exigiam-se idade superior a 25 anos e renda de no mínimo 400 mil-réis. Assim, havia entre 50 e 60 senadores, vitalícios, enquanto na Câmara o número variava de 100 a 125 deputados com mandato de quatro anos, abreviado por eleições antecipadas sempre que faltasse maioria parlamentar para compor o ministério e manter no cargo o primeiro-ministro.

A reforma eleitoral encomendada em 1881 pelo primeiro-ministro liberal José Antônio Saraiva ao jurista Ruy Barbosa estendeu o direito de voto aos brasileiros naturalizados, aos não católicos e aos libertos (ex-escravos, cada vez mais numerosos). Introduziu, porém, a restrição ao voto de analfabetos, além de manter a exigência de renda. No pleito de 1886 – com regras que “reduziam o povo a uma ficção, mínima e sem densidade, que vota em eleições fantasmas”, como definiu Raymundo Faoro no livro Os Donos do Poder –, participaram da escolha dos deputados apenas 117.671 eleitores, menos de 1% da população de 14 milhões de habitantes. O Brasil, porém, não estava isolado na situação de democracia sem povo: apenas a França, pioneira do voto universal em 1848, não fazia da renda exigência para seu exercício. O critério censitário ainda existia em pleno século 20 na Suécia, na Dinamarca e na Inglaterra, que só o aboliram em 1907, 1915 e 1918, respectivamente.

Por todo o período do Império se revezaram no comando dos gabinetes parlamentaristas dois partidos, o Liberal e o Conservador, que pouco diferiam, tanto nas ideias como nos interesses representados – de proprietários rurais, do grande comércio e do sistema financeiro. De acordo com o historiador Vamireh Chacon em sua obra História do Legislativo Brasileiro, “os liberais tomavam a frente das campanhas em favor do abolicionismo e da democratização do voto, e os conservadores estabeleciam seu gradualismo, aprovando-as por etapas, resultado de negociações coletivas”.

República dos coronéis

Após a proclamação da República, a Constituição de 1891 eliminou a exigência de renda e universalizou o voto, que, mesmo assim, durante 40 anos, nunca chegou a abranger sequer 6% da população, pois excluía mulheres, analfabetos (imensa maioria em um país ainda agrário), menores de 21 anos, praças de pré, membros de ordens religiosas e mendigos. O país apresentava-se como república representativa, federativa e presidencialista – os Estados Unidos do Brasil, com instituições copiadas do modelo americano.

Em oposição ao centralismo do Império, as províncias transformadas em estados obtiveram autonomia quase ilimitada – a reeleição era vedada ao presidente da República, mas permitida, por exemplo, ao presidente do estado do Rio Grande do Sul. O presidente e o vice-presidente da República elegiam-se por voto direto (em pleitos independentes) para mandatos de quatro anos, assim como os presidentes estaduais (atuais governadores). O Senado passou a ter três representantes por estado, eleitos para um mandato de nove anos (posteriormente encurtado para os oito de hoje). Designava-se Senado Federal para distingui-lo dos Senados Estaduais, pois até 1930 o Poder Legislativo estadual foi bicameral, como continua a ser na quase totalidade dos estados americanos. Para a Câmara Federal manteve-se o voto distrital em vigor no Império: elegiam-se três deputados em cada distrito eleitoral.

Apesar da aparência liberal, a Primeira República foi monopartidária e oligárquica no plano federal. Os presidentes, eleitos quase sempre sem adversários, eram do Partido Republicano. Versões estaduais da legenda (não havia partidos nacionais) ocupavam todos os cargos eletivos. O poder se repartia entre a elite agrária de São Paulo e Minas Gerais, na alternância do “café com leite”.

Em nível estadual, as eleições eram controladas por “coronéis” – latifundiários contemplados com patente da Guarda Nacional. Com o voto facultativo e aberto, potentados locais obtinham a vitória de seus candidatos por meio de suborno ou intimidação. “Nenhum eleitor vinha às urnas espontaneamente. Vinha em troca de um chapéu novo ou de uma nota de 50 réis, por ordem de um patrão ou de um cabo qualquer”, descreveu Monteiro Lobato. A música Cabala Eleitoral, de Baiano e Cadete, gravada em 1904, ironizava: “Não posso, meu coroné/ O voto de graça eu não dou/ É breve lição do meu pai/ Conselho do meu avô”. Na falta de controles independentes, até a década de 1930 eram comuns resultados fraudados, mortos votarem e a disputa à bala dos “currais eleitorais”, por capangas armados pelos coronéis.

Constituições democráticas

Chefe do governo provisório da Revolução de 1930, Getúlio Vargas instituiu por decreto em 24 de fevereiro de 1932 – antes da Revolução Constitucionalista deflagrada por São Paulo em 9 de julho daquele ano – o Código Eleitoral com regras básicas que ainda hoje definem os contornos do regime democrático brasileiro: voto secreto, obrigatório e proporcional; deputados federais podem ser votados em todo o estado que representarão; as cadeiras são divididas proporcionalmente à votação de cada partido e preenchidas pelos que obtiverem os melhores resultados nas urnas, individualmente. Vargas cria ainda a Justiça Eleitoral para regular e fiscalizar os pleitos e estende o direito de voto às mulheres e aos maiores de 18 anos.

Na eleição para a Assembleia Constituinte de 1934, a médica paulista Carlota Pereira de Queiroz se torna a primeira deputada federal da América Latina e única no país, em meio a 253 homens. A segunda Carta republicana incorporava uma bancada classista de deputados eleitos não pelo voto popular, mas pelos sindicatos profissionais de patrões e empregados – corporativismo efêmero, como de resto foi a própria democracia, golpeada na Europa pelo nazifascismo, que chegaria ao Brasil sob a forma da ditadura do Estado Novo (1937-1945).

A Constituição de 1946 restabeleceu o regime democrático, reabilitou as principais regras eleitorais de 1934 e possibilitou a criação de partidos políticos afinados com a nova realidade socioeconômica do país, que deixa de ser agrário para se urbanizar e industrializar. Durante duas décadas, até o golpe de 1964, o Partido Social Democrático (PSD), a União Democrática Nacional (UDN) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) representarão, respectivamente, a elite rural, a classe média urbana e o proletariado. Elegerão os presidentes Eurico Gaspar Dutra (PSD), Getúlio Vargas (PTB), Juscelino Kubitschek (PSD), Jânio Quadros (UDN) e João Goulart (PTB) em campanhas com eleitorado crescente: 13% da população em 1945 e 18% em 1960.

Em 1947, a Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética chega ao Brasil. O Partido Comunista Brasileiro (PCB) e seus parlamentares eleitos, como o escritor Jorge Amado, são cassados. Símbolo dessa época populista é a figura caricata de Jânio Quadros, a comer sanduíches de mortadela nos comícios, um de seus expedientes para se identificar com o eleitor. Também cumpriam essa função slogans como “Vote no Brigadeiro, que é bonito e solteiro”, criado para a campanha de Eduardo Gomes, e jingles do tipo Varre, Varre, Vassourinha, com o qual Jânio prometia varrer a corrupção.

Durante a ditadura militar (1964-1985) generais se revezaram no governo, eleições para presidente e governador tornaram-se indiretas, deputados foram cassados e o Congresso, quando resistiu, foi colocado em recesso. Os antigos partidos deram lugar a dois: Aliança Renovadora Nacional (Arena), de sustentação ao regime, e Movimento Democrático Brasileiro (MDB), de oposição. A propaganda eleitoral na TV só admitia foto e currículo dos candidatos, sem debates, propostas ou críticas. Em 1984, a campanha “Diretas Já” levou milhões a exigir nas ruas o direito de eleger o presidente.

A Constituição de 1988 consagrou novamente as liberdades individuais e públicas. Durante o mandato de Fernando Henrique Cardoso, a reeleição do presidente (e também de governadores e prefeitos) passa a ser admitida, rompendo a tradição republicana que a vedava desde 1891. Um plebiscito acerca da forma e sistema de governo confirma, em 1993, a república e o presidencialismo. A monarquia teve 10,2% dos votos, menos que a soma de brancos e nulos. E o parlamentarismo foi a opção de apenas 24,6% do eleitorado. Ainda no início da década de 1990 as instituições atravessam com êxito a crise que levou ao impeachment de Fernando Collor.

Financiamento público

No século 21, a partir dos repetidos escândalos de financiamento ilegal de campanhas com dinheiro não contabilizado (o malfadado “caixa 2”), os partidos políticos tornam-se alvo de descrédito, o que amplia o espaço para candidaturas de famosos da TV e do esporte. Apesar disso, em 2010, quando a maioria dos 135 milhões de eleitores fazem de Dilma Rousseff a primeira mulher presidente da República (substituindo o primeiro operário), duas diferenças marcaram a composição do Congresso Nacional: ao contrário do que ocorrera nas eleições de Fernando Henrique Cardoso e de Luiz Inácio Lula da Silva, os partidos da base de sustentação ao governo federal obtêm ampla maioria, sinalizando a vontade do eleitorado de que à estabilidade macroeconômica se some também a política. Os interesses representados se tornaram mais nítidos: 273 empresários e 87 sindicalistas eleitos significaram avanços de 25% e 45%, respectivamente, nas bancadas que se enfrentarão em pautas polêmicas, como a redução da jornada de trabalho.

Tema destacado na última campanha presidencial não só pela petista vencedora, mas também por José Serra (PSDB) e Marina Silva (PV), a reforma política ressurgiu com força logo no início da atual legislatura. Duas comissões se instalaram simultaneamente para recolher, analisar e selecionar propostas, uma no Senado, outra na Câmara. A primeira, após 45 dias de atuação, apresentou, no dia 7 de abril, conclusões que ainda serão apreciadas no plenário, entre as quais sobressaem duas novidades: financiamento público exclusivo das campanhas eleitorais e votação por meio de lista fechada (o eleitor vota no partido e não mais no candidato), que teria a obrigação de incluir 50% de mulheres entre os nomes escolhidos pelas cúpulas partidárias. Esse sistema resultou numa bancada feminina de 40% do Congresso argentino. No Brasil, as mulheres somam 52% do eleitorado, mas não passam de 15% nas Casas legislativas.

Quanto à proposta da Câmara, a comissão que trata do tema tem prazo até agosto para se definir e a reforma precisa ser votada nas duas Casas antes de outubro deste ano, para entrar em vigor nas eleições municipais de 2012. Distante desse debate e sem compreender seus matizes, a população deverá ser consultada sobre as mudanças em um referendo. Se utilizado mais vezes em nosso país, esse dispositivo de democracia direta poderá contribuir para ampliar a participação da sociedade na definição de seus destinos.

Até hoje, o Brasil só viveu dois períodos – de 1945 a 1964 e de 1989 até o momento atual – de vigência plena do voto secreto e universal, obrigatório para maiores de 18 anos de ambos os sexos (hoje é facultativo dos 16 aos 18 anos e acima dos 70), como instrumento exclusivo de soberania política para preenchimento dos cargos dos poderes Executivo (presidente, governador e prefeito) e Legislativo (senadores, deputados federais e estaduais e vereadores). Além do curto histórico democrático, a baixa qualidade do ensino público e o reduzido acesso aos bens culturais por mais de 90% da população, que tem na TV aberta sua única fonte de informação, são obstáculos a superar para a elevação da cultura política do brasileiro. A universalização da banda larga também pode fazer da internet uma arma contra o poder corruptor do dinheiro nos processos eleitorais e o monopólio da opinião pública pelos conglomerados privados de mídia.