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Veneno agrícola invade o país

por André Campos

Disseminada pelo comércio de rua e pelos camelódromos, a venda de produtos contrabandeados está incorporada ao cotidiano das maiores cidades brasileiras, fazendo girar, segundo sugerem as estatísticas oficiais, um montante cada vez mais volumoso. Somente em 2010, a Receita Federal apreendeu quase R$ 1,3 bilhão em mercadorias que entraram ilegalmente no país – mais do que o dobro do registrado cinco anos antes. Os itens barrados incluem bebidas, cigarros, brinquedos, peças de vestuário, veículos, eletroeletrônicos e até medicamentos.

Entre os campeões do contrabando, no entanto, há outro tipo de produto que pouca gente imagina: os agrotóxicos. Utilizados para prevenir e combater pragas nas lavouras, eles são essenciais para viabilizar os monocultivos em larga escala que caracterizam as principais commodities do agronegócio nacional – como, por exemplo, a soja, o milho, o algodão e a cana-de-açúcar. Sua importância para o campo se reflete no preço: com frequência, os venenos agrícolas – em alguns casos protegidos por patentes de grandes multinacionais, como Basf, Bayer, Dow, Monsanto e Syngenta – custam centenas de reais por hectare aplicado. Representam, portanto, uma das principais despesas para os fazendeiros, safra após safra.

Nesse contexto, as diferenças de valor entre o produto legal e o contrabandeado impulsionam um comércio ilícito de cifras milionárias. De acordo com o Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Agrícola (Sindag), a venda de inseticidas, herbicidas e fungicidas ilegais – que, além do contrabando, abrange também a falsificação de mercadorias em território brasileiro (ver texto abaixo) – movimentou cerca de US$ 660 milhões somente no ano passado. É o equivalente a 9% do mercado formal.

Trata-se de um problema relativamente recente no país – os primeiros flagrantes ocorreram há pouco mais de dez anos. Sua disseminação, contudo, foi rápida e democrática pelas diversas regiões agrícolas. “No Brasil, em todos os locais onde há agricultura desenvolvida já foram feitas apreensões”, revela Fernando Henrique Marini, gerente da campanha contra os agrotóxicos piratas movida pelo Sindag. A entidade calcula que cerca de 5,6 milhões de hectares – o equivalente à área do estado da Paraíba – deixaram de ser tratados com os agrotóxicos ilegais apreendidos desde 2001.

Origem asiática

Maior fabricante global de agroquímicos, a China é o principal fornecedor dos defensivos agrícolas que entram clandestinamente no Brasil. Porém, antes de chegar ao território nacional, tais mercadorias fazem escala em países vizinhos – principalmente Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai –, onde são vendidas legalmente e por preços bem menores que os de similares no Brasil. A diferença atrai agricultores dispostos a trazer agrotóxicos escondidos na bagagem – por terra, rio ou mesmo de avião –, não raro acondicionados em invólucros de outros produtos. “Temos uma fronteira muito grande, o que dificulta o controle”, pondera Fernando Marques, diretor de Qualidade Ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

O contrabando de agrotóxicos, longe de ser atividade de pequenos sacoleiros, por vezes engloba quadrilhas com dezenas de integrantes, donas de conexões em diversos estados, que contam com a participação de servidores públicos e chegam ao requinte de prestar consultoria agrícola aos clientes. “Em uma dessas organizações prendemos até mesmo uma pessoa que atuava como ‘pragueiro’ [profissional que orienta o controle das pragas, indicando os produtos mais adequados para cada caso]”, conta Luiz Alfredo Ribas, agente da Polícia Federal em Maringá (PR). Foram identificadas inclusive companhias de fachada criadas por brasileiros no Paraguai, destinadas a facilitar o crime. O objetivo era ‘esquentar’ a mercadoria chinesa – que, na verdade, ia direto para o Brasil.

Além dos prejuízos à indústria nacional e ao Estado – que deixa de recolher os impostos devidos –, essa prática também pode se tornar um tiro pela culatra para os próprios produtores rurais. Análises da Polícia Federal indicam que, em alguns casos, os venenos piratas contêm substâncias distintas daquelas que supostamente deveriam constar em sua composição – o que, além de privar os fazendeiros de um combate adequado às pragas, expõe a população ao risco de ingerir resíduos potencialmente muito nocivos.

As ameaças ao meio ambiente e à saúde humana, aliás, já começam no transporte das mercadorias contrabandeadas. Para driblar a fiscalização, caminhões chegam a trazer defensivos agrícolas escondidos em meio a cargas de alimentos, com flagrante perigo de contaminação – tal prática já foi identificada, por exemplo, em carregamentos de fubá na Bahia e de farinha de trigo no Paraná. Os agrotóxicos, como o próprio nome diz, são produtos tóxicos, frequentemente comercializados em soluções bastante concentradas, que, antes da aplicação na lavoura, costumam ser diluídas em grandes quantidades de água.

Para piorar, o contrabando também permite a entrada no Brasil de substâncias que já haviam sido proibidas em território nacional devido à sua elevada toxicidade – um problema que, de acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), pode ter reflexos na comida colocada à mesa da população.

Em 2009, o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos, coordenado pela Anvisa, identificou substâncias banidas do país – ou mesmo que nunca tiveram registro oficial em território brasileiro – em 32 amostras de abacaxi, arroz, feijão, maçã, mamão, morango e uva. De acordo com a entidade, o contrabando e a permanência no solo de compostos aplicados em época anterior a seu banimento são duas hipóteses que podem explicar tais resultados – cabendo às secretarias de agricultura estaduais investigações complementares para rastrear a origem dos produtos.

Dois anos antes, a Anvisa já havia detectado venenos agrícolas proibidos em amostras de tomates na Bahia, fato comunicado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e à Polícia Federal. Problemas Brasileiros entrou em contato com a agência para saber se houve avanços na identificação da origem desses resíduos, porém não obteve retorno.

Outro problema agravado pelo mercado pirata é o destino das embalagens vazias, também uma fonte potencial de resíduos altamente tóxicos. Desde 2000, os agricultores brasileiros são obrigados a devolvê-las em locais indicados na nota fiscal da compra – nos quais, posteriormente, elas são recolhidas pelos fabricantes para reciclagem ou incineração controlada.

Baseado na responsabilização de todos os elos da cadeia agrícola – agricultores, centros de revenda e indústria –, esse sistema, segundo o Instituto Nacional de Processamento de Embalagens Vazias (InpEV), garante a destinação adequada de aproximadamente 80% dos invólucros de agrotóxicos comercializados legalmente no país. Os produtos contrabandeados, no entanto, estão à margem desse controle oficial. Suas embalagens continuam sendo incineradas e enterradas de forma totalmente inadequada, quando não são abandonadas em estradas ou mesmo em propriedades alheias.

Mortes na cidade

Para minimizar os riscos de contaminação humana e ambiental, o emprego de defensivos precisa seguir uma série de normas técnicas – que incluem prazos entre a última aplicação e a colheita, o uso de equipamentos de proteção pelos trabalhadores, a armazenagem adequada do produto e sua utilização somente nas culturas para as quais é autorizado. Negligenciar tais procedimentos é um crime previsto na Lei dos Agrotóxicos (nº 7802/89), que pode levar a condenações de até quatro anos de prisão.

Os insumos contrabandeados, no entanto, facilitam o descumprimento dessas boas práticas, já que nem mesmo garantem sua correta divulgação – obrigatória no rótulo dos produtos originais. Além disso, tal como ocorre com remédios controlados, a venda legal de venenos agrícolas ao produtor requer uma receita, emitida por um agrônomo habilitado. Como não passa pelo crivo desses profissionais, o comércio informal facilita o uso de agrotóxicos para além das porteiras do campo, em contextos altamente lesivos à sociedade.

O ‘chumbinho’ é, provavelmente, o maior exemplo dessa realidade. De acordo com a Anvisa, o contrabando – juntamente com o roubo de cargas e o desvio das lavouras – está por trás da venda desse produto, utilizado irregularmente como raticida e comercializado até mesmo por camelôs espalhados pelo país. Produzido a partir do fracionamento de agroquímicos controlados, de uso exclusivo em plantações, ele apresenta, segundo as autoridades, baixa efetividade no combate às infestações de ratos. No entanto, pode ser letal para o ser humano, em decorrência de ingestão acidental – que ocorre principalmente com crianças – ou criminosa.

Devido ao elevado índice de subnotificação, não existem dados nacionais confiáveis sobre as intoxicações provocadas pelo chumbinho. Algumas estatísticas regionais, entretanto, ajudam a dimensionar a gravidade do problema. Entre 2003 e 2007, o Centro de Informação Toxicológica de Goiás (CIT-GO) registrou 537 casos – dos quais cerca de 6% levaram à morte. E num universo de apenas oito hospitais da região metropolitana fluminense, entre abril de 2001 e março de 2004, pesquisadores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) identificaram 121 atendimentos relacionados ao chumbinho – número que leva em conta apenas os casos de ingestão por crianças de até 5 anos de idade.

Talvez em número até superior ao de intoxicações humanas, o chumbinho também é presença constante em casos de envenenamento de outras espécies. Idealizador da campanha “Chumbinho Não!” – que objetiva banir do país o Aldicarbe, principal agrotóxico utilizado na fabricação do produto –, o ativista pelos direitos dos animais Maurício Varallo diz que, além dos pequenos roedores, certamente estão na casa dos milhares os cachorros, gatos e outros bichos mortos anualmente pela ação do veneno. “Em Campinas temos inclusive relatos de corujas que morreram porque predaram ratos contaminados”, diz ele.

O dilema do preço

Nos últimos dez anos, o Brasil computa mais de 700 suspeitos detidos e cerca de 40 condenações pelo comércio de defensivos piratas. Durante esse período, avalia o Sindag, houve uma grande melhora na repressão ao crime, que hoje mobiliza diversas esferas do serviço público – a exemplo da Receita Federal, do Ibama e de secretarias de agricultura. Atualmente, há policiais especializados na área, um disque-denúncia exclusivo para esse tipo de crime e ações de inteligência baseadas no calendário agrícola, que condiciona os períodos de compra dos diferentes insumos.

Esses avanços ajudam a explicar o aumento das apreensões – quase 60% maiores no primeiro semestre de 2011 que no mesmo período de 2010. Por outro lado, tais números sugerem que, mesmo com o aperto da fiscalização, o contrabando e a falsificação não perderam o fôlego. “Apesar dos esforços, o problema só tem aumentado”, afirma Tulio Teixeira de Oliveira, diretor executivo da Associação Brasileira dos Defensivos Genéricos (Aenda).

Motivo de frequentes queixas dos produtores rurais, o preço dos agrotóxicos no país não raro supera em 60% o de equivalentes contrabandeados. A diferença, segundo Oliveira, pode ser em parte explicada pelo ‘custo Brasil’ – impostos elevados, juros altos e uma taxa de câmbio desfavorável aos produtos nacionais. “Há um status quo que facilita a prática desses delitos”, acrescenta ele.

Além de mudanças nesse cenário macroeconômico, a diminuição de preços através da entrada de agroquímicos genéricos no mercado é outra bandeira comumente defendida para enfrentar as ilegalidades. “Não adianta somente coibir. Temos de oferecer uma alternativa ao produtor”, alega o senador Acir Gurgacz (PDT/RO), defensor dos genéricos.

Desde 2002, um decreto presidencial autoriza o registro, por equivalência, de agrotóxicos com a mesma fórmula daqueles cuja patente já expirou – o que de fato levou à liberação de novos produtos e, em alguns casos, à diminuição dos preços. Segundo Oliveira, no entanto, a morosidade do governo federal na avaliação das solicitações dificulta uma maior concorrência no setor. “A lei determina prazo máximo de 120 dias para a análise dos pedidos, mas há demora de até cinco anos”, reclama.

Visando acelerar os trâmites burocráticos, representantes do setor agropecuário defendem mudanças na lei para que a aprovação de novos defensivos seja atribuição exclusiva do Ministério da Agricultura – atualmente, além do órgão, também o Ibama e a Anvisa apreciam os pedidos. Tal ideia, contudo, enfrenta a oposição de ambientalistas, que já se queixam do fato de o governo permitir, em território nacional, diversos agrotóxicos banidos em outros países. Desde 2008, quando superou os Estados Unidos, o Brasil é o maior consumidor mundial desse tipo de substância.

“O Endosulfan (inseticida associado a doenças endócrinas e reprodutivas, cuja aplicação será banida no Brasil até 2013) já está proibido há décadas na União Europeia e nos Estados Unidos. É o segundo agrotóxico mais utilizado no país”, exemplifica Wanderlei Pignati, professor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Em sua visão, é justamente nos venenos agrícolas legais – e não nos piratas – que residem hoje os principais riscos ao meio ambiente e à saúde dos brasileiros. “A escala é de milhões de litros de agrotóxicos permitidos para cada mil litros de produtos contrabandeados”, completa.

Além disso, convém lembrar que, segundo fiscalizações recentes, adulterações na fórmula de agrotóxicos não são atos exclusivos de contrabandistas e falsificadores. Fabricantes de agroquímicos legalmente instalados no país também têm sido flagrados nesse tipo de prática – em março de 2010, por exemplo, uma blitz da Anvisa identificou o problema em quatro indústrias do setor. Outras autuações incluem o reaproveitamento irregular de venenos agrícolas vencidos e a ausência do controle obrigatório de impurezas toxicologicamente relevantes, o que “pode causar câncer nos trabalhadores expostos ao agrotóxico e na população que ingere alimentos contaminados com tais produtos”, atesta nota da agência.


Falsificados “made in Brazil”

Nos últimos anos, a falsificação de agrotóxicos vem ganhando espaço e ameaça inclusive superar o contrabando como a principal fonte dos venenos piratas usados em plantações brasileiras. É o que indicam as apreensões recentes no país – segundo o Sindag, no primeiro semestre de 2011 os falsificados representaram 40% dos agroquímicos ilegais encontrados pelas autoridades, número que, até 2008, não superava 5%.

De acordo com Fernando Henrique Marini, o cerco à entrada ilícita de agrotóxicos via países vizinhos ajuda a explicar o fortalecimento dos falsificados ‘made in Brazil’. “São as mesmas pessoas envolvidas no contrabando que partem para esse tipo de crime”, argumenta. Assim como ocorre no comércio ilegal transfronteiriço, substâncias banidas também estão presentes em fábricas clandestinas fechadas pela Polícia Federal. Além disso, de acordo com o Sindag, frequentemente tais produtos são ineficazes por ter pouco princípio ativo em sua composição.

Não bastasse a falsificação e o contrabando, uma nova vertente de ilegalidades começa a preocupar os empresários. Trata-se de produtos que, para driblar as exigências da Anvisa na aprovação de novos defensivos, são registrados de forma travestida no órgão, por exemplo, como substâncias veterinárias ou mesmo para jardinagem amadora. Seu destino final, no entanto, é o uso em lavouras, que ocorre sem as devidas precauções relacionadas ao manuseio e ao intervalo entre a aplicação e a colheita.

Nos últimos dois anos, a Aenda informa ter encaminhado às autoridades denúncias sobre dez marcas e três fabricantes que estariam se valendo desse desvio de uso – uma prática que já levou à interdição de 40 mil litros de produtos do gênero pelo Ministério da Agricultura.