Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

“Além de cega, é surda e muda”

Situação caótica do Judiciário compromete cidadania e favorece criminalidade

SILVIA KOCHEN

A criminalidade avança no país, e os brasileiros veem a segurança pública como um dos principais problemas atuais. As polícias não têm o preparo necessário, o Judiciário está paralisado por avalanches de processos e o sistema prisional, falido. Encontrar soluções para essa situação, porém, não é simples. Enquanto a maioria clama por punições mais rígidas e mais prisões, muitos dizem que é justamente o caminho inverso que deve ser tomado, com a adoção de penas alternativas, que teriam caráter educativo.

O quadro é tão caótico que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) elegeu 2010 como o Ano de Modernização da Justiça Criminal no Brasil. Walter Nunes, do CNJ, explica que quando o conselho foi instalado, há cinco anos, foi elaborado um planejamento estratégico, e entre as várias metas estabelecidas para 2009 estava a realização de consultas públicas, que permitiram aos cidadãos fazer críticas e propor sugestões para a melhoria do Judiciário.

Como foram detectados vários problemas na Justiça criminal, o CNJ resolveu criar um plano específico para essa área, que está sendo implantado neste ano. O ponto mais visível está em campanhas veiculadas na mídia destinadas a divulgar as vantagens de penas alternativas e combater o preconceito contra ex-presidiários, que devido às dificuldades de encontrar emprego podem acabar voltando ao crime.

Além da elaboração de um manual prático de rotinas processuais, investiu-se em melhorias na gestão do sistema judiciário com o objetivo de acelerar inquéritos e padronizar trâmites processuais. Também se empreendeu um amplo mutirão carcerário, que libertou 20 mil detentos que já haviam cumprido suas penas ou que ainda não tinham condenação. “Encontramos um caso em que a pessoa estava presa havia dez anos sem que seu caso tivesse sequer sido apreciado por um juiz”, conta Nunes. O projeto também busca criar uma estrutura mínima em cada fórum, com recursos humanos e espaço físico adequados.

Outro ponto de destaque é a informatização, que no futuro permitirá uma enorme redução da papelada, pois o advogado poderá acompanhar o processo e fazer petições pela internet. As audiências, cujo registro será audiovisual, serão realizadas a distância, com depoimentos transmitidos em tempo real, o que evitará o deslocamento de presos até os fóruns – um procedimento oneroso e que envolve inúmeros riscos. Nunes acrescenta que a ideia é usar a rede de computadores também para realizar cursos de aperfeiçoamento para juízes e funcionários do Judiciário, o que deverá melhorar a qualidade da Justiça como um todo.

Crime

Um dos pontos importantes dessa modernização diz respeito a algumas propostas de alteração nas leis, que devem ser submetidas à aprovação do Legislativo. Um exemplo é a adoção de monitoramento eletrônico para penas em regime aberto ou semiaberto, com o uso de tornozeleiras ou pulseiras eletrônicas. Contudo, é justamente no Legislativo que está uma das principais resistências à modernização da Justiça criminal.

A maioria dos projetos em apreciação no Congresso pede mais rigor, como, por exemplo, a criminalização da erva do santo-daime e o aumento de penas, afirma o consultor de segurança pública Marcos Rolim, membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). O órgão tem a atribuição de analisar todo projeto de lei que envolva matéria criminal e dar parecer sobre ele para orientar a posição do Executivo sobre o assunto.

Rolim conta que grande parte dos projetos de alteração da lei penal feitos pelo Legislativo tem parecer desfavorável porque é muito ruim. “Há propostas absurdas, decorrentes do alarido da mídia em torno de algum fato”, afirma. O conselheiro acredita que falta uma discussão séria sobre esses assuntos. Como exemplo, ele cita um projeto que torna crime o sequestro de ônibus, algo de que a lei atual já dá conta, e uma proposta de emenda à Constituição que cria a polícia penal – o que transformaria todos os agentes penitenciários em policiais sem concurso e sem respaldo financeiro para a equiparação salarial com os quadros da polícia. A redução da maioridade penal – que tornaria adolescentes de 16 anos sujeitos a prisão – é outro ponto recorrente nos projetos apreciados pelo CNPCP. O conselho dá parecer desfavorável nesses casos porque entende que são inconstitucionais.

Na opinião do professor Damásio de Jesus, advogado criminalista e representante brasileiro em vários eventos internacionais sobre o combate ao crime, embora existam leis penais de sobra, falta quem as execute. “O Brasil é o país com maior número de leis criminais; são 361 artigos no Código Penal e 811 no Código de Processo Penal, além da legislação complementar”, observa. Ele lembra, ainda, que em todo o estado de São Paulo há cerca de 100 mil policiais, enquanto somente a cidade de Nova York dispõe de 40 mil efetivos na polícia.

Damásio de Jesus diz que “qualquer coisa no Brasil pode ser tipificada como crime, até mesmo ter um animal de estimação que faça barulho no apartamento”. Ele conta que um eminente jurista italiano, Giuseppe Bettiol, que esteve no Brasil há cerca de 20 anos, ficou espantado ao visitar o Supremo Tribunal Federal e verificar que a sessão do dia tratava de uma arara que fazia barulho no apartamento e incomodava os vizinhos. “Em qualquer outro país, isso seria um problema que o guarda resolveria; um caso como esse jamais deveria chegar ao Supremo.”

O professor também cita histórias de sua vida profissional como advogado que beiram o absurdo, como o exemplo de um processo em que foi pedida uma perícia, mas a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo afirmou que, por falta de pessoal e levando em conta a demanda por esse tipo de serviço, só haveria condições de realizá-la em determinada data, um século depois. Segundo Walter Nunes, do CNJ, não existe ocorrência de que o Código Penal brasileiro não dê conta, pois ele permite enquadrar até mesmo delitos considerados novos, como pedofilia na internet ou fraudes eletrônicas. Muitos crimes, porém, acabam ficando impunes por outros motivos, como o mau funcionamento do Judiciário e um Código de Processo Penal que precisa ser aperfeiçoado.

Castigo

“Não adianta modernizar a legislação se não se quebra o preconceito”, diz a advogada Sonia Drigo, que defende gratuitamente presas pobres e atua na defesa dos direitos humanos das detentas por meio do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC). Ela denuncia que há um clamor por aumento de penas porque a mídia foca os crimes cometidos contra a classe média, como furtos e roubos, mas não se pede rigor maior para criminosos de colarinho branco.

“Há uma diferença de tratamento entre ricos e pobres, pois é a situação financeira que determina o tipo de atenção que a pessoa receberá da Justiça”, diz Sonia, lembrando que enquanto o habeas corpus da dona da Daslu, Eliana Tranchesi, saiu em uma tarde, a soltura de uma presa pobre pode levar até um ano e meio. Em sua opinião, muita gente pede reformas na lei de execução penal porque ela é muito boa e prevê condições mínimas para o preso, como o espaço de 6 metros quadrados por detento em uma cela. Hoje, ironicamente, apenas os presídios de segurança máxima cumprem essas exigências.

Sonia começou a militar em um grupo de defesa dos direitos humanos em 1997. Desde então, visita presídios femininos com regularidade para verificar a existência de condições dignas para as detentas, apurar eventuais denúncias de tortura e prestar assistência social (arrumando remédios, encaminhando solicitações de atendimento médico, fazendo contatos com as famílias etc.). Conhecendo profundamente a situação das prisões brasileiras, ela qualifica o sistema penitenciário como “sucursal do inferno”. Foi somente em 2005, porém, que Sonia passou a fazer a defesa jurídica de mulheres encarceradas sem condição de pagar um advogado, ao comover-se com a história de uma delas. 

Maria Aparecida de Matos foi presa em abril de 2004 pelo furto de um xampu e um condicionador, no valor de R$ 24. Com problemas de saúde mental, ela teve dificuldade de convivência com as demais detentas, que a agrediam constantemente, sob o olhar dos carcereiros. Certa ocasião, um líquido corrosivo foi jogado em seu rosto, o que a levou a perder a vista direita, mas ela não recebeu atendimento médico. Somente meses depois, na audiência de instrução, a defensora pública observou seu estado e pediu as devidas providências, a começar pelo exame de corpo de delito, e sua transferência para a Casa de Custódia de Franco da Rocha. A irmã de Maria Aparecida procurou então a Pastoral Carcerária, que contatou Sonia Drigo. O primeiro habeas corpus foi negado, e ela teve de recorrer ao Superior Tribunal de Justiça para que Maria Aparecida fosse libertada, depois de 13 meses de prisão e um olho perdido.

“É um prazer muito grande reverter uma ilegalidade, e o caso de Maria Aparecida me mostrou a utilidade dos conhecimentos que adquiri na vida”, diz Sonia, que a partir dali passou a defender presas por “crimes de bagatela”, como são chamados os furtos de pequeno valor. Desde então, já atuou na defesa de 400 mulheres encarceradas por bobagens, como o furto de um queijo e dois pacotes de bolacha, um ovo de Páscoa, um tubo de tintura para cabelo, um creme para rugas... “Não se trata de gente perigosa, é o chamado roubo famélico, motivado por necessidade”, afirma a advogada.

Segundo Sonia, a maioria das mulheres presas por crime de bagatela é analfabeta, e não adianta falar em reeducá-las, porque seria preciso tirar o “re”. Normalmente, elas furtam produtos de primeira necessidade, como bolachas para os filhos, ou itens a que nunca teriam acesso, como cosméticos, mas que se tornam objeto de desejo devido à propaganda. “A Justiça no Brasil, além de cega, é surda e muda e prefere ignorar o que ocorre”, diz ela, observando que um pobre que furta é considerado ladrão, enquanto um rico que faz a mesma coisa é apenas um cleptomaníaco.

Sonia explica ainda que o furto é endêmico no Brasil e que eventualmente alguém é pego para ser execrado em praça pública e ficar preso. O resultado é terrível. “É muito comum alguém entrar são na cadeia e sair de lá doido.” Em sua opinião, há necessidade de uma pesquisa no Brasil sobre as consequências do encarceramento.

A advogada acrescenta que a situação das mulheres presas é sempre mais precária que a dos detentos homens, pois a administração penitenciária não reconhece a diferença de necessidades entre os dois sexos. “Cada preso recebe um rolo de papel higiênico por mês, o que pode ser suficiente para um homem, mas não para uma mulher. As detentas ficam amontoadas numa cela, sem condições de higiene, e têm de dormir no chão frio de cimento; por isso frequentemente ficam doentes e não recebem a devida assistência médica.”

Como furto é um crime considerado leve, explica Sonia, a pena prevista é branda e, na maioria dos casos, poderá ser cumprida em regime aberto. Porém, enquanto pessoas de nível social mais elevado nem sequer são indiciadas, se os acusados são miseráveis até mesmo o habeas corpus é difícil de conseguir. “É uma deturpação. Se se sabe que a pessoa não receberá condenação, por que mantê-la presa?” Ela lembra que atrás de cada detenta há um núcleo familiar. “Nem sempre o Ministério Público vê a defesa da sociedade, mas um castigo contra a pessoa.”

Walter Nunes, do CNJ, acrescenta que há uma cultura diferente no interior dos presídios, onde frequentemente nascem novas organizações criminosas, o que demonstra que também existe um problema de gestão. Ele revela que hoje há cerca de 450 mil presos no Brasil e mais 170 mil mandados de prisão que aguardam cumprimento por absoluta falta de vagas. “No mundo inteiro, a prisão é a solução de última instância; aqui ela se generalizou, e por isso precisamos buscar outros caminhos.”

Mudança de mentalidade

“Temos um Código Penal de 1940, em que praticamente todos os delitos levam à prisão”, diz Rolim, do CNPCP. “A solução para o crime, porém, não é agravar penas, é preciso atualizar os conceitos.” A tendência mundial é adotar penas alternativas – como a proibição de frequentar certos locais, a prestação de serviços comunitários ou multas – para os delitos considerados leves, como furtos, infrações de trânsito etc. (No Brasil, são passíveis de penas alternativas crimes com condenação de até 4 anos.)

Segundo Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, professora de antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), a adoção de penas alternativas é muito importante, embora tardia. Como qualquer mudança, traz desconforto, diz Ana Lúcia, que tem como especialidade antropologia do direito.

“Vivemos numa sociedade em que desde os bancos da escola qualquer falta era passível de castigo”, analisa. “Por isso, é difícil aceitar penas que restrinjam direitos, de caráter educativo, em vez daquelas que privam da liberdade, que são apenas punitivas.” Ana Lúcia observa que a proposta de penas alternativas é maravilhosa em termos de idealismo, mas na prática sua implantação é difícil, pois exige equipes multidisciplinares nos fóruns e uma mudança de mentalidade para que as pessoas se sintam envolvidas.

“Hoje, temos a sensação de impunidade, mas direcionada para aquele tipo de crime que coloca em risco a segurança da classe média, em que se visualiza agressor e agredido”, diz a antropóloga, observando que não se pensa em crime de colarinho branco ou de corrupção, pois as pessoas comuns não veem nexo entre o empresário sonegador e a criança que ficou sem merenda na escola. Por isso, o velho ditado de que no Brasil só vão para a prisão os três “Ps” – preto, pobre e prostituta – reflete a realidade de forma fiel.

Ana Lúcia explica que todo o nosso sistema educacional está voltado para a premiação dos resultados certos e a punição dos errados, mas não se avaliam processos. Por exemplo, a nota de um aluno que resolve corretamente um problema complexo de matemática e na última etapa inverte um sinal em geral é igual à daquele que erra todo o problema. Os cursos de direito no Brasil também estão focados no aspecto punitivo e técnico, não dão uma visão humanista, necessária para que magistrados, advogados, delegados e promotores negociem a resolução de conflitos com sensibilidade. Vem daí, na opinião da antropóloga, a dificuldade de trabalhar com penas alternativas no Brasil.

A Lei Maria da Penha é um exemplo dessa dificuldade, diz Ana Lúcia. A lei anterior, que previa pagamento de cesta básica como punição para a violência doméstica, não resolvia o problema. Agora, qualquer agressão é passível de prisão, e o número de denúncias caiu, pois muitas mulheres querem dar um susto no agressor, mas não desejam que ele fique preso. “É um ganho do movimento feminista, porque a violência doméstica é crônica, mas também é uma lei tão punitiva que as próprias vítimas pensam muito antes de fazer uma denúncia, principalmente quando o agressor é o provedor da casa.” A antropóloga lembra que nos Estados Unidos o agressor doméstico é obrigado a passar por terapia e a prestar serviço em hospitais que recebem casos de violência doméstica. “Será que não podemos ter uma proposta intermediária, que não seja tão branda a ponto de punir a violência doméstica com pagamento de cestas básicas, nem tão rígida que desestimule a denúncia?”, indaga ela.

Marcos Rolim observa que muitas matérias do direito civil hoje estão indo para o Código Penal, como a questão do assédio sexual, e avalia que isso só traz prejuízo. “No mundo civilizado, assédio é típico do direito civil; no Brasil, o juiz acaba dando uma pena alternativa, como o pagamento de cestas básicas para uma instituição; o resultado é que a vítima fica sem reparação.” Por isso, a questão das penas e da criminalização deve ser discutida com maior seriedade.

Damásio de Jesus acredita que as penas alternativas são muito vantajosas para a sociedade. Enquanto o índice de reincidência é de 80% para os que passam pelo sistema prisional, argumenta ele, para os que recebem penas alternativas é inferior a 2%. No ano passado, houve cerca de 670 mil condenações desse tipo no país. Damásio de Jesus esclarece que há vários tipos de penas alternativas, mas alguns deles seriam considerados inconstitucionais no Brasil. Nos Estados Unidos, por exemplo, a pena pode ser a colocação de uma placa diante da casa do condenado com os dizeres “aqui mora um criminoso”. O grande problema, diz o professor Damásio, é que a fiscalização do cumprimento das penas alternativas é falha, praticamente inexistente, e parte dos condenados abandonam a prestação de serviços à comunidade.

Segundo Sonia Drigo, o grande mérito da pena alternativa é que garante a cidadania e a dignidade dos condenados, o que não acontece na prisão, além de permitir a socialização. Ela cita o exemplo de um técnico que foi sentenciado a trabalhar numa escola aos sábados. Ele acabou pondo em ordem a parte elétrica do edifício e ficou amigo de todos por lá. Há casos em que a pessoa é até mesmo contratada pelo estabelecimento onde cumpre a pena.

 

Comente

Assine