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Boas ações que salvam vidas

por Silvia Kochen

Aos 40 anos, Marília Brasil Rocha Navarro era uma dona de casa atribulada com três filhas adolescentes, de 14, 12 e 10 anos. Um dia, resolveu ela mesma pintar os quartos das meninas para mudar a cor, mas um cansaço enorme a abateu antes de terminar. Foi aí que Marília decidiu fazer um check-up. Após os exames, a médica a encaminhou ao hematologista, um especialista em doenças do sangue. Descobriu, então, que estava com leucemia mieloide crônica e precisava de um transplante de medula. “Fiquei chocada com o diagnóstico, pois sabia que era uma enfermidade que poderia me matar”, conta ela, que conheceu várias pessoas vencidas pela doença, mesmo passando por tratamento quimioterápico.

A partir desse dia a vida de Marília mudou completamente, e ela se preparou para ir à luta. Estava em um momento particularmente difícil, pois seu pai estava com Alzheimer, aos cuidados de sua mãe, e prestes a falecer. “Tive de cuidar da minha estabilidade emocional para não prejudicar minha mãe ou minhas filhas.” Ela começou, então, a ler muito para se informar sobre a doença, contratou uma cozinheira para preparar pratos congelados para que a família seguisse vivendo normalmente no período em que teria de ficar no hospital, foi à escola das crianças explicar o caso à diretora para evitar que as meninas tivessem problemas com professores ou colegas. “Deixei tudo estruturado para a minha família para poder me isolar no hospital quando fosse fazer o transplante.”

Marília teve sorte. Os exames indicaram que três de seus cinco irmãos tinham compatibilidade genética para doar medula para ela. O normal é que pacientes com leucemia fiquem anos à espera de um doador compatível – e muitos acabam falecendo antes de encontrá-lo. Apenas 8 meses depois do diagnóstico, Marília se internou para o transplante. Foi o início de uma nova vida, mas com um parto difícil.

O tratamento começou com uma quimioterapia pesada, que visava matar todas as células da medula, que estava doente, para que pudesse receber as novas, sadias. O dia zero, como é chamado esse ponto a partir do qual uma nova medula começa a ser formada, chegou 14 dias depois. É um momento delicado, pois o organismo fica sem defesas, e o risco de contaminação é extremamente alto. Como o paciente praticamente fica sem a medula, que é o órgão que fabrica o sangue no corpo, ele também necessita de sangue doado. Desde essa época, quase todos os parentes de Marília doam sangue regularmente.

Marília foi se recuperando e hoje está com 57 anos. Nas salas de espera de clínicas e hospitais, ela viu o quanto é afortunada por ter se tratado na cidade onde mora, Campinas, e assim poder contar com o apoio da família. Em conversas com outros pacientes, surgiu a ideia de uma rede informal de apoio a pacientes de outros locais que iam para lá em busca de tratamento. Foi assim que nasceu a Associação Vida – Centro de Apoio ao Transplantado de Medula Óssea (Catmo), entidade que hoje ocupa boa parte do tempo de Marília com atividades como visitar pacientes, orientar acompanhantes e dar palestras sobre formas de lidar com a doença, entre outras.

Sangue bom

Mesmo tendo vencido a doença, Marília necessita de transfusões para viver. São várias as moléstias que tornam os pacientes dependentes de doações sanguíneas, como a anemia falciforme (uma alteração dos glóbulos vermelhos do sangue) e a leucemia (doença que pode ser definida como câncer na medula, que é o órgão que produz o sangue). Recentemente, os casos de linfoma (câncer no sistema linfático que produz alterações nas células sanguíneas) do ator Reynaldo Gianecchini e da presidente Dilma Rousseff chamaram a atenção do público para a necessidade de doações de sangue.

Há pacientes que precisam de transfusão apenas eventualmente, por exemplo ao fazer uma cirurgia ou ao ser atendidos após um acidente, ou em outras situações que resultem em algum tipo de anemia aguda. Infecções ou cirrose hepática avançada, como a do ex-jogador de futebol Sócrates, também provocam problemas de coagulação sanguínea que podem resultar em hemorragia e, consequentemente, em anemia grave. Por isso o trabalho dos hemocentros, também conhecidos como bancos de sangue, é tão importante.

O hemocentro é responsável pela coleta de sangue e seus derivados – plaquetas, hemácias ou plasma. Depois esse material é distribuído para hospitais e clínicas, garantindo assim o abastecimento de toda a área de saúde. A rede de hemocentros no Brasil está organizada de modo a ter núcleos coordenadores regionais, normalmente um por estado (quase sempre situado na capital). Em São Paulo, porém, há oito centros regionais distribuídos de forma estratégica e cada um deles se encarrega do abastecimento de determinada área. Em caso de necessidade, estoques são transferidos de uma região a outra.

A violência no trânsito também aumenta a necessidade de sangue. “Cerca de 30% dos que recebem transfusões aqui são pacientes politraumatizados, a maioria vítima de acidentes de trânsito”, revela o médico Carlos Roberto Jorge, responsável pelo setor de transfusão do Hospital das Clínicas de São Paulo. Acidentes com motos são os principais vilões.

Para garantir o abastecimento de sangue a todos os pacientes que dele necessitam, é preciso estimular a doação regular e espontânea. O médico Wagner de Castro, diretor de coleta do hemocentro da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), lembra que a Organização Mundial da Saúde (OMS) estabelece como meta ideal para assegurar um estoque adequado um índice de doadores que gira entre 2% e 4% da população. Embora a região de Campinas atinja essa meta atualmente, com 87 mil doadores computados nos primeiros sete meses deste ano, apenas metade deles doa sangue habitualmente.

Castro acrescenta que o hemocentro da Unicamp busca estimular a doação regular por dois motivos: além de estabilizar os níveis dos estoques, garante a qualidade do sangue. Isso porque ainda há muitas pessoas que vão eventualmente a um hemocentro doar sangue apenas com o objetivo de realizar testes de doenças, como a Aids. “Muitos ficam constrangidos de ir a um centro de teste anônimo”, diz o médico. Ele conta que cerca de 3% do sangue coletado no hemocentro da Unicamp acaba sendo descartado por questões sorológicas, com resultados positivos ou inconclusivos (os testes examinam desde a possibilidade de presença do vírus da Aids até hepatite e outras doenças). Outros motivos que podem invalidar o uso do sangue doado são o uso de álcool ou de medicamentos que interferem na composição do sangue – como antibióticos, antidepressivos, anti-inflamatórios ou mesmo o ácido acetilsalicílico (AAS) – nas horas que antecedem a doação.

Desinformação

Os índices de doação de sangue no Brasil como um todo são baixos se comparados aos de outros países. Como o abastecimento prioriza os casos em que a vida corre risco – principalmente atendimentos de emergência ou a pacientes com doenças hematológicas –, frequentemente cirurgias eletivas são suspensas por falta de estoque de sangue. A sazonalidade também influi no funcionamento dos hemocentros. Em feriadões como o final de ano e o carnaval ou em grandes eventos, como a Copa do Mundo, os doadores desaparecem e os estoques caem.

Contudo, é a desinformação que mais contribui para afastar doadores. “Quando a gripe suína apareceu no noticiário, os doadores se afastaram por medo de contágio”, lembra Castro. Nos anos 1980 e 90, com a economia instável, cada novo plano econômico diminuía sensivelmente a coleta de sangue, pois as empresas cortavam pessoal, e os doadores em potencial temiam perder o emprego, já que teriam de faltar e apresentar atestado. Além disso, muita gente tinha pavor de doar por medo da Aids. Hoje, no entanto, ainda persistem ideias infundadas, como as de que a doação “engrossa” ou “afina” o sangue, causando problemas de saúde.

A situação mudou muito com a Constituição de 1988, que proibiu a comercialização de sangue e derivados no país e criou a rede de hemocentros, que são fiscalizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). “Essa iniciativa acabou com o horror que era o comércio de sangue no Brasil e melhorou muito a qualidade das transfusões no país”, diz o médico Flávio César de Sá, professor de ética na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e especialista em atendimento de emergência.

Ele lembra que antes de 1988 a maior parte dos bancos de sangue eram particulares e, de olho no lucro, não faziam os exames corretamente; por isso, entre os que recebiam as doações era muito grande o número de contaminações e choques por incompatibilidade de tipagem. Para aumentar a coleta, havia inclusive a distribuição de brindes, como ingressos de cinema, o que atualmente é proibido. “Hoje, os testes são padronizados para todo o país e executados gratuitamente para o paciente e para o hospital.” O professor da Unicamp observa que os bancos de sangue particulares eram uma aberração ética, pois recebiam sangue doado e o comercializavam.

Aqui vale lembrar que, embora a maior parte das pessoas conheça apenas a tipagem ABO e o fator Rh – que determina se uma pessoa tem sangue tipo A+ ou O-, por exemplo –, há dezenas de outros tipos de antígenos no sangue. Pacientes que precisam receber sangue com frequência, como os portadores de leucemia, podem acabar desenvolvendo sensibilidade a certos antígenos e por isso só têm compatibilidade com determinados tipos de sangue, alguns deles raros.

Além da dificuldade de obter doações, às vezes os médicos enfrentam a resistência de pacientes em receber sangue de outra pessoa. Os motivos vão do receio de contrair doenças até a filiação a algumas religiões, como acontece entre as testemunhas de Jeová, que rejeitam transfusões. “Atualmente, o medo de contágio, que era comum na década de 1990, não existe mais, mas a questão religiosa perdura”, diz Flávio Sá. Nesses casos, a atuação do médico é decisiva.

Segundo o código de ética médica, se o paciente corre risco iminente de morrer, o médico pode tomar qualquer medida que vise salvar sua vida. “O código não obriga o médico a fazer a transfusão, mas lhe dá essa opção se ele achar que é a melhor medida em favor do paciente, mesmo desrespeitando a posição da família”, diz o professor. Além disso, ele conta que há antecedentes em que o médico respeitou a decisão da família ou do paciente e não fez o procedimento, o paciente morreu e o profissional foi processado e condenado no Conselho Regional de Medicina (CRM).

Felizmente, porém, episódios assim são raros. “Já lidei com muitos casos de testemunhas de Jeová e, na maioria, prevaleceu o bom senso”, diz Flávio Sá. “Alguns pacientes que seguem essa religião aceitaram receber a transfusão e depois passaram por alguma espécie de ‘purificação’ ritual.” Ele acredita que, atualmente, tanto os médicos evitam ao máximo a transfusão quanto os pacientes entendem, em caso de risco imediato de morrer, que a opção é desse profissional de saúde.

Campanhas

Para atrair novos doadores, os hemocentros promovem ações frequentes. A Fundação Pró-Sangue, por exemplo, está realizando a campanha “Doe sangue e passe essa bola para um amigo”, que conta com a colaboração de muitos famosos, praticamente todos doadores (apenas um ou outro está impedido por problemas específicos, como hepatite). Um deles é o próprio Reynaldo Gianecchini, que poderá passar de doador a receptor por conta do tratamento a que deve ser submetido.

A Fundação Pró-Sangue é o maior hemocentro da América Latina e responde sozinha por praticamente 4% de todo o sangue coletado no país, com o processamento de uma média de 12 mil bolsas ao mês. Situada no complexo do Hospital das Clínicas (HC) de São Paulo, abastece 128 hospitais da região metropolitana de São Paulo. Para driblar a dificuldade de conseguir doadores, a entidade busca convênios com empresas ou clubes e pode até deslocar equipes para fazer coleta externa. Há ainda um veículo que se encarrega do transporte de pequenos grupos, de dez a 15 pessoas, de doadores que estejam a até 3 quilômetros do HC. Além disso, mantém o Clube Irmãos de Sangue, que dá a seus membros prioridade no atendimento e os homenageia em eventos e no site da instituição. Para integrar o Clube Irmãos de Sangue é preciso ter feito pelo menos dez doações.

O hemocentro da Unicamp também costuma fazer coleta externa com dois ônibus especialmente adaptados para esse fim, as unidades móveis de coleta, um dos quais muitas vezes dá plantão no centro de Campinas. Essas unidades móveis podem ser levadas a grandes eventos esportivos para receber doações ou a empresas que queiram colaborar incentivando seus funcionários a doar. Aliás, como forma de estímulo, o município de Campinas tem uma lei que oferece atendimento preferencial em bancos e em órgãos públicos a doadores.

Em termos nacionais, a legislação recebeu alterações recentes e, entre outras medidas, a faixa de idade dos doadores em potencial foi ampliada. Antes, só podiam doar pessoas com idade entre 18 e 65 anos. Agora, jovens de 16 anos a 18 anos incompletos podem doar, com autorização dos pais, e pessoas com até 67 anos também são aceitas para dar sua contribuição. Além do critério de idade, é preciso ter pelo menos 50 quilos de peso, estar em boas condições de saúde e não apresentar comportamento de risco. Isso não se limita à vida sexual, pois inclui também, por exemplo, a realização de viagens nos seis meses anteriores à doação a estados onde há possibilidade de contrair malária. Uma série de outras condições pode, ainda, causar impedimento temporário – como gripe, gravidez, tatuagem nos 12 meses anteriores etc.

Etapas

A doação normal é simples e rápida. Na recepção, a pessoa preenche uma ficha de cadastro. Em seguida, é feito um teste de anemia e são verificadas algumas condições físicas, como pressão arterial e peso. O candidato a doador passa então por uma entrevista, confidencial, onde se busca saber se o sangue dessa pessoa pode oferecer algum risco. Alguns hemocentros ainda fazem o teste de autoexclusão (que deixou de ser obrigatório há alguns meses), em que o doador indica, em uma votação confidencial, se tem comportamento de risco para a Aids. Após essas etapas, o sangue é coletado e armazenado em uma bolsa. O doador é dispensado, então, com a recomendação de evitar esforço físico naquele dia.

Os poucos problemas que surgem no ato de doar sangue são devidos à ansiedade dos doadores, diz Wagner de Castro. Eventualmente podem ocorrer queda de pressão, desmaio, escurecimento da vista, falta de ar etc., mas há sempre uma equipe médica e aparelhamento adequado para lidar com esses casos.

Depois de coletado o sangue, seus componentes (plaquetas, plasma, hemácias e crioprecipitado) são separados e ficam armazenados até o resultado dos testes sorológicos. Quando os exames indicam que o sangue é de boa qualidade, ele é encaminhado aos hospitais. Cada doador pode beneficiar até quatro pacientes com uma única bolsa.

Para fazer uma nova doação é preciso aguardar 60 dias, no caso de homens – observado o limite de quatro vezes ao ano –, e 90 dias, no de mulheres, com o máximo de três coletas anuais. Também é possível fazer a doação por aférese, na qual, explica a médica hemoterapeuta Giuseppina Maria Patavino, da Fundação Pró-Sangue, o sangue vai diretamente para uma máquina que faz o fracionamento dos componentes. Neste caso, somente as plaquetas vão para uma bolsa, enquanto o restante é devolvido ao organismo do doador. Essa modalidade é muito usada para beneficiar pacientes de transplante de medula ou que passam por quimioterapia e precisam de plaquetas, que são as responsáveis pela coagulação do sangue, uma vez que sua ausência provoca fortes sangramentos, podendo levar à morte do paciente.

Como o organismo de uma pessoa saudável automaticamente produz mais plaquetas quando elas são retiradas, a recuperação é quase imediata. Nesse caso, o intervalo entre doações é menor: de três a cinco dias, com o limite de 24 vezes ao ano. Porém, enquanto a doação comum leva de dez a quinze minutos, por aférese exige disponibilidade do doador por um período maior, que vai de 50 a 90 minutos.

Giuseppina explica que, quando se juntam plaquetas de doadores diferentes, cria-se um mix que nem sempre é bem tolerado pelos receptores. A vantagem da doação por aférese é que ela permite que pacientes com resistência imunológica debilitada, como os que são submetidos a quimioterapia ou radioterapia, tenham menos reações alérgicas, por receber plaquetas de uma única pessoa.