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Nos limites do poder criativo

por Herbert Carvalho

A estreia internacional de sua obra ocorreu em 1995, na Bienal de Veneza, mais conceituado evento de artes plásticas do mundo. Em 2011 seus trabalhos integraram, ao lado dos de outros artistas brasileiros consagrados como Cildo Meireles, Hélio Oiticica e Lygia Clark, a mostra “Gigante pela Própria Natureza”, realizada na Espanha pelo Instituto Valenciano de Arte Moderna.

Considerado um vanguardista criador de objetos tridimensionais, precursor daquilo que hoje se chama instalação e pioneiro na utilização artística dos fragmentos e restos do mundo industrial – muito antes que se generalizasse a preocupação ecológica dos dias atuais ou a apropriação pelos artistas plásticos dos materiais recicláveis –, foi comparado a Marcel Duchamp (1887-1968), o revolucionário criador dos ready-made. Assim como o francês, também gostava de jogar xadrez. Retratado em livros e peças de teatro, entre as comemorações de seu centenário estão o lançamento de uma cinebiografia e o lugar de destaque que ocupará na 30ª Bienal de São Paulo, em 2012.

Tudo isso seria até corriqueiro se não estivéssemos falando de alguém que jamais frequentou escolas ou espaços de arte, não conviveu com outros artistas, nunca leu livros especializados e sequer conhecia os rudimentos de técnicas tradicionais como o desenho, a pintura ou a escultura. Mesmo se quisesse, ele não poderia ter feito nada disso, por uma razão: trancafiado num manicômio no Rio de Janeiro durante cerca de 50 de seus quase 80 anos de vida, Arthur Bispo do Rosário (1911-1989) não considerava como arte os estandartes e mantos bordados, os objetos e miniaturas recobertos por fio azul, que obtinha desfiando o uniforme usado pelos internos, ou as assemblages (junção ou reunião de elementos e materiais diversos por meio de cola ou soldagem, que ele chamava de vitrine) de concepção sofisticada que minuciosamente fazia durante meses, em jornadas de até 18 horas por dia.

Ação de resistência ao violento aparelho repressivo de uma psiquiatria que atrofiava no prontuário o doente, destituído da própria humanidade, sua produção foi inicialmente vista como exemplo daquilo que o crítico Mário Pedrosa chamava de “Arte Virgem” – feita por marginalizados da sociedade, como presidiários e loucos em cadeias e hospícios, mais como passatempo ou terapia. O reconhecimento da crítica e o tombamento pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro (Inepac-RJ) a retirariam desse gueto para abrir-lhe as portas dos museus e demais espaços expositivos, onde o espectador imediatamente se identifica com os objetos do cotidiano e se encanta com a multiplicidade de cores e formas.

Duas décadas após sua morte, o legado de Arthur Bispo do Rosário impulsionou o movimento antimanicomial no Brasil e deitou por terra conceitos psiquiátricos segundo os quais a arte originada por uma “psique deteriorada” careceria “de valor plástico” quando confrontada com a dos artistas “normais”, servindo no máximo como terapia ou material de estudo médico. Victoria Noorthoorn, curadora da edição de 2011 da Bienal de Lyon, na França – onde as obras de Bispo foram também expostas – considera equivocada essa distinção: “Todos os artistas são loucos, e acho que Bispo é um dos menos loucos”.

Juízo Final

“Preto, solteiro, naturalidade desconhecida, sem parentes, sem profissão, alfabetizado, com antecedentes policiais. Internado no dia 25 de janeiro de 1939. Diagnóstico: esquizofrenia paranoide.” Se uma obra insólita que assombra o mundo não o tivesse tornado alvo de biógrafos, as únicas informações sobre Arthur Bispo do Rosário seriam essas, constantes de uma lacônica ficha semelhante a milhares de outras dos internos da Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, na zona oeste carioca.

O divisor de águas em sua trajetória, segundo relato da jornalista Luciana Hidalgo no livro Arthur Bispo do Rosário – O Senhor do Labirinto, é a noite de 22 de dezembro de 1938. Até então a vida que levava não fugia ao padrão de tantos migrantes nordestinos: nascido na pequena Japaratuba (SE), descendente de escravos africanos, chega ao Rio de Janeiro em 1925. Foi marinheiro, o que explica suas miniaturas de navios. Lutou boxe, chegando a campeão brasileiro e sul-americano pela marinha, o que lhe valeria a cela forte, mais tarde, mas também a condição de “xerife” do hospício, temido pelos demais loucos. Na Light, onde trabalha como lavador de bondes, sofre um acidente de trabalho que lhe esmaga parte do pé direito.

Daí por diante realiza apenas trabalhos domésticos, em troca de casa e comida. É o que fazia na residência do advogado Humberto Leoni às vésperas do Natal de 1938 quando, segundo relato próprio gravado num estandarte, sete anjos apareceram para lhe confiar uma missão. Vagou então por ruas e igrejas durante dois dias até entrar no Mosteiro de São Bento e anunciar aos frades: “Vim julgar os vivos e os mortos”.

Preso como indigente e demente, começa a produzir, de forma ininterrupta a partir dos anos 1940, o que os críticos de arte hoje consideram uma obra única, de valor inestimável, mas que para o autor representava algo inteiramente diverso: tratava-se da reconstrução do mundo que lhe havia sido encomendada e que a bordo de alguma Arca de Noé ou nave espacial ele apresentaria a Deus no dia do Juízo Final. Com essa finalidade confeccionou o Manto da Apresentação, um cobertor do hospício bordado considerado o carro-chefe de seu acervo. Bispo sempre foi refratário, durante os 25 anos ininterruptos que passou sem sair do manicômio, a que qualquer uma de suas 804 obras posteriormente catalogadas fosse exposta ou mesmo separada de um conjunto mantido como uma instalação, na qual o artista só admitia visitantes mediante resposta a uma pergunta-senha: “Qual a cor da minha aura?”

Colônia Juliano Moreira

Fundada em 1924 como Colônia de Alienados de Jacarepaguá, a instituição ganhou novo nome em 1935 em homenagem a Juliano Moreira (1873-1933), médico baiano descendente de africanos considerado o introdutor da psiquiatria no Brasil. Contrariando as teorias racistas em voga, Moreira acreditava que as doenças mentais eram causadas por fatores físicos e sociais (e não pela miscigenação). A Liga Brasileira de Higiene Mental, que organizou em 1923, defendia o fim dos maus-tratos e do aprisionamento dos doentes – práticas comuns desde 1852, quando o primeiro hospício brasileiro foi inaugurado pelo imperador Pedro II – e sua substituição pela terapia ocupacional e pela participação da família no processo de reinserção social do paciente.

Com essa finalidade, a Colônia Juliano Moreira se expandiu por uma área de 7,8 quilômetros quadrados (maior que o bairro de Copacabana), localizada na Estrada Rodrigues Caldas (nome de seu primeiro diretor), onde foram construídos 15 edifícios, entre laboratórios, enfermarias, residências de funcionários, farmácia, necrotério e oficinas de laborterapia. Para Jacarepaguá foram inicialmente transferidos os doentes considerados irrecuperáveis, que desde o século 19 se amontoavam em manicômios de cobiçadas áreas urbanas do então Distrito Federal, como a ilha do Governador e a Praia Vermelha.

Em 1967, com 5 mil internos, era o terceiro hospício mais populoso do país, atrás apenas de seus congêneres em Franco da Rocha (SP) e Barbacena (MG), mas com as mesmas violações dos direitos humanos e sem mais nenhum resquício da proposta terapêutica original. Os eletrochoques, as lobotomias e as celas fortes são abolidos na década de 1980, após uma reportagem de Samuel Wainer Filho para o “Fantástico”, da Rede Globo, denunciar as condições a que eram submetidos os pacientes. Um deles, entretanto, embora confinado por décadas, escapara desse mundo de horrores para se refugiar em outro, povoado por sonhos e delicados bordados, estandartes e objetos recobertos com linha azul.

Atualmente com status de bairro e uma população de 20 mil habitantes organizada como comunidade autônoma, a colônia foi esvaziada após a reforma psiquiátrica que decretou o fim gradual dos manicômios no Brasil. Municipalizada desde 1996 nos moldes do Sistema Único de Saúde (SUS), transformou-se no Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira, que ainda abriga 440 portadores de transtornos mentais, com perfil individual de 75 anos de idade e 40 de internação, em média.

No Núcleo Ulisses Viana, o mesmo em que Bispo viveu, o psiquiatra responsável, José Roberto Coutinho, explica que essas pessoas ali permanecem mais pela falta de suporte social para transferi-las do que por razões clínicas. “Temos buscado os parentes pela internet, outro dia localizamos a irmã de um deles, após 50 anos sem qualquer contato entre ambos. Procuramos também fazer com que ganhem autonomia e possam viver em residências terapêuticas, abolindo esse modelo arcaico de internação perpétua.”

Os vestígios do passado, entretanto, continuam visíveis nas enfermarias gigantescas (ainda ativas) e no conjunto desativado de celas fortes – cada qual equipada apenas com uma latrina escavada no chão – que serviu de ateliê, atestando a capacidade criativa do ser humano, mesmo nas condições mais adversas. O frágil acervo disputado pelas mostras internacionais agora está guardado no Museu Arthur Bispo do Rosário de Arte Contemporânea, instalado no edifício-sede, localizado à direita do arco de entrada da antiga colônia.

Para o psiquiatra Ricardo Aquino, diretor do museu desde o ano 2000, Bispo do Rosário já ocupa no imaginário brasileiro um espaço de messianismo e religiosidade ao lado de figuras como Antônio Conselheiro e Chico Xavier. “Basta dizer que sua trajetória de nordestino pobre e negro, que sobrevive e triunfa, já foi enredo de 11 escolas de samba de todo o Brasil.” No exterior, ao contrário, a obra de Bispo descolou-se do autor, a ponto de os textos de apresentação não fazerem referência à doença mental.

“Queremos que ela seja vista sem preconceito ou condescendência e achamos que pode estimular outros Bispos a fazerem da criação uma expressão de cidadania”, acrescenta Aquino, que se doutorou em memória social para melhor compreender e divulgar o acervo sob sua responsabilidade. De fato, quando pendentes do teto da galeria da Caixa Cultural, no centro do Rio de Janeiro, como ficaram em julho e agosto deste ano na exposição “Artista do Fio”, as miniaturas de Bispo impressionam e emocionam sobretudo pela delicadeza com que foram executadas. Designados pelo crítico Frederico de Moraes como Orfas (“Objetos Recobertos de Fio Azul”), permitem identificar em Bispo, de acordo com Aquino, “uma espécie de mestre griot da cultura ioruba, que substitui a tradição oral pela expressão plástica em uma narrativa destinada a catalogar e nomear todas as coisas, para que não caiam no esquecimento”.

Luta antimanicomial

“Loucos são considerados seres embrutecidos e absurdos. Custa admitir que indivíduos assim rotulados se firmem justo no domínio da arte, a mais elevada atividade humana.” Essas palavras, escritas em 1949 para o catálogo de uma exposição de nove de seus pacientes no Museu de Arte Moderna de São Paulo, resumem o legado da psiquiatra e psicanalista junguiana Nise da Silveira (1905-1999), pioneira em privilegiar o contato afetivo e a expressão criativa como forma de tratar doentes mentais e de promover a superação dos preconceitos contra eles (ver PB nº 366).

A partir do reconhecimento da obra de Bispo do Rosário, essa vertente que tinha no Museu do Inconsciente (criado por Nise em 1952) um polo isolado de atração ganhou ramificações por todo o Brasil. Uma das mais importantes é o Prêmio Arthur Bispo do Rosário, instituído em 1999 pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP), atualmente em sua sexta edição. Voltada a usuários dos serviços de saúde mental de todo o estado, em seis modalidades (esculturas e instalações; pinturas e ilustrações; fotografias; poesias; contos e crônicas; vídeo), a iniciativa evoluiu de cem participantes, na competição inaugural, para mais de 1,2 mil em 2011. Como estratégia de mobilização da sociedade para mudar a cultura de exclusão e reverter o estigma da loucura, os 40 melhores trabalhos de 2006 foram expostos na Estação República do metrô de São Paulo.

“Buscamos o reconhecimento das pessoas não como usuárias dos serviços de saúde mental, mas como artistas. Na primeira edição os créditos das obras indicavam, por exemplo, o Centro de Atenção Psicossocial (Caps) em que cada um fazia tratamento. Hoje consta somente o nome do autor, porque as obras, selecionadas e julgadas por outros artistas, são belíssimas. Nossos sentidos não mentem”, resume a psicóloga Marília Capponi, conselheira coordenadora da comissão de saúde do CRP-SP e gerente do Caps especializado em álcool e drogas de Embu (SP).

Homenageado por entidades que buscam aprofundar a reforma psiquiátrica – que, objeto de lei aprovada em 2001, completa uma década ainda sem atingir seu principal objetivo de fechamento dos hospícios –, Arthur Bispo do Rosário transformou-se num símbolo. Em 18 de maio passado, no Dia Nacional da Luta Antimanicomial, uma manifestação na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo para denunciar mortes ocorridas em hospitais psiquiátricos de Sorocaba (SP) contou com a participação dele na forma de um boneco lúdico semelhante aos que animam o carnaval de Olinda (PE).

No Rio de Janeiro, Bispo do Rosário teve no andarilho José Datrino, morto em 1996, uma espécie de seguidor extramuros. Figura singular de longas barbas e cabelos brancos, vestia uma bata alvíssima e saía pelas ruas fazendo inscrições nos baixos de viadutos (hoje recuperadas e incorporadas ao patrimônio urbano), que pregavam o amor ao próximo e o respeito à natureza. A mais famosa delas, “Gentileza gera gentileza”, valeu-lhe o apelido de Profeta Gentileza e duas músicas em sua homenagem, compostas por Gonzaguinha e Marisa Monte. Internado mais de uma vez em clínicas psiquiátricas, respondia aos que o chamavam de louco: “Sou maluco para te amar e louco para te salvar”. Em 2009 apareceu como personagem da novela “Caminho das Índias”, interpretado em participação especial pelo ator Paulo José.


Criatividade e loucura

O filósofo grego Platão acreditava que uma espécie de “loucura divina” estivesse na base de toda criatividade. Em séculos mais recentes, pintores como o norueguês Edvard Munch, autor do célebre quadro O Grito, literatos do porte de lorde Byron e de Tolstói ou músicos do naipe de Tchaikóvski e Robert Schumann encabeçam uma extensa lista de artistas portadores de graves transtornos psíquicos, que sofriam de variações extremas de humor, manias, fixações e dependência de álcool ou drogas. No Brasil, o escritor Lima Barreto e o compositor Ernesto Nazareth padeceram prolongadas temporadas em manicômios. Célebre também foi o caso de Van Gogh, cuja amizade com Paul Gauguin acabou quando, num acesso de fúria, o primeiro ameaçou o segundo com uma navalha, acabando por decepar a própria orelha. A psicose grave diagnosticada não impediu que Van Gogh, entre uma e outra internação, produzisse as maravilhosas imagens que o imortalizaram, antes de se matar com um tiro no peito.

Nas primeiras décadas do século 20 os artistas surrealistas, liderados pelo francês André Breton, partem do princípio de que arte, delírio e inspiração provêm do mesmo impulso para estabelecer novas premissas estéticas. Suas criações passam a traduzir o fantástico, o onírico e o irracional, ao mesmo tempo em que rejeitam qualquer tipo de censura, dirigida às obras ou a seu comportamento bizarro. No Brasil, a pintura de Anita Malfatti é alvo, em 1917, de uma crítica pesada de Monteiro Lobato, mais tarde publicada em livro com o título “Paranoia ou Mistificação?” “De há muito estudam os psiquiatras desenhos que ornam paredes internas dos manicômios. A diferença reside em que nos manicômios essa arte é sincera, produto lógico de cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses; fora deles, nas exposições públicas, zabumbadas pela imprensa e absorvidas por americanos malucos, não há sinceridade nenhuma, nem lógica, sendo mistificação pura”, fustigou o algoz dos modernistas. Sem se intimidar, porém, Mário de Andrade assumia que “quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo o que meu inconsciente me grita”. Para ele, a questão da criação transcendia a estética: “Em arte não está implicada apenas a manifestação da beleza, mas a complexidade da vida”, resumiu o autor de Macunaíma.