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A reinvenção do Estado

por Fernando Luís Schüler

“A paciência pode ser, infelizmente,
outro nome para a continuação da injustiça.”
Amartya Sen

Fernando Luís Schüler é graduado em história e tem mestrado em ciências políticas e doutorado em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É pós-graduado em cooperação internacional pela Universidade de Barcelona e especialista em políticas públicas e gestão governamental pela Escola Nacional de Administração Pública.

Foi bolsista do Faculty Research Program, do International Council for Canadian Studies. Foi diretor executivo da Fundação Iberê Camargo, chefe de gabinete do Ministério da Cultura e secretário de Estado da Justiça e do Desenvolvimento Social do Rio Grande do Sul.

Atualmente é diretor executivo do Ibmec do Rio de Janeiro e é curador do projeto Fronteiras do Pensamento.
Esta palestra de Fernando Luís Schüler, com o tema “A Modernização do Estado”, foi proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Fecomercio, Sesc e Senac de São Paulo no dia 8 de março de 2012.

O Brasil é um ponto fora da curva quando se observa o padrão internacional na correlação entre carga tributária e desigualdades sociais (mensuradas pelo coeficiente de Gini). Temos uma carga tributária superior a 35% do PIB, próxima à da Inglaterra, e um índice de Gini de 0,53, próximo ao do Paraguai. Em 2003, o Ministério da Fazenda publicou um estudo abrangente sobre a qualidade do gasto social no Brasil. O trabalho tem 9 anos, mas prossegue perfeitamente atual. O gasto social federal é de pouco mais que 15% do PIB e 65% disso vai para o sistema previdenciário. O peso relativo representado por salários, aposentadorias e pensões dos servidores públicos faz com que a estrutura do gasto social brasileira apresente um forte elemento regressivo. O estudo conclui: “O Brasil é uma exceção à tendência internacional, onde uma alta carga tributária está associada a uma baixa desigualdade social. [...] é um país com renda per capita relativamente baixa, que tem alcançado uma arrecadação tributária equivalente à de países ricos. No entanto, contrariamente ao que ocorre nesses países, o Brasil não tem conseguido usar os sistemas tributários e de gasto social de forma a afetar substancialmente a extrema desigualdade de renda observada no país”1.

Ao longo da última década, a estrutura do gasto social não se alterou significativamente. Cresceu o volume de transferências sociais diretas, com programas como o Bolsa Família, mas aumentou simultaneamente o gasto com a previdência do setor público (bem como o ritmo de contratação de novos servidores). O governo, que deveria assegurar condições para a justiça social, tem exercido, na sociedade brasileira, um paradoxal papel concentrador de renda, extraindo recursos de toda a sociedade, a pretexto de efetivar transferências aos mais pobres, e drenando parte substancial desses recursos para a classe média do setor governamental.

O Brasil desenvolveu, ao longo do século 20, e particularmente a partir dos anos 1930, uma versão própria de welfare state. O desenho desse modelo foi concluído pela Constituição de 1988. Argumento, nesta breve apresentação, que se trata de modelo perverso de welfare state. Não apenas pelos indicadores que citei há pouco. Ele é perverso ao produzir um segundo vetor de exclusão, quando o governo assume a condição de gestor direto de uma ampla rede de serviços públicos (saúde, educação, sistema prisional), bem como um grande espectro de serviços associados às áreas sociais, ambientais, de cultura, esporte, entre outras, atendendo de maneira precária os mais pobres.

É muito fácil obter, no dia a dia de nossas cidades, a percepção empírica do que está dito acima. Basta entrar em um hospital estatal (ou escutar um dia desses algum programa radiofônico popular), para encontrar as infinitas histórias cotidianas de idosos e doentes nas filas, na angústia da marcação de cirurgias, nos leitos improvisados em corredores das emergências, tudo isso que já estamos cansados de ler e ouvir. Para alguém que já frequentou presídios ou unidades socioeducativas para adolescentes infratores país afora, a percepção fica ainda mais clara. Não é diferente para quem vive o declínio silencioso da qualidade de nossas escolas públicas e lê sobre os últimos lugares ocupados pelos nossos estudantes de ensino estatal nos testes do Pisa [sigla do nome em inglês do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes], e assim por diante.

A percepção intuitiva dos problemas é preciosa para a análise social, mas é natural que produza uma visão fragmentada da realidade. Por vezes não conseguimos, no debate público, perceber que há uma evidente conexão entre o que se passa em nossos hospitais, presídios ou escolas públicas. De qualquer sorte, o mal-estar há muito se evidencia, no país, relativamente ao setor público, e só nossa infinita paciência é capaz de sustentar algo que há muito é insustentável.

Culpa no vizinho

A administração pública brasileira precisa passar por uma reforma estrutural. Trata-se de um processo amplo, que inclui a redução radical da burocracia pública, a reforma previdenciária (felizmente já iniciada, ainda que tardiamente) e muitos outros temas. Concentro minha análise em um aspecto bastante simples: a urgência de uma nova divisão de trabalho entre governo e sociedade na prestação de serviços públicos. Desde logo deixo claro que em minha visão cabe ao Estado assegurar direitos e cumprir todas as tarefas que lhe foram atribuídas pela Constituição de 1988. Não comungo da visão libertariana do Estado, cujos teóricos (Nozick à frente) admiro pela força intelectual e solidez moral. A vida me levou, não obstante, a acreditar que é função da comunidade política assegurar a vigência dos direitos fundamentais (à saúde, à educação, à segurança, à assistência social, à proteção ao meio ambiente, ao patrimônio histórico e cultural) aos cidadãos. Acredito em uma sociedade fundada na ideia de igualdade de oportunidades e da meritocracia, e que, sob quaisquer circunstâncias, deva estar organizada para assegurar que ninguém viva abaixo de uma linha que separa a vida com e sem dignidade. O ponto que se segue é que afirmar o Estado como garantidor de direitos não significa acreditar que cabe ao Estado realizar a gestão da malha de serviços públicos que, no dia a dia, darão expressão prática a esses direitos.

Qual é mesmo o problema na gestão dos serviços públicos? Insisto no paradoxo: vemos por aí todos os dias, assistimos na TV, lemos nos jornais, que as repartições públicas não funcionam. Ou que funcionam muito aquém do que deveriam. Cada qual, no debate que se arrasta, deposita a culpa no vizinho: ora o vizinho são os sindicatos, ora são os políticos, ora é o orçamento. No terreno da educação, tornou-se um hábito, nos últimos anos, dizer que é preciso qualificar e valorizar os professores. Parece fazer bem à imagem de qualquer pessoa, com um microfone na mão e alguma pretensão política na cabeça, inocentar os professores pela falência do ensino estatal. O curioso, no debate sobre o setor público, é que quase ninguém (se é que alguém) responsabiliza o “sistema”. Ninguém parece levantar a hipótese de que as regras e o modelo de gestão do serviço público brasileiro, consolidados pela Constituição de 1988, apresentam um problema. Agimos como se as regras fossem boas e como se milhares de repartições públicas que não funcionam adequadamente pudessem, feitos alguns melhoramentos na gestão, na (palavra mágica) profissionalização, funcionar (ao menos) tão bem como o setor privado. Parecemos, afinal, não ter pressa. Enquanto o debate se desenrola, os debatedores, em regra, contratam escolas privadas para seus filhos e planos de saúde particulares para suas famílias. Os mais pobres assistem a tudo imersos em seu cotidiano sem teorias.

Recentemente li, na revista “Exame”, uma declaração sintomática do professor Vicente Falconi: “Se tem uma coisa que descobri em minha vida é que quando se fala sobre melhorias no gerenciamento, não existe diferença entre setor público e privado. Como o gerenciamento depende somente do ser humano, e sendo ele igual nas duas áreas citadas, não há mesmo por que ser diferente”. Falconi é um dos mais preparados e respeitados consultores em gestão empresarial, no Brasil. Ele não reconhece diferença estrutural entre o setor público e o privado. Dizendo de outro modo, parece considerar que as regras que orientam um e outro setor são idênticas, ou podem funcionar com a mesma eficiência, ou isso é irrelevante.

Falconi reproduz o senso comum do debate brasileiro, segundo o qual basta melhorar a gestão de nossas repartições públicas para que elas alcancem a mesma eficiência das organizações privadas. Poderíamos imaginar: a Vale estatal, com um bom ajuste de gestão, poderia ter mostrado, na última década e meia, a mesma eficiência que apresentou a Vale privatizada. Na direção inversa, o Hospital Albert Einstein poderia ter sido estatizado, década e meia atrás, e incorporado à rede de hospitais do Ministério da Saúde, sem maior prejuízo a seu extraordinário desempenho. Exemplos são imperfeitos, qualquer um pode ser contestado. O problema é quando nos deparamos com milhares de exemplos apontando na mesma direção.

A menção àqueles dois exemplos não é casual. O passar dos anos, a experiência no setor público e a convivência com o meio empresarial, com suas ONGs, bem como com os políticos e sua percepção apurada do gosto público, me levaram a perceber com clareza que, para nossa elite (econômica, política, sindical) seria intolerável que a Vale ou o Hospital Albert Einstein fossem ineficientes. O mesmo não ocorre relativamente às escolas públicas. Tento compreender o porquê disso. Especulo que se deva ao fato, já referido, de que a elite efetivamente não utiliza as escolas públicas ou boa parte dos serviços públicos. Ou talvez isso tenha a ver com nossa formação cultural, de um país que nasceu sob o signo da segregação social (primeiro racial) e que parece satisfeito em construir sistemas de acesso à igualdade de direito, ainda que não de fato.

Bizarrices

Quais são as regras que fazem nosso setor público congenitamente ineficiente para a gestão direta de serviços? No setor estatal, assinamos contratos com estabilidade no emprego por 30 ou 35 anos. Quem faria isso no setor privado? O setor estatal trabalha com orçamentos rígidos, sem atenção ao princípio da poupança. A contratação de bens e serviços é disciplinada pela lei nº 8.666/1993, que implica escolhas por menor preço, enorme burocracia e morosidade nos procedimentos. As carreiras estruturam-se sem atenção real ao sistema de mérito na progressão funcional. Há progressão pelo critério da antiguidade e mesmo as avaliações de mérito, quando realizadas, são permeadas pela conveniência corporativa. Os executivos trocam de comando a cada quatro anos, se não menos. Alternam-se dirigentes, com bastante frequência, com visões opostas em termos de valores, prioridades e conceitos de gestão, muitas vezes recrutados menos por sua condição técnica que pela conveniência política. O setor estatal ainda nos brinda com bizarrices como a concessão de licença-prêmio, que nada mais é que férias de três meses, além das normais, oferecidas aos funcionários a cada cinco anos. Estudo recente, no Rio Grande do Sul, demonstrou que apenas a compensação das horas gastas com licenças-prêmio resulta em um custo de R$ 163 milhões anualmente no orçamento estadual – dinheiro que poderia, em apenas um ano, resolver o déficit do sistema prisional do estado.

Poderíamos ir longe nessa descrição. Não é necessário. A Constituição de 1988 padronizou as regras do direito administrativo brasileiro e universalizou um tipo de organização prestadora de serviços: a repartição pública. A repartição pública é, efetivamente, uma não organização. Ela não possui personalidade jurídica e é incapaz de realizar operações gerenciais elementares. Uma escola de ensino fundamental ou médio é um exemplo perfeito de repartição pública. Boa parte do esforço para melhorar nossas escolas, feito por ONGs privadas2, e mesmo por agências governamentais, objetiva gerar algum grau de “autonomia” para a gestão escolar. Isso torna o Brasil um país curioso. Primeiro criamos um modelo de gestão estatal que extrai de suas organizações qualquer autonomia ou capacidade de gestão. Depois, tentamos criar pequenos remédios (meritórios, sem dúvida) aqui e ali, para suprir a deficiência estrutural que o país mesmo criou, e com a qual decidimos conviver.

Não é outra coisa o que ocorre com as instituições culturais estatais e as chamadas “associações de amigos”. Primeiro, criam-se museus-repartições públicas fadados a funcionar muito precariamente3. Ato seguinte, anexa-se a cada instituição estatal uma pequena organização privada, bastante informal, para tentar melhorar um pouco a situação. Não é diferente com as escolas estatais e os tradicionais “círculos de pais e mestres”, entre outros exemplos possíveis.

Organizações prestadoras de serviços demandam exatamente o oposto do que a estrutura centralizada do direito administrativo brasileiro prescreve: agilidade e visão empreendedora, continuidade administrativa e nenhuma ingerência política no dia a dia da gestão. Um exemplo clássico é o da lei nº 8.666. O propósito do legislador (bem como do constituinte, anteriormente), ao criá-la, foi evitar a corrupção e oferecer transparência na execução de grandes obras públicas. O diretor de um museu, ou uma escola, não obstante, precisa repor rapidamente um livro na biblioteca, um computador no laboratório, ou prover o restauro de uma obra de arte. Em um mundo ideal, podemos imaginar que essas duas ordens de exigências sejam compatíveis. No mundo real, elas não são. O tempo do setor estatal, com sua constelação de procedimentos burocráticos, jamais será o que é requerido por uma organização prestadora de serviços.

Equalizar os sistemas jurídicos e imaginar que uma pequena creche pública vai funcionar sob o mesmo regramento geral de gestão de um tribunal de justiça não passa de um jogo de faz de conta. A creche vai funcionar, mas com uma qualidade crescentemente inferior e um custo crescentemente superior aos de sua congênere privada. Essa é, de maneira geral, a crônica da gestão pública brasileira, em particular desde a Constituição de 1988.

A perda gradativa de qualidade vai apenas acentuando o hiato social entre os mais pobres, usuários dos sistemas públicos, e os cidadãos de maior renda, usuários dos serviços privados. Entre as mil escolas mais bem avaliadas no Enem 2009, 91% eram privadas. No exame de 2010, apenas 2% das 200 escolas mais bem pontuadas do país pertenciam às redes estaduais. Nosso ponto é: a falência do modelo estatal de prestação de serviços é hoje um dos grandes promotores da desigualdade social no país. Note-se que não se trata aqui de fazer um “elogio ao privado”. Da mesma forma não se estaria fazendo um “elogio ao estatal” se estivéssemos tratando da gestão da área fazendária, do ministério público ou da polícia militar. Trata-se apenas de usar o bom senso e identificar o que cada segmento – seja privado ou estatal – pode fazer melhor.

De fato, as pessoas são “iguais” trabalhando no setor estatal e privado. Daí não decorre, porém, que os problemas de gerenciamento são os mesmos, precisamente porque o sucesso na gestão de qualquer empresa ou organização prestadora de serviços não depende apenas do ser humano. Os resultados de gestão dependem, em grande medida, das regras do jogo, dos sistemas de incentivo. No setor público (respeitadas honrosas exceções), o melhor desempenho simplesmente não é recompensado com maior remuneração ou com um sistema responsivo de ascensão funcional e/ou punição. Um médico que trabalha em um hospital estatal ganhará o mesmo salário realizando seu trabalho com afinco e brilhantismo ou meramente cumprindo medianamente suas obrigações. Igualmente ninguém será responsabilizado e nenhuma organização juridicamente constituída punida (com a perda de um contrato, termo de parceria, multa, falência) caso os resultados não correspondam.

Funções de Estado

O sentido básico da reforma aqui sugerida é dado por duas proposições muito simples. A primeira delas consiste em delegar ao gerenciamento público direto apenas e tão somente as chamadas funções típicas de Estado – indelegáveis ao setor privado, com ou sem fins lucrativos. São as funções de alta formulação e monitoramento de políticas públicas, diplomáticas, de regulação, de arrecadação fiscal, de segurança institucional, de polícia, além das tradicionais funções judiciárias. Essa lista está longe de estar completa, o importante é a clareza quanto ao critério. Funções de Estado exercem diretamente parcelas do poder soberano do Estado. Seu exercício requer as chamadas carreiras de Estado, e só estas deveriam integrar os quadros permanentes do setor público estatal e dispor das prerrogativas que hoje, equivocadamente, são oferecidas sem critério a todos os servidores públicos.

Médicos, professores, pesquisadores, músicos, jornalistas, museólogos, sociólogos, economistas cumprem funções essenciais, meritórias e necessárias, mas não funções de Estado. São profissionais que devem ser bem remunerados e valorizados. Mas conceder-lhes prerrogativas como a estabilidade no emprego não corresponde a uma proteção da sociedade contra interesses privados (como ocorre quando protegemos um fiscal de impostos, um juiz, um defensor ou promotor público), e sim a mera concessão de um privilégio privado a um ente privado, que passa a exercer, ele mesmo, um poder igualmente privado sobre a coisa pública (a função que exerce e que, antes de lhe pertencer, constitui um patrimônio de todos em geral e de ninguém em particular).

A segunda proposição é delegar ao setor privado, com ou sem fins lucrativos, e a partir de sistemas de contratualização bem definidos e conhecidos em nossa legislação (os marcos regulatórios das OS [organizações sociais] ou Oscips [organizações da sociedade civil de interesse público], bem como o das PPPs [parcerias público-privadas] são exemplos típicos), o gerenciamento dos serviços não exclusivos de Estado. Aí se incluem os serviços de saúde, educação, cultura, esporte, atendimento social, pesquisa etc. São serviços essenciais, estratégicos e que devem ser financiados pelo Estado e submetidos a um rigoroso controle público. Devem ser serviços de excelência, pois expressam em regra aquilo que de mais importante o Estado deve fazer (de ensinar a tabuada a nossas crianças até realizar pesquisas de ponta, como faz o Impa [Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada], no Rio de Janeiro)4. E é exatamente por causa disso que esses serviços não podem permanecer à mercê de um setor estatal burocrático, ineficiente e sujeito ao comando das corporações públicas, do sistema político e de seus interesses particulares.

A defesa da reforma do Estado é essencialmente uma defesa da aplicação mais racional dos recursos públicos. Seus maiores beneficiários são os mais pobres, pela simples razão de que são eles que mais necessitam de políticas e de serviços públicos de qualidade. Não é justo que o Estado brasileiro prossiga transferindo o ônus de sua ineficiência para aqueles que não podem pagar por serviços privados. A reforma adquire, nesse âmbito, um componente ético fundamental. O Estado não pode continuar a ser uma máquina que extrai recursos de toda a sociedade para favorecer a burocracia pública. Lembro aqui a imagem de John Rawls e seu princípio de justiça: nosso compromisso ético primordial, ao ordenarmos a distribuição de recursos desiguais, é com os menos favorecidos. Gosto de pensar que, em uma hipotética situação contratual, em que fôssemos chamados a escolher regras de justiça social (como imaginou Rawls), só seriam autorizadas transferências compulsórias de recursos (em impostos, taxas e regras públicas) caso fossem oferecidas garantias muito claras contra as chamadas falhas de Estado (cujo corolário é precisamente a submissão da estrutura pública aos interesses especiais, corporativos, empresariais dos próprios atores políticos, partidos, parlamentares, candidatos, bem como a captura sistemática dos recursos públicos por parte da burocracia pública). Nesse âmbito, nosso welfare state tropical pode ser pensado como um modelo carente de legitimidade pública.

Jeffrey Sachs, em seu Common Wealth: Economics for a Crowded Planet, faz uma análise comparativa de modelos de Estado de bem-estar social. Os países com sistemas clássicos de welfare state (Suécia, Dinamarca, Noruega, Finlândia) apresentam um gasto social da ordem de 26,8% do PIB. Países caracterizados como economias de mercado mais abertas, como os Estados Unidos, dispõem de um gasto social de 17,4% do PIB5. O Brasil se aproxima do padrão de arrecadação tributária dos países social-democratas, ainda que seu gasto social percentual encontre-se próximo ao apresentado pelos países de livre mercado. Rigorosamente, nosso gasto social efetivo é pequeno (em torno de 16% do PIB), e ainda menor se considerarmos o volume direcionado, desse montante, à previdência do setor público.

O aspecto que parece mais interessante, porém, nessa análise, diz respeito à distribuição interna do gasto social, nos sistemas de welfare state. No modelo clássico, dos 26,8% de gasto social, 14,2% são aplicados na forma de transferências diretas (benefícios a idosos, seguro-desemprego, pensões). E 11,4% vão para a oferta direta de serviços públicos. Ao Estado é dado cumprir esta dupla função: transferir renda, de modo focalizado, diretamente aos cidadãos, bem como prover serviços públicos.

Pois bem, o Brasil tem avançado positivamente, ao menos desde os anos 1990, na oferta de programas associados à primeira função acima referida, programas diretos de transferência de renda. Os programas mais expressivos são, sem nenhuma dúvida, o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que consiste no pagamento de um salário mínimo a qualquer brasileiro com mais de 65 anos com deficiência ou insuficiência extrema de renda. Recentemente, o governo instituiu o ProUni [Programa Universidade para Todos], com a oferta de bolsas no ensino superior privado para estudantes de menor renda, que pode perfeitamente ser definido como um sistema focalizado de transferência indireta de renda. Meu ponto é afirmar que o país tem executado com êxito esses programas. Mesmo que se possam discutir as regras e os sistemas de incentivo gerados pelo Bolsa Família (a não vinculação com um esforço sistemático de formação profissional por parte dos usuários, por exemplo), é inegável que se trata de um programa bem-sucedido, do ponto de vista operacional, e que funciona como um seguro alimentar e mesmo civilizacional, em muitas regiões brasileiras. Em que pese ser um país de dimensões continentais, e ainda marcado por um nível elevado de pobreza e exclusão social, o Brasil gerou um aparelho estatal altamente eficiente na administração de processos massivos de transferência de renda e na gestão de informação. Essa sentença vale tanto quando pensamos no cadastro único do Sistema Único de Assistência Social como quando pensamos em nosso invejado sistema de votação eletrônica e apuração eleitoral.

Não parece correto, pois, afirmar que a totalidade das funções presumíveis de um Estado de bem-estar social não apresenta um padrão aceitável de eficiência, no Brasil. O que de fato não funciona é a segunda função do welfare state clássico, antes referida, de prestação de serviços públicos diretos pelo Estado. Minha tese é que vivemos em uma época histórica, no Brasil (e no plano global, em grande medida), marcada pelo cruzamento de duas tendências, a primeira das quais se refere à longa crise da burocracia pública. A segunda é uma tendência inversa, registrada na sociedade, de crescimento da oferta de serviços nas áreas sociais (em amplo sentido), por parte do setor privado, com ou sem fins lucrativos. Tomemos como exemplo o ensino superior. Em duas décadas, entre 1990 e 2010, o país passou de 820 para 2,3 mil instituições de ensino superior (IES). A quase totalidade dessas instituições é de natureza privada (com ou sem fins lucrativos). Nesse mesmo período, as matrículas no ensino superior aumentaram de 1,5 milhão para 6,5 milhões. Mesmo com esse crescimento, há hoje no Brasil cerca de 1,7 milhão de vagas ociosas no ensino superior, 99,7% das quais na rede privada. Em boa medida, foi essa situação que levou o governo a criar o ProUni – um programa que já permitiu a mais de 1 milhão de jovens brasileiros de menor renda o acesso ao ensino superior, em igualdade de condições com os oriundos de famílias mais abastadas.

Erradicação da pobreza

Seria possível acrescentar às duas tendências acima elencadas uma terceira: nas próximas duas décadas, o Brasil deverá dobrar a renda per capita (atingindo um valor aproximado de US$ 21 mil em 2030) e assistir à completa erradicação da pobreza extrema (a taxa de pobreza no Brasil caiu 67% nos últimos 18 anos, desde o Plano Real). Em meio a esse processo, prosseguirá crescendo a oferta de serviços por parte do setor privado, assim como o número de organizações do chamado terceiro setor, fundadas no trabalho voluntário de centenas de milhares de pessoas, capazes de progressivamente atender a um número maior de indivíduos em situação de vulnerabilidade, assim como de dar conta de problemas sociais presumivelmente mais complexos (menos dependentes do aspecto insuficiência de renda).

A que direção nos aponta a combinação dessas tendências? Melhor dizendo: sua análise ponderada nos recomenda que padrão de políticas públicas? Ela nos incentiva a prosseguir apostando no velho modelo estatal de prestação monopolística de serviços públicos ou em modelos novos de contratualização do Estado com essa rede dinâmica e em expansão acelerada de organizações sociais? O quadro que visualizamos, no Brasil dos próximos anos, é de uma sociedade mais rica, mais urbana, com uma base de trabalhadores mais escolarizada, mais produtiva, em uma sociedade mais organizada e com um setor privado provedor de serviços crescentemente mais forte. Ao mesmo tempo, uma sociedade em que o volume de problemas sociais classicamente associados à insuficiência de renda tende a perder espaço para uma nova ordem de desafios, ligados ao acesso à tecnologia, à qualidade na educação, à cultura, ao enfrentamento das patologias da vida urbana. A OMS [Organização Mundial da Saúde] aponta que, em 2030, a depressão será a doença mais comum no mundo. É uma problemática seguramente distante dos temas habituais para os quais foi criada a malha estatal do welfare state tradicional.

Penso que o modelo do ProUni nos indica um caminho bastante promissor para responder a essa questão. No ProUni, o Estado faz o que inequivocamente lhe compete: assegura aos alunos de menor renda o acesso à educação. Faz isso sem gerar elementos de burocracia pública, aproveitando a capacidade ociosa das instituições privadas de ensino superior. O gasto público é perfeitamente ajustável à demanda real pelo serviço. No modelo estatal tradicional, estruturas rígidas são criadas, prédios escolares construídos, professores e funcionários contratados em regime de estabilidade de emprego, não importando se, dentro de cinco, dez ou 20 anos, permanecerá constante a demanda pelo respectivo serviço. Imagina-se, simplesmente, que se trata de uma demanda estável, cujo custo real, projetado no tempo, não merece ser avaliado.

Há um elemento talvez ainda mais importante na modelagem gerada pelo ProUni: trata-se de uma política de igualdade. Jovens oriundos de famílias mais pobres ou mais afortunadas estudam nas mesmas escolas. No ensino superior, esse elemento se torna menos visível, pelo simples fato de que são as instituições estatais de ensino superior que atendem historicamente aos mais ricos. A verdadeira revolução da igualdade iria ocorrer se esse mesmo modelo fosse aplicado no ensino fundamental e médio6. Hoje o Brasil encontra-se submetido a um verdadeiro estado de apartheid social, com um segmento de escolas privadas restritas à elite, apartadas das escolas da rede estatal, frequentadas pelas crianças e jovens de menor renda. O sistema é confortável para os “de cima”, ainda que represente uma tragédia lenta e silenciosa para os “de baixo”.

Termino esta palestra afirmando que a reforma do Estado não pertence a nenhuma ideologia. Ela é, antes, um discurso contraideológico, nascido da experiência prática no dia a dia das pessoas, sejam jovens que querem e precisam estudar em uma boa escola e não a encontram, sejam brasileiros idosos que precisam de um atendimento médico rápido e eficaz, e igualmente não o alcançam. A reforma do Estado é uma proposição feita em nome dessas pessoas. Ela apela ao diálogo, à moderação, à atenção, à técnica e à racionalidade na tomada de decisão e, sobretudo à prevalência, sempre, do interesse público. Vem à minha mente, no âmbito desta discussão, a argumentação do economista e filósofo indiano Amartya Sen, que provocou uma pequena revolução copernicana no debate sobre a justiça. Em vez de focar as exigências da justiça em sistemas distributivos padronizados (nos tipos de recursos, seja rendas, seja direitos ou determinados modelos institucionais), ele sugeriu que o debate se concentrasse na expansão das liberdades efetivamente usufruídas pelas pessoas. Na questão sobre os modelos de gestão de serviços públicos ocorre algo similar.

Boa parte dos educadores, políticos e ativistas concentra seu esforço em “melhorar a escola pública”, em vez de perguntar (antes de oferecer sua fidelidade a um ou outro modelo) o que seria efetivamente melhor do ponto de vista de cada criança, adolescente ou jovem adulto que, como diz a generosa expressão do liberalismo igualitário, “tem uma vida valiosa para viver”. Pessoas que têm nome e sobrenome, que vivem uma vida real e que, como nós, talvez não se sentissem bem caso soubessem que são objetos de nossas experiências educacionais e de nossa crença abstrata na “escola pública”7.

É interessante ressaltar que esse mesmo raciocínio, inspirado no insight de Sen, nos encaminha a uma defesa de um novo modelo de gestão pública, assim como nos obriga a prestar atenção às pessoas que hoje são atendidas (especialmente em escolas de ensino fundamental e médio, mas também em hospitais e centros públicos de assistência social) em milhares de repartições públicas Brasil afora. Há uma dupla obrigação: apoiar melhoras nas estruturas públicas atualmente existentes, ao mesmo tempo que incentivar que novos investimentos sejam feitos em consonância com o novo modelo.

Uma palavra final referente à cultura. Além das áreas de saúde e educação, as artes, os museus e as orquestras seriam os grandes beneficiados com a reforma de que tratamos aqui. Recentemente, no Festival de Inverno de Campos do Jordão, os jornais registravam o saudável “duelo”, ao lado da Osesp [Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo] – uma organização social desde 1998, talvez o exemplo mais eloquente de contratualização, conforme aqui abordado, no Brasil de hoje –, da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais – Oscip desde 2008 – e da Orquestra Sinfônica Brasileira – fundação privada com amplo leque de parcerias. São nossas melhores orquestras, e seu sucesso serve para nos lembrar das imensas possibilidades que temos como país, se soubermos fazer as melhores escolhas.


Notas
1 “Gasto Social do Governo Central: 2001 e 2002.” Ministério da Fazenda, novembro de 2003.

2 O projeto Jovem de Futuro, do Instituto Unibanco, é um exemplo desse tipo.
3 Aqui vale a pena uma comparação da eficiência dos museus estatais, comuns no Rio de Janeiro, com a dos museus estruturados no sistema OS, do estado de São Paulo
.
4 A gestão do Impa foi contratualizada na forma de organização social em 2000.
5
Common Wealth: Economics for a Crowded Planet, pág. 260. Sachs, Jeffrey. Penguin Books, 2008.
6 Governos estaduais poderiam criar, com facilidade, legislações que autorizassem o financiamento de bolsas de estudo para famílias de menor renda, apenas e tão somente em escolas com um padrão adequado de qualidade. No ensino médio, pode-se estipular uma nota mínima no Enem, além de outras exigências. O sistema, além do efeito democratizador e de melhoria da educação dos jovens, incentivaria as próprias escolas a melhorar sua qualidade.
7 Esse mesmo raciocínio pode ser feito imaginando-se uma pessoa pobre e doente na dependência de uma unidade hospitalar e da burocracia do SUS. Uma boa forma de exercitarmos nossos juízos morais é tentarmos nos colocar no lugar dessa pessoa.


Debate

ROBERT APPY – Sua palestra nos mostrou uma realidade triste. São apenas tentativas de reformas. O professor Luís Simões Lopes ficava desesperado ao ver que tudo o que fazia não tinha continuidade. Hélio Beltrão, só para dar um exemplo, tentou acabar com o reconhecimento de firma. Ele continua.

MOACYR VAZ GUIMARÃES – O reconhecimento de firma é tão importante que o escrivão diz: “Reconheço por semelhança”. O que para ele parece semelhança para outro pode não parecer.

NEY PRADO – Uma advogada me contou recentemente que entre os documentos que foram exigidos de um cliente estava o atestado de óbito atualizado.

APPY – A reforma de Bresser-Pereira não teve efeito nenhum. O que teve efeito foi a Constituição, mas ela só tem coisa ruim. Como o senhor disse, porém, o problema não está nas universidades, mas no ensino fundamental, pois estamos mandando analfabetos para a universidade.

VAZ GUIMARÃES – Quanto ao ensino superior, é preciso perguntar: superior em quê? No que respeita ao aspecto qualitativo, será realmente superior? Não se pode valorizar tanto o critério quantitativo, sem nos preocuparmos com o qualitativo.

Outra questão, que é até motivo de angústia, é o divórcio entre os conceitos na Constituição e a realidade que vivemos. É uma ficção constitucional a independência e harmonia entre os poderes do Estado. Há uma hipertrofia de um dos poderes, que anula a independência deles. Como exemplo, no topo da carreira do Judiciário, o titular é indicado pelo presidente da República, Poder Executivo, e é sabatinado pelo Senado, Poder Legislativo. Ao Poder Judiciário cabe apenas a solenidade de posse. Isso é independência?

Além disso, apesar de anunciado na Constituição, não somos uma federação, essa é outra ficção constitucional. Então, primeiro é preciso saber que Estado queremos. E precisamos ser mais realistas e honestos e admitir que no momento vivemos uma república imperial.

NEY FIGUEIREDO – O senhor não fez nenhuma consideração sobre a Câmara de Gestão, criada pela presidente Dilma em junho do ano passado. Ela colocou à frente desse órgão o empresário Jorge Gerdau, que levou o professor Falconi, um dos responsáveis pela revolução administrativa em Minas Gerais. Gerdau me disse que seria loucura tentar modificar o Estado como um todo. Primeiro é preciso conversar com os ministros e ver os que são suscetíveis a aceitar uma mensagem de reforma. E reformar na medida em que o setor é importante, com a autoridade que a presidente lhe delegou. Queria sua opinião a esse respeito.

O senhor falou da gestão em São Paulo, mas me parece que nos últimos tempos o exemplo vem de Minas, com o [Antonio] Anastasia e Falconi. Comparados os governos de Aécio Neves e Geraldo Alckmin, os mineiros tiveram resultados melhores.
Outra coisa: os funcionários públicos não são funcionários, mas soldados do PT, porque o PT aparelhou o Estado.

FERNANDO LUÍS SCHÜLER – Concordo, de modo geral, com as colocações. Existe um mal-estar no Brasil hoje e vocês expressam isso muito bem. É curioso que esse mal-estar ocorra num momento em que o país está bem, é um paradoxo. Vamos viver nos próximos anos o período da chamada janela demográfica, em que o Brasil alcançará a melhor correlação entre pessoas em idade produtiva e crianças, adolescentes e idosos. É o momento para o país crescer. Foi assim com o Japão nos anos 1960 e 70, depois com a Coreia, os Tigres Asiáticos. Nosso drama civilizacional é entrarmos nessa fase com cerca de 25% das famílias abaixo da linha de pobreza e 80% de nossas crianças e adolescentes em escolas de pouca qualidade, nas redes estatais de ensino básico, cujos alunos tiraram 386 no último Pisa. Todos os países envelhecem, a questão é saber se vamos enriquecer antes disso, estabilizar o padrão de crescimento ou não.

O cientista político Sérgio Abranches cunhou o termo presidencialismo de coalizão, que significa o seguinte: o presidente se elege com 90 deputados do seu partido, menos de 20% da Câmara Federal, mas imediatamente forma uma maioria de 340 deputados. Ele faz isso lançando mão dos chamados instrumentos patrimonialistas, que são as emendas ao orçamento, a distribuição de cargos e o acesso seletivo ao orçamento da União. Aliás, o primeiro item de uma reforma política no Brasil seria acabar com as emendas individuais ao orçamento.

Quanto a Jorge Gerdau, é uma figura extraordinária. Aos 75 anos de idade, quando podia estar fazendo o que quisesse da vida, ele assume o risco de ir ajudar o governo, sendo inclusive atacado por muita gente. Ele está dando uma cota de contribuição e um exemplo para o país. Acredito que a Câmara de Gestão, que ele dirige, marca uma distinção entre o governo Dilma e o governo Lula. O processo de abertura da gestão dos aeroportos para o setor privado é uma sinalização nessa direção. Concordo inteiramente que a reforma do Estado brasileiro deve ser feita passo a passo e que não pode ser enfrentada no conjunto. Há experiências em São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco, câmaras de gestão, coisas que precisam ser incentivadas.

PAULO NATHANAEL PEREIRA DE SOUZA – O tipo de abordagem apresentado sobre a administração nacional, para alegria nossa, está se disseminando ultimamente e é disso que vai surgir uma mudança do Estado brasileiro. Pode-se dizer que é o método de comer pelas beiradas, fazer um pouco aqui e ali, porque em termos de mudança global podemos desistir, não haverá sucesso.
Na educação, também concordo com as observações do palestrante, porque o ensino superior não é o problema do Brasil. Ele é, aliás, o grande herdeiro de todas as deficiências do ensino básico e como tal sofre a problemática de formar especialistas que não sabem nada. Com raras exceções, os resultados de nosso ensino superior são os piores que se possam imaginar. Nossa universidade mais importante, a USP, poderia ter resultados muito melhores, mas sofre dessa herança terrível de sua matéria-prima, que são alunos mal preparados e professores defasados. Não é possível alcançar desenvolvimento com essa deficiência.

O que fazer em educação? Primeiro, reformar o ensino básico, encontrar um meio de torná-lo convergente com a modernidade. O Brasil formou sua elite com a filosofia iluminista, a da erudição escolar. Precisamos encontrar uma outra forma de apresentar o conhecimento, já não há mais interesse no eruditismo. Uma recente pesquisa mostra que um terço dos alunos que se formam no ensino fundamental vão ao ensino médio e, desse terço, só terminam o curso 15% ou 20%. As razões, de modo geral, são de desinteresse, porque o ensino sequer tomou conhecimento, até hoje, da comunicação tecnológica. Enquanto não se fizer a reforma do ensino básico, não adianta, por exemplo, multiplicar o número de faculdades. A maioria das escolas no Brasil, principalmente as particulares, está com excesso de vagas.

FÉLIX SAVÉRIO MAJORANA – Gostaria de lembrar que os professores universitários são forçados a fazer mestrado e, a não ser aqueles específicos de pedagogia, não são obrigados a frequentar nenhuma disciplina pedagógica, não tomam contato com nenhuma técnica de ensino. Eles vão então passar ensinamentos aos alunos de uma forma estranha à pedagogia.

PAULO LUDMER – O palestrante mencionou Amartya Sen, que introduz um problema gravíssimo de natureza conceitual, que é o afastamento da economia da ética, e vice-versa, quando uma precisa muito da outra. Todos os cálculos e reflexões dos pensadores usam um denominador chamado Produto Interno Bruto (PIB), e penso que o modo como o mundo vê o PIB precisa ser alterado. Bens duráveis, por exemplo, até por questões de sustentabilidade, têm de ser mais duráveis. Um automóvel não pode ser trocado anualmente, mas a cada dez anos. Motores de veículos não poderiam ter potência acima de 1.0, os alimentos deveriam ter menos produtos químicos e por aí vai, para que a humanidade sobreviva. A questão é: vale a pena repensar tudo isso que você nos apresentou com outra valoração do PIB?

JOSÉ ROBERTO FARIA LIMA – Somos um país que se gaba de ser a sexta ou a quinta maior economia do planeta e que ao mesmo tempo não consegue educar suas crianças. Nós fugimos dos grandes problemas nacionais. Um deles é conquistar a Amazônia sem destruí-la, com a instalação de laboratórios de pesquisa que nos permitam usufruir de tudo aquilo que a natureza oferece. O outro é eliminar as grandes distinções entre as classes sociais. E um terceiro é o gerenciamento das megacidades. Em São Paulo temos 8 mil quilômetros quadrados e 20 milhões de habitantes, um décimo da população brasileira vive em um milésimo do território.

Queria mostrar esses paradoxos e perguntar se vamos chegar a usufruir das vantagens do bônus demográfico. A universidade, com a criação de cotas, parece um clube de motociclistas, com a turma das mil cilindradas, de 750, de 125. O que vamos entregar a nossos filhos?

LUIZ GORNSTEIN – No Brasil os jovens buscam muito concursos públicos. Isso seria vocação, um furor patriótico ou o desejo de estabilidade, aposentadoria garantida, horário confortável, tarefa suave, cobrança leve etc.?

SCHÜLER – Talvez eu não seja tão cético assim sobre o Brasil. Existem elementos de modernização muito importantes no país. Vamos viver nos próximos 20 anos um paradoxo: o país vai crescer, dobrar o PIB per capita, mas carregando muitas mazelas.
Ainda que compreenda as motivações sociais das cotas raciais, sou cético em relação a sua eficácia. O Brasil tem sabido gradativamente superar o trauma da escravidão e hoje a segregação social no país me parece associada muito mais a fatores econômicos que etnoculturais. Então as cotas focam no alvo errado. Precisamos garantir que cada criança pobre, no Brasil, tenha uma bolsa para estudar nos melhores colégios e todas as condições de permanecer estudando até a faculdade. É um equívoco reinstituir uma distinção jurídica entre negros e brancos no Brasil. Significa reintroduzir perigosamente na cultura brasileira um elemento de segregação. Fazer políticas afirmativas é necessário, mas instituir um critério de distinção jurídica a partir da cor da pele é muito grave. Alguém já se perguntou sobre o potencial de ressentimento social que estamos engendrando, na sociedade brasileira, entre os brancos muito pobres? Eles existem, também são produtos da exclusão social, e não são poucos, e terão todas as razões para nutrir um sentimento de injustiça.

Também penso que se criou uma distorção no mercado de trabalho brasileiro, que se chama popularmente de indústria dos concursos públicos. É um dos efeitos mais perversos desses 155 mil novos empregos públicos criados no governo Lula. Boa parte dos jovens brasileiros que deveriam estar se formando para ser empreendedores, para ir para o mercado de trabalho, vão se preparar para fazer concursos públicos em busca de estabilidade no emprego e aposentadoria tranquila. Vejo isso no Rio de Janeiro, muito mais que em São Paulo, e vi em Brasília muito mais que no Rio de Janeiro.