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Menos ruas, mais carros

por André Campos

No chuvoso dia 1º de junho de 2012, às 19 horas, a capital paulista registrou o maior congestionamento de sua história, com espantosos 295 quilômetros de lentidão. A marca, porém, a julgar pelo passado recente da cidade, pode ter nascido com os dias contados. O pico máximo anterior – 293 quilômetros – remete a 2009, na saída de milhares de veículos para o feriado de Corpus Christi. Superou, por sua vez, um recorde anotado apenas um ano antes, numa sexta-feira particularmente pródiga em acidentes. São números que ajudam a explicar por que – de acordo com um levantamento de 2011, divulgado pelo instituto de pesquisas Ibope – o trânsito é o segundo maior problema dessa metrópole na visão de seus próprios habitantes.

O drama de São Paulo – cidade com 7,3 milhões de veículos, segundo o Departamento Estadual de Trânsito (Detran-SP) – não destoa da realidade de outros conglomerados urbanos brasileiros, que sofrem com a lentidão crescente do trânsito em suas ruas e avenidas. Na região metropolitana de Belo Horizonte, 20% da população ocupada consome uma hora ou mais no trajeto do lar ao trabalho, conforme mostram os últimos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Já na capital fluminense, uma projeção da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) assinala que as perdas geradas pelos engarrafamentos poderão chegar a R$ 34 bilhões em 2016 – ano em que o município sediará os Jogos Olímpicos –, valor equivalente a um quinto do PIB carioca de 2009.

Por trás desses números alarmantes está o aumento vertiginoso da frota nacional, que alcança hoje o total de quase 73 milhões de veículos. Segundo estatísticas do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), ela mais que dobrou nos últimos dez anos, superando em muito o crescimento populacional do país, que, nesse mesmo período, foi de pouco mais que 10%.

O trânsito caótico não apenas traz prejuízos econômicos, como também afeta a qualidade de vida. Trata-se inclusive de um problema de saúde pública, visto que provoca doenças associadas ao estresse e à poluição, além de milhares de mortes indissociáveis da crescente disputa por espaço nas vias das metrópoles. Dados do Ministério da Saúde indicam que, entre 2000 e 2008, os óbitos em acidentes de trânsito saltaram de 29 mil para 38,3 mil por ano. Na cidade de São Paulo, a situação dos motociclistas é reveladora: “Foram 512 mortos no ano passado”, informa George Balthazar Jr., superintendente administrativo da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) – um avanço de quase 50% em seis anos. Dirigir entre os veículos, em ruas cada vez mais abarrotadas, é, sintomaticamente, a principal causa identificada pelo órgão para esse tipo de óbito.

Um longo caminho

Para a maior parte dos brasileiros, certamente é difícil imaginar que o transporte sobre trilhos foi, nas primeiras décadas do século 20, o principal sistema de deslocamento nas maiores cidades do país. Em São Paulo, por exemplo, as linhas de bondes somavam 258 quilômetros em 1933 – mais que três vezes a extensão atual do metrô.

No outro extremo das Américas, porém, os ventos da mobilidade urbana sopravam em outra direção. Nas fábricas da Ford, nos primeiros anos do século passado, eram introduzidas as linhas de montagem e outras inovações que baratearam os custos de produção, inaugurando o mercado de massa dos automóveis. Foi uma revolução que varreu o mundo e atingiu em cheio o Brasil durante a presidência de Juscelino Kubitschek de Oliveira (1956-1961), quando o incentivo à indústria automobilística tornou-se o carro-chefe da industrialização do país.

Nesse contexto, aceleraram-se também grandiosas obras viárias, com alargamento de ruas e construção de novas avenidas e viadutos, convertendo cidades brasileiras em autênticas metrópoles sobre rodas. Bondes e trens deram lugar a carros e ônibus, expandindo horizontes urbanos antes limitados pela custosa implantação de trilhos e viabilizando, dessa forma, novas frentes imobiliárias de todos os matizes, para ricos e para pobres. Isso deu origem a bairros aristocráticos e a loteamentos populares, típicos das periferias dos grandes aglomerados urbanos.

Tal mapa social geralmente condena os mais pobres aos maiores deslocamentos diários entre a casa e o trabalho. São pessoas penalizadas duplamente, pela maior distância a ser coberta e pelas mazelas do transporte público. Segundo a última pesquisa “Origem e Destino” do Metrô paulista, o tempo médio de viagem em coletivos é mais que o dobro, na região metropolitana, do demandado pelo transporte individual.

Não é de se estranhar, portanto, que o aumento de renda da população e a chegada ao mercado de uma nova classe média tenham levado tantas pessoas a priorizar o “sonho do automóvel”. A solução individual, porém, converte-se a longo prazo num problema coletivo, já que um ônibus convencional, que não chega a ocupar o espaço de quatro carros, está apto a transportar ao redor de 35 passageiros sentados, contribuindo menos, dessa maneira, para a superlotação das vias públicas.

Entre 1997 e 2005, o uso do transporte coletivo nas áreas metropolitanas caiu de 68% para 51% do total de viagens motorizadas, segundo mostra um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apresentado em maio de 2011. “Se não melhorarem e incrementarem o transporte público, a situação vai se deteriorar de tal forma que algumas cidades se tornarão inviáveis”, afirmou, por ocasião da divulgação da pesquisa, seu coordenador, Carlos Henrique Ribeiro de Carvalho.

Em janeiro de 2012, ao sancionar a Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU), o governo federal deu sinais de que, ao menos em teoria, está atento à questão. A partir de 2015, segundo as novas diretrizes, os municípios com mais de 20 mil habitantes deverão ter Planos de Mobilidade Urbana para ganhar acesso a recursos federais destinados às ações e obras de deslocamento nas cidades. Tais planos, por sua vez, devem priorizar o transporte público em relação ao individual.

No Brasil, os cofres da União são importantes indutores da configuração dos mapas das cidades. Em abril, a presidente Dilma Rousseff anunciou, no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a injeção de R$ 22 bilhões federais em projetos de metrôs – subterrâneos e de superfície – e de corredores de ônibus para municípios com mais de 700 mil habitantes. Além disso, a mobilidade urbana também se converteu no principal destino dos gastos públicos estimados para a Copa do Mundo, devendo abocanhar R$ 12 bilhões – desse total, R$ 4,6 bilhões são contrapartidas de governadores e prefeitos. “Os investimentos previstos para a Copa e para os Jogos Olímpicos serão planejados e articulados com vistas a assegurar benefícios permanentes de qualidade de vida para os cidadãos”, garantiu, no ano passado, a presidente.

Apesar do discurso oficial, alguns dos projetos enfrentam críticas quanto a sua real utilidade para o dia a dia da população. Em Manaus, o Ministério Público Federal no Amazonas (MPF/AM) questionou a viabilidade econômica e a própria funcionalidade do monotrilho que ligará áreas da cidade à Arena da Amazônia, um dos estádios da Copa. Em Cuiabá, outra das sedes do evento, os recursos federais serão investidos em um metrô de superfície onde antes estava previsto um corredor rápido de ônibus. O MPF mato-grossense apontou falta de respaldo técnico para a mudança de projeto – que envolve investimentos mais onerosos – decidida pelo governo estadual.

Políticas discutíveis

Menos chamativas que as obras do PAC e da Copa, outras medidas legisladas pelo Planalto nem sempre se colocam a favor do transporte público. De acordo com o próprio Ipea (fundação vinculada à Presidência da República), “a política de combustíveis, que promoveu o encarecimento do preço do diesel em relação ao da gasolina, vem estimulando o aumento de viagens por transporte individual”. Nos últimos dez anos, segundo o IBGE, o diesel – principal matriz energética dos ônibus brasileiros – subiu 50% mais que a gasolina, que é subsidiada pela Petrobras. Tal fato ajuda a explicar o aumento das tarifas – 60% acima da inflação desde 1995 – e as dificuldades de investimento na renovação das frotas.

Em maio, visando estimular a economia, o Ministério da Fazenda anunciou a redução de impostos para os carros novos, colocando ainda mais pimenta no debate sobre as prioridades federais relacionadas à mobilidade urbana. A medida – que reedita política adotada em 2008, no auge da crise internacional – sofreu críticas por supostamente funcionar como um “subsídio ao trânsito”, de consequências, a longo prazo, francamente antieconômicas. “Estão incentivando a compra de automóveis, mas não a andar de automóvel”, pondera Isabel Lins, diretora de Regulação e Gestão da Secretaria Nacional de Transporte e da Mobilidade Urbana (SeMob) do Ministério das Cidades. Ela cita o exemplo de países onde, apesar dos elevados índices de veículos por habitante, os carros ficam na garagem graças a políticas locais que priorizam o transporte público.

Atualmente, 12 metrópoles brasileiras possuem sistemas metroferroviários – que incluem trens urbanos e metrôs subterrâneos ou de superfície –, perfazendo, segundo a Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos (ANPTrilhos), 990 quilômetros em linhas. Para os próximos anos, somente os recursos do PAC prometem adicionar pelo menos 200 quilômetros a essa malha, que é extremamente tímida na comparação com a realidade de outros países. Quarta maior cidade do planeta e a mais avançada do país na área, São Paulo tem 74,3 quilômetros de metrô contra, por exemplo, 420 quilômetros em Xangai, 418 em Nova York e 408 em Londres. “Todos os sistemas sobre trilhos de nossas cidades não chegam a transportar 8 milhões de passageiros por dia útil, um total próximo ao registrado apenas em Xangai ou Pequim”, exemplifica ainda um estudo da ANPTrilhos.

Para minimizar as disputas por espaço entre coletivos e automóveis, outra aposta atual em diversos municípios é a implantação de sistemas Bus Rapid Transit (BRT), em que os ônibus – muitos deles articulados, com maior capacidade de passageiros – circulam em faixas exclusivas, dotadas de infraestrutura que permite maior fluidez ao tráfego. O modelo já foi adotado em diversas cidades do mundo e é uma alternativa mais barata aos metrôs subterrâneos e de superfície.

Criado na década de 1970 em Curitiba, o BRT é o pilar central do sistema de mobilidade urbana que fez da capital paranaense uma referência mundial na área. Um de seus diferenciais reside no fato de ele ter sido planejado de forma integrada ao zoneamento da cidade. “Só foi permitida a verticalização (construção de prédios) nos quarteirões ao longo dos corredores”, explica Fábio Duarte, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR). “Isso fez com que mais gente fosse morar perto deles.”

Exemplo radical

Para Duarte, a ausência de medidas criativas como a adotada na capital paranaense é o calcanhar de Aquiles dos corredores BRT, implantados e projetados em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. “Eles enxergam o transporte público só da porta do ônibus para dentro”, opina Duarte. A questão remete ao medo de enfrentar o mercado imobiliário com normas regulamentadoras da ocupação do solo – vetando, por exemplo, novos edifícios em áreas de ruas estreitas.

Nos últimos anos, o avanço galopante da frota de automóveis não poupou nem mesmo Curitiba, apesar de seu elogiado sistema de transporte coletivo. Isso cobra seu preço na forma de congestionamentos cada vez mais frequentes e que, na visão de muitos especialistas, mostram como o apelo do carro – e suas inegáveis vantagens em relação a conforto, privacidade e liberdade – não é reflexo apenas da má qualidade do transporte público.

Nesse contexto, medidas restritivas ao uso de veículos, comuns em outros países, vêm ganhando adeptos também no Brasil para enfrentar problemas de trânsito. São ações que podem incluir desde maiores proibições ao estacionamento em vias públicas – algo já encampado por algumas prefeituras – até normas que visam vetar, explicitamente, a saída dos carros das garagens. Bogotá, capital colombiana, traz em seu rodízio de veículos um dos exemplos mais radicais: desde julho, de acordo com o final da placa, não é permitido circular, nos horários de pico, nos dias pares ou nos ímpares.

Em São Paulo, a ideia do pedágio urbano é uma das opções em debate. Desde 2010, tramita um projeto de lei do vereador Carlos Apolinário (DEM) que visa instituir a cobrança de uma taxa diária para trafegar na região central da cidade – semelhante à que já existe, por exemplo, em Londres e Estocolmo. Em abril, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Municipal aprovou a proposta, que ainda precisa passar por outras comissões antes de ir a plenário e virar lei.

Não é a primeira vez que o pedágio urbano é apreciado pelos vereadores paulistanos. Desde 1995, pelo menos 11 projetos nessa linha já passaram pela Câmara sem jamais chegar a votação. Até mesmo o ex-governador José Serra (PSDB), em 2009, e o prefeito Gilberto Kassab (PSD), em 2007 (na época, ele era ligado ao DEM), recuaram das tentativas de legislar sobre o assunto. Ambos enviaram – à Assembleia Estadual e à Câmara, respectivamente – projetos que abriam caminho para a taxação. Porém, deram meia-volta diante da reação dos adversários políticos e da opinião pública.

Caso se torne realidade, o pedágio urbano certamente precisará ser acompanhado de melhorias nos coletivos para absorver o aumento da demanda. Em Londres, por exemplo, a lei determina que a receita advinda da cobrança seja investida no transporte. “Para que haja aceitação social, as pessoas precisam acreditar que é uma solução efetiva”, defende o economista Thiago Guimarães, autor do estudo Pedágio Urbano: Teoria e Prática. A falta de transparência, no entanto, é um sério empecilho para que isso aconteça. Guimarães cita o exemplo da extinta Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), criada originalmente para o custeio da saúde pública e que, no fim das contas, teve seus recursos destinados a outras áreas.

Em anos recentes, não foram os carros, mas os caminhões e os ônibus fretados, os principais alvos das ações restritivas adotadas pela prefeitura de São Paulo – ambos estão proibidos de circular, em boa parte do dia, no centro expandido e em vias importantes da cidade. Apesar de trazer melhorias pontuais ao trânsito, tais medidas enfrentam críticas por liberar espaços rapidamente ocupados pela enxurrada de novos automóveis e incentivar ainda mais o transporte individual. Somente nos cinco primeiros meses de 2012, vale lembrar, foram adicionados 40 mil novos carros à frota paulistana. Em 2009, uma semana após o veto aos fretados em áreas da capital paulista, um levantamento feito pelo jornal “Folha de S. Paulo” entre 200 usuários do serviço identificou que um terço deles havia migrado para o automóvel.

Quando o assunto são as soluções para o trânsito, a experiência internacional mostra que não existe um único caminho a ser percorrido. Inovações tecnológicas e organizacionais, adequadas às diferentes realidades urbanas, apontam uma grande variedade de ações com potencial para gerar bons resultados.

Em Los Angeles e outras cidades americanas, as vias expressas contam com faixas exclusivas para veículos com dois ou mais ocupantes, incentivando, assim, a carona solidária. Já nos cruzamentos de Londres são empregados semáforos inteligentes que priorizam a passagem dos ônibus. Em outros países da Europa, por sua vez, o ato de pedalar pelas cidades – apoiado por ciclovias e serviços de aluguel de bicicletas – ganha força como alternativa ao deslocamento motorizado, seja ele público ou privado.

Independentemente das medidas adotadas, é certo que, para driblar os engarrafamentos, prevenir é melhor que remediar. Na opinião do presidente da Associação Nacional de Transporte Público (ANTP), Ailton Brasiliense Pires, essa é uma preocupação ainda distante da agenda das cidades brasileiras, notadamente daquelas que devem concentrar a maior fatia do crescimento populacional nas próximas décadas.

De acordo com as últimas projeções do IBGE, a população do país ganhará algo entre 25 e 30 milhões de habitantes até 2039, e são os municípios de porte médio que devem receber a parcela mais significativa desse contingente. Por conta dessa realidade, segundo Pires, muitos locais podem ter sua frota de automóveis até mesmo triplicada. “Se essas cidades não acordarem, terão problemas cada vez maiores em um espaço de tempo muito curto”, ele prevê.