Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Família contemporânea

O debate sobre a transformação do modelo familiar vem ganhando cada vez mais repercussão tanto nos meios acadêmicos quanto na mídia. A nova configuração inclui separações, criação de novos núcleos envolvendo padrastos, madrastas, irmãos por parte de pai ou de mãe, pais homossexuais e até parceiros heterossexuais que não querem ter filhos. Apesar de toda essa diversidade, o que importa são os laços que definem a composição da palavra família, mesmo que alimentada de um novo conceito. Em artigos inéditos, o antropólogo Geraldo Romanelli e o psicanalista Otávio Augusto Winck Nunes analisam a questão.


As Famílias vão bem? E a sua, como vai?
por Geraldo Romanelli

Se existe algo em comum às famílias é a diversidade de sua composição interna e sua constante transformação. Famílias devem ser entendidas no plural, pois assumem configurações variáveis em cada período histórico e mesmo no interior de sociedades específicas. Ao mesmo tempo, passam por processos de mudança, às vezes lentos, outras vezes mais acelerados, como acontece na sociedade brasileira contemporânea, e que resultam em inovações na composição doméstica.

Essas inovações estão associadas em boa parte ao impacto da esfera econômica e política. No plano econômico, a forma de inserção dos familiares no mercado de trabalho e o montante de rendimentos gera distintos modos de organização nas famílias. O poder público igualmente interfere nas relações familiares mediante leis que regulamentam casamento, divórcio, reprodução biológica, através de medidas para limitação da natalidade, aborto, transmissão de herança,  guarda dos filhos após separação dos pais e concessão de benefícios como o Bolsa Família.

Pressões e ingerências econômicas e políticas não atuam de modo mecânico e automático sobre as famílias. Estas não são inertes diante dessas coações, mas seus integrantes reagem criativamente a elas, reordenando as relações internas e as que mantêm com essas esferas.

Paralelamente a esses impactos, o avanço do conhecimento científico também afetou as famílias. O surgimento de técnicas contraceptivas assegurou o controle da natalidade e contribuiu para a redução da taxa de fecundidade, atualmente de 1,8 filho por mulher, conforme dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2010.

Em sentido inverso, novas tecnologias reprodutivas permitiram ultrapassar os limites biológicos da reprodução assegurando que casais com problemas de infertilidade possam ter filhos. Também o surgimento de exames de DNA para comprovar, sobretudo, a paternidade possibilitou ao pai comprovar cientificamente se o filho da mulher com quem vive é realmente seu descendente biológico.

Quando esse vínculo não é comprovado, a relação afetiva entre pai e filho construída na convivência mútua tende a ser desfeita. Nesses casos, essa descoberta tende a ocasionar graves problemas emocionais para o filho e para o pai, como estudos antropológicos recentes têm demonstrado.

Todos esses fatores têm contribuído para a renovação da vida familiar, acarretando aumento de separações e divórcios; crescimento de uniões consensuais, isto é, sem casamento legalizado; redução no número de filhos; aumento de gravidez fora do casamento, sobretudo entre adolescentes; formas de reprodução assistida; casamentos de homossexuais; e o surgimento de novas formas de organização doméstica.

De fato, o que está em rápido processo de mudança é a redução de famílias nucleares, compostas por marido, esposa e filhos e a diminuição de casamentos civis. A própria concepção de casamento, tradicionalmente considerado como união indissolúvel, foi alterada e hoje o vínculo conjugal tem duração limitada. Lei de 1971 instituiu o divórcio, que hoje é processo simplificado, e permite novo casamento. Entretanto, dados do IBGE indicam que o casamento legalizado decaiu de 93,5% em 1960 para 71,4% em 2000, e as uniões consensuais aumentaram de 6,5% para 28,6% no mesmo período.

Por sua vez, a família nuclear, composta por marido, esposa e filhos, considerada modelo ideal de organização doméstica, tem diminuído. Conforme indicadores do IBGE, em 1999 essas famílias representavam 55% e em 2009 eram 47%. Ainda segundo esse Instituto dentre os novos arranjos que se ampliaram encontram-se as famílias matrifocais, ou chefiadas por mulheres, constituídas pela mãe e pelos filhos que moram com ela e que de 9% em 1978 passaram para 29,2% em 2006.

Famílias patrifocais, compostas pelo pai e pelos filhos que residem com ele, começaram a ser tornar mais visíveis e correspondem a 1,7% na mesma data. A existência desse arranjo altera postura predominante até recentemente, segundo a qual a guarda dos filhos cabia à mãe, e suscita inúmeras indagações acerca do modo como o pai cuidará dos filhos sem a presença materna.

Em grande parte fruto de separações, as famílias recompostas, em que um dos parceiros, ou ambos, tiveram filho de união anterior, tendem a aumentar, como revelam vários estudos. Nessas famílias, os filhos geralmente residem com a mãe e com o parceiro desta. Esses arranjos criam uma constelação de pessoas que partilham convivência em comum, inicialmente o padrasto ou a madrasta, seguidos pelos filhos da nova união e de outros que um dos parceiros teve de relacionamentos anteriores, além de parentes do atual companheiro da mãe.

A ampliação dessas relações é fonte de confusão para classificar essas pessoas e para definir o modo de relacionamento com elas e pode desencadear tensões e conflitos. Apesar disso, algumas pesquisas recentes têm mostrado que a relação entre padrasto e enteados não é necessariamente conflituosa; muitas vezes é vivida por eles de modo afetivo e enteados frequentemente consideram e tratam o padrasto como se fosse seu pai. 

Por outro lado, o desejo de casais homossexuais de exercerem a homoparentalidade, isto é, de se tornarem pais e mães, pode ser viabilizado mediante novas tecnologias reprodutivas e é bom exemplo de que família só é realmente efetivada quando há filhos. Se essa postura não é extensiva a todos os homossexuais deve ser contraposta ao número crescente de casais heterossexuais que não desejam ter filhos, categoria em crescimento entre a população brasileira que, segundo o IBGE, passou de 13% em 1999 para 17% em 2009.

A homoparentalidade ainda causa perplexidade e desconfiança, pois rompe com o modelo de família heterossexual e acarreta inúmeras dúvidas quanto ao fato de duas pessoas do mesmo sexo poderem criar filhos de modo adequado. Todavia, algumas pesquisas produzidas nos Estados Unidos, na França e no Brasil questionam essa avaliação.

Não obstante todos os problemas que afetam esse tipo de união, alguns juízes têm adotado postura inovadora ao conceder estatuto legal às uniões homoafetivas e, em certos casos, à homoparentalidade. Como todas essas inovações estão se manifestando com grande velocidade cria-se a suposição de que elas podem ameaçar a continuidade da família e sua suposta decadência, o que comprometeria a reprodução da própria sociedade. Ao contrário, pesquisas tendem a mostrar que os brasileiros atribuem grande importância e apreço à família como documentado em pesquisa do Instituto DataFolha em 2007. 

Essa valorização das famílias ultrapassa a diversidade de arranjos domésticos e assenta-se no que eles têm em comum, como a reprodução biológica – que também pode ocorrer fora da unidade doméstica –, os cuidados dispensados aos filhos e a provisão de recursos financeiros necessários para assegurar moradia, alimentação, saúde e lazer de seus integrantes.

Outro aspecto relevante refere-se ao conteúdo afetivo das relações familiares que se manifesta nos vínculos criados entre seus integrantes, o que dá origem ao sentimento de pertencimento a um grupo de convivência fundado na solidariedade. Contudo, a vida familiar não é organizada apenas por relações harmoniosas, solidárias e protetoras.

Competição, conflito e, inclusive, violência de marido contra esposa, de pais contra filhos tendem a ocorrer de forma intensa no interior da cena doméstica, como está igualmente documentado por várias pesquisas. Famílias não podem ser avaliadas e entendidas a partir de moldes tradicionais.

E não se trata de questionar se as famílias vão bem ou mal, mas de compreender o modo como se organizam, já que não há um único modelo ideal e correto de ordenação das relações domésticas. Também não cabe perguntar se sua família vai bem ou mal, mas o importante é como cada um vivencia as transformações da própria família e como reelabora constantemente os vínculos domésticos.

Estes não são perenes e se alteram devido ao nascimento dos filhos, ao ingresso deles na escola e no mercado de trabalho e em função de separação, desemprego, doença, morte, de tal modo que as relações no interior de uma família nunca são as mesmas no decorrer da trajetória de cada um de seus integrantes.


“Famílias não podem ser avaliadas e entendidas a partir de moldes tradicionais. E não se trata de questionar se as famílias vão bem ou mal, mas de compreender o modo como se organizam, já que não há um único modelo ideal e correto de ordenação das relações domésticas”


Geraldo Romanelli é antropólogo e professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de ?Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo.

 

---


Laços de desejo
por Otávio Augusto Winck Nunes

Na esteira da revolucionária década de 1960, os anos de 1970 foram pródigos em questionar as instituições sociais. Não houve uma que passasse incólume às críticas agudas, disparadas como balas de metralhadoras giratórias. Nenhuma saiu ilesa. Estado, Igreja, família, casamento foram o alvo preferido, mas sobravam tiros para todos os lados. A não ser que se recorresse tão simplesmente à alienação. Não necessariamente a política, mas, sim, ao gesto tão banal de fazer vista grossa ao que se passa bem ao nosso lado. A tudo que nos circunda. Incluindo a nós mesmos.   

A instituição “família” saiu cambaleante desse período, banhada em sangue. Passou por várias cirurgias, precisou de muitos cuidados para curar ou amenizar suas feridas. Uma longa temporada na UTI. Já na porta do hospital, trôpega, a dúvida; para onde ir?

A garantia estipulada pelo patriarcado encontrava-se em ruínas já há algum tempo. A rigidez da verticalidade das relações não era bem-vista. A pílula anticoncepcional transformava a sexualidade. Elementos imprescindíveis que demarcavam uma tradição foram interrogados.

Como não transgredir se era proibido proibir? De lá para cá, em 40 anos muita coisa mudou, e, em vários aspectos, avançamos. Não há, atualmente, dúvida alguma de que existe bem mais espaço para as diferenças, em relação a um passado recente, e de que isso é um bom sinal.

Podemos montar famílias díspares, casamentos distintos, levar a nossa vida de forma bem mais condizente com as nossas aspirações, nossos desejos, nossas preferências e limitações, sem necessariamente escandalizar a tradição. Avançamos pela diferença. É necessário entendermos o que significa essa diferença.

Antes de tentar esboçar um argumento que sustente isso – a inclusão da diferença –, proponho duas hipóteses interligadas quanto ao funcionamento das instituições. Uma delas, é que precisamos levar em conta que as instituições ditas oficiais, o Estado e a Igreja, concentradoras de maior poder e que têm uma influência macroscópica, perderam muito do prestígio que gozavam como reguladoras sociais.

Não só pelo gigantismo, que poderia ser uma boa desculpa, mas, sim, muito mais pelas dificuldades em relação às tentativas de modernização de suas entranhas, que têm levado mais tempo para dar mostras de sinais vitais. Aliás, ainda sofrem, com várias feridas abertas. A saúde dessas duas instituições, em comparação à instituição familiar, é muito frágil. 

Mesmo que, por vezes, tentem arejar alguns aspectos, preservam um caráter conservador dos mais arraigados. Com isso, sua inoperância teve como consequência uma perda de confiança no seu poder e na sua ação, dificultando ainda mais sua recuperação. Podemos contar pouco com elas.

Uma segunda hipótese a ser considerada. O descrédito e a desconfiança nas instituições maiores, no que chamaríamos de vida pública, deslocaram o olhar para a vida privada. A vida íntima das famílias começou a receber maior atenção. As famílias começaram a concentrar maiores expectativas de aceitação de mudanças, para, com maior rapidez, responder aos anseios individuais.

O teatro privado familiar tornou-se palco de manifestações que antes encontravam no espaço público seu lugar privilegiado. Muitas mudanças foram exemplares nesse sentido: o exercício no interior das famílias – o teste no mundo privado tomou um vulto maior como lugar para o exercício da diferença.

Talvez esse seja o elemento que mereça um desdobramento. Então, aonde chegamos no que diz respeito à família contemporânea? É corrente que família é uma instituição imprescindível, mesmo que não isenta de problemas. Podemos perguntar para qualquer um qual é o seu esteio, a resposta, sem dúvida, é a família. Ou o contrário, se algo não funciona na vida de alguém a causa atribuída é, quase sempre, a desestruturação familiar. Depositamos na família, no seu funcionamento, a transmissão que projetaria tanto o melhor quanto o pior da vida.

Então, de que tipo de laço estamos falando? Nas famílias contemporâneas não é esse o questionamento que mais salta aos olhos? Quais são os critérios que utilizamos para demarcar uma família? O laço amoroso de um casal seria o início, um mítico marco zero. A partir do momento em que se projeta algo em direção ao futuro, através dos filhos, é que se produz uma diferença fundamental.

O laço de sangue toma outra proporção. E talvez esse tenha sido a grande vítima, felizmente, das transformações familiares. É curioso. Sempre que se diz ou se ouve a expressão “sangue do meu sangue” a imagem que vem à cabeça é que há uma ligação entre a geração precedente e a posterior impossível de ser rompida.

A imagem é legítima, sem dúvida, mesmo que não totalmente verdadeira. O que talvez mereça ser considerado é que sua extensão é curta para recobrir os diferentes modos de relações que temos. Em outras palavras, o chamado vínculo biológico, a herança genética, não é suficiente para assegurar ou para abarcar as diferenças que nós, humanos, produzimos no plano simbólico. 

Se não podemos negar que ter um filho biológico traduz o desejo de muitos, o que se transmite por essa via é limitado. Ou seja, não é pelo sangue, mas pelo desejo que a transmissão de uma geração para outra se efetiva. E isso que é alusivo ao simbólico é a condição humana per se.

O que significa isso? Significa que podemos enfrentar situações novas, sem recuarmos por medo ou preconceito.

Significa que a abrangência das configurações familiares na contemporaneidade, além de mais ampla, e desafiadora, inclui a diferença que aludimos anteriormente. Haja vista os novos formatos de famílias: homens casados com homens; mulheres com mulheres; homens transformados em mulheres casados com mulheres transformadas em homens; e mesmo o tradicional homem casado com mulher.

Ou seja, as combinações são várias e todas são possíveis frente à mínima diferença, ou igualdade, existente entre os sexos. Com isso, ganhamos todos a possibilidade de nos vermos incluídos em instituições das quais, nós, humanos, não abrimos mão de participar.

Ou seja, a possibilidade de os casamentos se rearranjarem, sejam parcerias hetero ou homo, homens e mulheres separados que se casam novamente, trazendo para as novas parcerias filhos já crescidos ou tendo novos, já não é mais novidade. Mas a discussão que merece ser feita é de que o “laço de desejo” nas relações é o mais importante, pois é dele que as relações afetivas, amorosas, dependem. Não se trata de depreciar o laço de sangue, mas o fato discursivo é que faz alguém pertencer a uma família, quando dizemos: “Fulano é meu pai”, “Sicrano é meu filho”, delimitamos o campo onde estamos como humanos.  

As críticas, em forma de balas, não serviram para destruir, aniquilar, extinguir um dos pilares das instituições sociais? Pelo contrário, o que se conseguiu foi reforçar a concepção de família. Recuperamos a ideia de família, mas com um novo conceito.

Não a família verticalmente agonizante das décadas anteriores, mas a nova família, que permite novas configurações, inclusive em um trânsito pela horizontalidade. Aquilo que era considerado a representação das mais “caretas”, da reprodutora mor do moralismo e do status quo, quando menos se esperava saiu do seu estado moribundo e ressurge com toda força.

Mas, felizmente, ressurge modificada. O que não significa, necessariamente, que tudo está resolvido. Longe disso. Os problemas no seu interior não desapareceram, nem desaparecerão. Pelo contrário. Criamos outros, o que de modo algum é ruim, só exigirá que estejamos preparados para isso, sem os mesmos preconceitos vigentes.

O que podemos traduzir por recuperarmos a palavra família, mas com um novo conceito. Então, as alterações e mudanças no mais “vivo da vida”, no cotidiano, têm transformado em direito o que é um fato. Com isso, dando valor aos esforços para chegar aonde chegamos. Que a legitimidade do laço amoroso não se dá pelo tempo de permanência de uma relação, nem o familiar se constrói exclusivamente pela herança biológica. Conseguimos um estado de avanço, ainda incipiente, na civilização que inclui o desejo, que pelo menos é promissor.


“As críticas, em forma de balas, não serviram para destruir, aniquilar, extinguir um dos pilares das instituições sociais? Pelo contrário, o que se conseguiu foi reforçar a concepção de família. Recuperamos a ideia de família, mas com um novo conceito”


Otávio Augusto Winck Nunes é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS) e mestre em Psicanálise e Psicopatologia pela Universidade de Paris VII.