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Formando leitores

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti

Com a disseminação das mídias digitais, muito se discute o papel da literatura e se proclama o inevitável fim do livro impresso. Mas o evidente nesse panorama é a mudança do suporte, ou seja, o instrumento que usaremos para ler, sem questionar a importância do ato na formação intelectual e humana.

É importante lembrar que a literatura infantil é a disparadora desse processo e, nessa fase da vida dos pequenos, o ideal é potencializar o contato com os diferentes autores e gêneros: fábulas, contos, histórias em quadrinhos, poemas, considerando-se a predileção individual e a faixa etária das crianças. Para expandir o universo da literatura infantil, as professoras Luciana Gomes Cunha Centini e Miriam Louise Sequerra colocam o assunto em pauta.

 

Literatura infantil? Muito prazer!

por Luciana Gomes Cunha Centini

Aprender a ler é, antes de tudo, aprender a ler o mundo, compreender o seu contexto, localizar-se no espaço social mais amplo, a partir da linguagem. Para ler o mundo, é preciso ler a palavra, tese básica do educador Paulo Freire; mas o que isso significa?

A leitura é algo vivo, algo que ultrapassa os muros da escola. Desde que nascemos, para compreendermos o mundo, é preciso que façamos uma leitura de tudo o que ele nos informa, por meio de sensações, imagens, gestos, sons e palavras, às quais normalmente somos apresentados ao ingressarmos na idade escolar.

Ler não é simplesmente extrair informações de um texto, decodificando letra por letra, palavra por palavra. A leitura é um processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo. É uma atividade que implica o uso de alguns procedimentos que possibilitam o controle daquilo que lemos.

É o que você está fazendo agora ao ler este texto e, talvez, nem tenha percebido. Entre os textos desta revista, você inicialmente selecionou este porque ele atende a sua necessidade, seja de interesse pelo assunto, seja de busca por mais informações para poder auxiliar um pequeno leitor que está em casa, por exemplo.

Além de selecionar textos, um leitor competente é capaz de ler as entrelinhas, identificando, pelo que está escrito, elementos implícitos, estabelecendo relações entre o texto e seus conhecimentos prévios ou entre o texto e outros já lidos. Mas como aprendemos tudo isso e qual é o lugar que a literatura infantil ocupa nesse processo?

É inegável que o hábito da leitura e o gosto por ela deveriam passar de pai para filho, ou seja, começar em casa, no seio familiar, na primeira infância, mas nem sempre essa é a realidade. Por ainda não sermos uma sociedade leitora, como em alguns países mais desenvolvidos, a importância do trabalho da escola é muito maior, ela possui um papel decisivo na formação de leitores. Por isso, desde a educação infantil, a leitura deve fazer parte da rotina dos alunos.

Nessa fase, a literatura ocupa um lugar privilegiado na formação das crianças. É por meio dela que, desde pequenos, conseguimos sonhar, enfrentar medos, vencer angústias, desenvolver a imaginação ou até conhecer outras civilizações. Além disso, a literatura dá acesso a uma parte da herança cultural da humanidade. Tudo isso nos ajuda a entender como a arte de contar histórias percorreu, até os dias de hoje, um caminho tão longo.

É pela prática da leitura, mediada pelo professor, que, progressivamente, as crianças conquistam uma autonomia cada vez maior – o texto não está pronto quando está escrito: o modo de ler também é um modo de produzir sentido, por isso a leitura deve ser significativa, atraente, útil e uma experiência frequente para as crianças. Uma prática de leitura que não desperte nem cultive o desejo de ler não é uma prática pedagógica eficiente.

Com relação ao desenvolvimento pedagógico, a literatura infantil é o ponto de partida para a formação de crianças leitoras e escritoras competentes, e, por esse motivo, é preciso dar-lhes oportunidade de ter contato, principalmente na escola, com diferentes gêneros textuais (contos, lendas, fábulas, histórias curtas, parábolas, histórias em quadrinhos, histórias por imagens, poemas, quadras, entre outros) e portadores variados (livros, revistas, gibis, jornais, folhetos e outros materiais impressos) que podem ser complementados com recursos da tecnologia, como computador, vídeo, som etc.

Ao organizar esse acervo, é preciso definir critérios que levem em consideração as necessidades de cada segmento e faixa etária, abrangendo as diferentes áreas do conhecimento, gêneros e portadores textuais, conforme exemplificado anteriormente. Além disso, não podem faltar os clássicos da literatura infantil, mesmo que em versões adaptadas.

Entre eles, na literatura nacional, podemos destacar: Monteiro Lobato, Ruth Rocha, Ziraldo, Sylvia Orthof, Pedro Bandeira, Ana Maria Machado e Lygia Bojunga. Já na literatura internacional, temos, por exemplo, Hans Christian Andersen, Roald Dahl e Mark Twain.

Uma forma de ampliar o acervo da biblioteca de classe é propor parcerias com as editoras e órgãos ligados ao incentivo da leitura. Além disso, cada classe pode contribuir com a compra de um título que, após a leitura, entra em um sistema de rodízio com os demais grupos. Com isso, além de ampliarmos significativamente o repertório de leitura dos alunos, possibilitamos a vivência dos cuidados necessários com o empréstimo de materiais.  

No acesso às obras da literatura infantil, é preciso ensinar os chamados comportamentos leitores, adequando-os a cada faixa etária; “entrar” na aventura com os personagens, comentar sobre o enredo, buscar textos semelhantes, conhecer mais sobre o autor ou trocar indicações literárias são exemplos de situações didáticas que devem ser propostas pelo professor. 

Para isso, a prática da leitura na escola deve ser constante e o professor precisa planejar intervenções adequadas a essa atividade. Ao circular os livros pela classe, por exemplo, ele deve observar quais são os procedimentos que os alunos utilizam durante a leitura, propondo questões problematizadoras que considerem os conhecimentos prévios apresentados pelas crianças.

Nesse momento, a preocupação do professor deve estar centrada em verificar se os alunos compreenderam o que leram e não simplesmente conferir se a tarefa foi cumprida. Outro aspecto que deve ser levado em consideração é o ?envolvimento da turma em situações de leitura compartilhada, em que o professor elucida passagens mais complexas, fornecendo informações pressupostas pelo autor, no texto.

O verbo “ler” não tolera imperativo e, nesse caso, vale lembrar que, segundo Daniel Pennac, hoje considerado um dos mais importantes e populares autores da literatura francesa, nós, os leitores, devemos conceder-nos todos os direitos, a começar pelos que recusamos a quem pretendemos iniciar na leitura, como o direito de não ler, pular páginas ou ainda não terminar um livro.

Aos pais, cabe acompanhar esse processo e incentivar a leitura. De que maneira? Leia as dicas a seguir:
•    Mantenha-se informado sobre o trabalho de leitura desenvolvido pela escola do seu filho e troque ideias com os professores, os quais podem ajudá-lo com informações importantes.
•    Vale lembrar que o adulto é um modelo de leitor, mas é preciso ser coerente: nossas atitudes revelam nossos verdadeiros valores; por isso, leia.
•    Quando for contar histórias aos seus filhos, conte-as com paixão!
•    Pesquisas comprovam que filhos para quem, quando pequenos, os pais leram bastante, têm um desempenho melhor em sala de aula. Outro fator que influencia positivamente a aprendizagem é a presença de livros em casa. Avalie se não é o momento de ampliar o acervo do seu filho, diversificando as fontes disponíveis. Lembre-se: não basta ter livros, é preciso lê-los!
•    Inclua, no roteiro dos passeios de final de semana, livrarias, bancas e bibliotecas como locais de acesso a livros, jornais e revistas. Consulte, com antecedência, a programação das grandes livrarias, algumas oferecem, gratuitamente, sessões de teatro e contadores de histórias.
Participar de momentos como esses, em família, é fundamental para o desenvolvimento das crianças. A proximidade com o mundo da leitura e da escrita facilita a ampliação da visão de mundo dos pequenos. Você já se programou para o próximo final de semana?

“Desde que nascemos, para compreendermos o mundo, é preciso que façamos uma leitura de tudo o que ele nos informa, por meio de sensações, imagens, gestos, sons e palavras”

Luciana Gomes Cunha Centini é professora e coordenadora pedagógica do 3º ano do Ensino Fundamental do Colégio Visconde de Porto Seguro

 

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Por que ler textos literários para crianças?

por Miriam Louise Sequerra

Hoje não se tem dúvidas da importância de colocar as crianças em contato com materiais escritos mesmo antes de estarem alfabetizadas. A proximidade com textos e a possibilidade de presenciar pessoas de seu entorno em atos de leitura e escrita, especialmente aquelas com quem têm um vínculo próximo, favorece que elas se iniciem na compreensão da linguagem escrita.

A relação positiva entre essa imersão no mundo das letras e o aprender a ler e escrever é comparável ao papel determinante da conversação com falantes de uma língua para uma criança aprender a falar. Se as pesquisas já consideram evidente o exposto acima, é muito mais antiga a compreensão do valor das histórias para os pequenos.

Os contos de fadas e outras narrativas tradicionais voltadas à infância, com seus embates entre bem e mal, permitem lidar com sentimentos intensos e conflituosos que povoam a mente infantil. Os contos de acúmulo e repetição são modelos simples de narrativas que, com sua organização previsível, despertam o prazer dos pequenos pela memorização de partes do texto, possibilitando a antecipação do que virá.

Essas histórias favorecem o acesso das crianças a formas de linguagem bem diferentes da conversa cotidiana. Não importa se contadas oralmente ou a partir da leitura de um adulto, as narrativas dão lugar à intimidade entre aquele que conta e aquele que escuta. O aconchego da voz que lê um conto embala o menino que vai se entregando aos poucos ao sono, criando uma cumplicidade semelhante àquela do grupo que se reunia à beira do fogão, nas grandes cozinhas antigas, para ouvir uma contadora trazer da memória para a imaginação dos ouvintes as histórias de sua própria infância.

Considerando o valor das narrativas, sua inclusão no trabalho pedagógico é uma realidade em várias escolas. Talvez como resposta, o mercado editorial voltado ao universo infantil oferece um enorme número de títulos, um leque variado de opções no que se refere aos temas, à complexidade da linguagem e ao tipo de ilustração. Em meio a essa oferta, o que escolher?

O que é mais adequado aos pequenos? Aquilo que está mais ajustado a suas possibilidades de compreensão? Aquilo que contribua para a criação de uma consciência moral e valorize ações positivas? A questão deve ser abordada com cuidado. A inclusão da literatura na escola deve ter como objetivo a formação de leitores de textos literários e, mesmo que se trate de crianças pequenas, a qualidade das obras apresentadas é que lhes permitirá progredir em sua capacidade de construir sentido e usufruir a experiência estética proporcionada pela própria literatura.

Não se trata, como se poderia pensar, de aproximar as crianças de livros que, gradativamente, tornem-se mais complexos para que, quando forem mais velhas, sejam capazes de ler textos reconhecidos por sua qualidade estética. Pelo contrário, é participando de atos de comunicação literária desde o início que elas avançarão nesse caminho.

Mesmo que mediados por um adulto que se encarregue da leitura, as crianças têm condições de apreciar textos com vocabulário e construções sintáticas ricas, desde que sua compreensão seja possível e a trama, envolvente. Apenas um exemplo: não é fácil convencer alunos de oito anos a ler clássicos de nossa literatura como Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, por se tratar de um texto longo e de vocabulário mais rebuscado.

No entanto, a leitura desse livro em capítulos, realizada pela professora, cativa a turma, que espera ansiosamente o que virá no dia seguinte. É em obras que têm a dupla qualidade de ajustar-se à capacidade de compreensão dos leitores jovens e ajudar-lhes a progredir que se amplia a possibilidade de se tornarem pessoas que leem mais e melhor. 

As histórias infantis tradicionais ou as narrativas contemporâneas oferecem uma experiência estética que se caracteriza como literária por incluir, de alguma maneira, os seguintes aspectos:
•    Favorecem o contato com distintas formas de organização (por exemplo, as narrativas circulares, em que uma mesma ação se repete com personagens diferentes; as cumulativas, em que a ação torna-se cada vez mais longa pela inclusão de novas personagens; as histórias que se encadeiam umas às outras ou que se inserem em uma história-padrão etc.) ou diferentes gêneros (as fábulas, os contos maravilhosos, as narrativas de suspense etc.). Essa diversidade se amplia à medida que aumenta a possibilidade de as crianças acompanharem a história sem se perder.
•    Permitem o contato com diferentes tipos de narradores, por meio dos quais os textos dialogam com as crianças leitoras, que, assim, ampliam seu conhecimento sobre as formas de ver e contar a realidade. Um narrador que tudo sabe sobre o que se passa na história, tanto dos fatos quanto do mundo interno das personagens (o narrador tradicional dos contos de fadas), permite uma perspectiva muito diversa daquele narrador intimista, que fala sob o ponto de vista de uma personagem. Essa variedade de perspectivas traz, desde cedo, a experiência de colocar-se frente aos fatos sob diversas óticas.
•    Aproximam os leitores de uma forma de comunicação na qual o que importa não é apenas o que se diz, mas a ?forma como se faz isso, o como se conta. Essa incursão na experiência estética, possível nos textos literários, favorece que os pequenos leitores se detenham para apreciar a sonoridade presente num jogo de palavras, a beleza de uma descrição ou a riqueza de uma ilustração, ou seja, permite o acesso a uma elaboração artística da linguagem verbal ou visual para expressar a realidade.
•    Dão espaço a um jogo de identificações com as personagens, num processo parecido com o jogo de faz de conta. O leitor é e, ao mesmo tempo, não é aquele sobre quem lê. Essa experiência favorece o aprofundamento da compreensão de sentimentos e ações humanas.
•    Os livros têm o poder de ampliar as fronteiras do vivenciado. A associação entre ler e viajar é conhecida. Pelas histórias, os leitores transportam-se a outros tempos e lugares, reais ou fantasiosos. Essa ampliação de horizontes pela literatura permite que o desconhecido seja experienciado de maneira menos assustadora, porque é mediado pela linguagem que organiza o que parece caótico.
•    Pelas histórias, o leitor tem contato com a tradição cultural, já que qualquer texto se relaciona ao que foi produzido antes, tem um vínculo com toda uma tradição de produções que o antecederam. Por meio da leitura dos livros infantis, as crianças iniciam, de sua parte e de forma inconsciente, seu próprio diálogo com essa tradição1.

A experiência literária permite ao leitor ampliar sua compreensão da leitura e do mundo de acordo com os diferentes aspectos apresentados. Envolver crianças e jovens nesse universo, promovendo sua educação literária, tem como objetivo maior a formação de pessoas e a construção da sociabilidade pelo contato com textos que expressam o modo como as gerações anteriores e contemporâneas compreendem e avaliam a ação humana e pela possibilidade de, por meio da linguagem, compreender a diversidade social e cultural.

Quando se trata de literatura infantil, é importante discutir também o valor das imagens, já que os livros destinados a esse público são, em grande parte, ilustrados. Em muitos livros, a construção do sentido ocorre pela interação entre as linguagens verbal e visual: alguns elementos da história virão representados nas imagens, enquanto outros serão expressos pelo texto escrito.

Essa interação permite o uso de enunciados verbais sucintos, que ganham novas dimensões quando interagem com as imagens que os acompanham. É comum que as personagens sejam descritas de maneira breve, mas tornem-se ricas por sua caracterização visual. A ampliação do papel da ilustração nos livros infantis, deixando de ser somente a tradução visual do que está escrito para estabelecer com o texto uma relação de complementaridade, permite que os leitores principiantes tenham novas possibilidades de acesso ao significado.

As experiências de leitura desses livros em classes de crianças que começam a se arriscar a ler sozinhas são enriquecidas ao envolver a discussão do que cada um compreendeu, pois as crianças compartilham o que leram num ir e vir do texto à imagem e vice-versa. 

Não há dúvida de que cada texto buscará tratar de uma temática específica, compreendida como relevante em determinado momento histórico. Por exemplo, hoje em dia, a aproximação a diferentes culturas é um valor presente em várias publicações, o que se justifica pela busca de uma cultura da paz e da tolerância. No entanto, é preciso superar as abordagens simplistas e moralizantes.

A literatura trata de questões centrais e humanas, mas o faz por uma abordagem que envolve, convida a participar dos dilemas vivenciados pelas personagens, lançando luzes a diferentes aspectos e possibilitando aos leitores novas experiências, amplas e profundas. É preciso um olhar cuidadoso para a seleção de obras a serem apresentadas. A linguagem empobrecida ou o tratamento simplista de alguns títulos não contribuem para a entrada dos pequenos no mundo literário e muito menos aguça sua vontade de ler.

Para identificar um bom livro infantil não é preciso ser crítico literário, basta buscar textos saborosos, enredos instigantes, imagens divertidas. Também é possível buscar textos instigantes, enredos divertidos, imagens saborosas. E é interessante que a leitura não se restrinja à criança: compartilhar uma boa história é uma experiência inspiradora em qualquer idade.

“Quando se trata de literatura infantil, é importante discutir o valor das imagens (...). Em muitos livros, a construção do sentido ocorre pela interação entre as linguagens verbal e visual”

Miriam Louise Sequerra é formada em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), coordenadora pedagógica do Colégio Santa Cruz e formadora de professores na Comunidade Educativa-Cedac


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