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Histórias na hora de dormir

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti

por Luiz Roberto Guedes

Vi ontem aquela mulher que não via há mais de 25 anos. Foi no setor de desembarque do aeroporto de Cumbica. Parecia uma família real, de regresso de uma excursão à Disneyworld ou a Nova Iorque. À frente caminhavam os Três Infantes, um rapaz e duas moças, ele com seus 17 anos, as meninas com 15 e 12, talvez.

O donzel tinha um queixo pontudo, visivelmente herdado da mãe; quando ela era minha musa e amada, eu sequer notava esse detalhe. As lolitas eram bonitas como a mãe, e a mais velha era de uma beleza impressionante.

Tive quase a mesma sensação de quando avistei, pela primeira vez, sua futura mãezinha, numa loja de discos, numa galeria do centro, num século distante. Em seguida vinha o casal imperial. Ela (madura e mais ostensivamente sexy) tinha o ar altivo de quem havia trazido 20 malas de compras na bagagem. O marido (calvo, corpulento, com blazer azul) tinha um olhar vigilante de ave de rapina, chegou a cruzar seus olhos com os meus, sem jamais imaginar quem havia sido eu no passado de sua dama. Pouco importava.

Ele parecia um próspero empresário, coisa que eu nunca seria, nem em três encarnações. Eu era só um escritor voltando de Roraima, onde fui ver a montanha verde, o rio Uraricoera, e uma aldeia ianomâmi — o cenário de minha próxima aventura.

Mas a história não começa assim. Começa em nosso quarto, em nossa cama, enquanto releio Dom Casmurro, e minha mulher pensa em voz alta, fumando mais um cigarro — sim, Maristela fuma, e fuma no quarto, apesar do assédio feroz das brigadas de antitabagistas imbuídos da missão de limpar o ar do planeta.

Um hipotético leitor machadiano poderia achar que esse também não é um começo adequado, mas eu lhe pediria que fosse paciente, lhe prometeria revelações, alguma surpresa, e cenas da intimidade de um casal de escritores. Portanto, estávamos na cama.

Maristela escreve romances policiais muito bons, já foi até filmada, coisa que não aconteceu com nenhuma de minhas aventuras juvenis. Sem mágoa, mera observação. O caso é que ela está escrevendo um “romance sério”, psicológico, sobre infidelidade conjugal. Quem trai é a heroína dela, que se chama Verônica. Essa história já se desenrola há um ano, e ainda não deslanchou de vez.

De noite, na cama, Maristela me relata as duas ou três páginas que escreveu durante o dia, e expressa suas dúvidas sobre a congruência de sua trama. Verônica ainda não traiu, mas vai trair. O que ela precisa é de um motivo, por mais casual que seja, e Maristela não está segura de ter trançado os fios da ação de maneira verossímil.

Quem sabe eu devia ter um caso extraconjugal pra passar pela experiência?, ela faz graça.

Solto uma risada e peço que, por favor, não faça isso, argumentando que temos uma vida muito boa, juntos.

Mas você não é exatamente apaixonadão por mim, ela se dispõe a escarafunchar o assunto. Queria ver a sua reação, se corresse o risco de me perder para outro.

Fecho o Dom Casmurro, e resolvo colaborar com aquele exercício de fabulação: Pode acreditar que eu ficaria arrasado. É sempre um trauma ser trocado por outro amante. Eu me sentiria um verme. Você já foi traído alguma vez?, ela acende mais um cigarro.

Se fui, não fiquei sabendo. Tive romances que acabaram, mas não sei se já havia outro em meu lugar, na hora da separação. Me conte uma dessas histórias, ela afofa os travesseiros e se recosta confortavelmente, para ouvir meu caso de amor infeliz.

Vou acabar contando essa história que ficou na minha cabeça. Nunca toquei nesse assunto com ninguém, nem cogitei escrever a respeito. Não tive ânimo para enfrentar o tema e lidar com sentimentos amargos: decepção, desgosto, revolta, nojo.

Meu silêncio se estende, Maristela me dá uma cotovelada: Nada de enrolação. Venha com a história. Por onde começar a falar de G., a mulher que revi no aeroporto? Dizer que a conheci com 19 anos, e que estivemos juntos por cinco anos, até que eu me convencesse de que éramos muito diferentes, e que ela não tinha o menor entusiasmo pela ideia de se casar com um sujeito que pretendia ser “escritor”? Para G., a essência do sucesso se exprimia em automóveis vermelhos, esportivos, e viagens à Terra de Marlboro.

Ela devia ser muito bonita, Maristela investiga. Sim: linda como uma pintura. Com uma grande cabeleira cacheada, e uma boca de Carly Simon. Mas eu fui me dando conta de que ela não era confiável, e que tinha um gosto lamentavelmente vulgar. Ela curtia tudo o que fosse espalhafatoso, excessivo, berrante. Uma vez, ela me apareceu com um vestido azul, de jeans, com manchas de oncinha. Achei “chocante”, no pior sentido.

Para dar outro exemplo do mau gosto da moça, recordo um episódio. Certa vez, fomos ao cinema para ver Purple Rain, o filme do cantor Prince. Um videoclipe comprido, em que Prince desfilava de macacão prateado, tipo James Brown, e cavalgava uma potente motocicleta, levando na garupa uma morena monumental, chamada Apollonia. Isso aconteceu pouco antes do nosso último e definitivo rompimento.

Uma noite, por acaso, vi G. passar na avenida, na garupa de uma moto, conduzida por um camarada que me pareceu mais novo que ela. Confesso que fiquei curioso em saber quem seria o cara, e até considerei a hipótese de ela tê-lo escolhido apenas para me ofender “postumamente”.

Mais de mês depois, eu estava na porta de um teatro, conversando com amigos, quando uma moto estacionou rente à calçada. Ela e seu pigmeu motoqueiro. Ficaram ali olhando o movimento, e G. não percebeu minha presença. Puxei um cigarro do bolso e me aproximei da moto. Pedi fogo ao rapaz. Ele acendeu meu cigarro na ponta do dele. Pude notar que ele tinha as unhas sujas, talvez de graxa, e tive um grande prazer com isso. O tipo era moreno, tinha cabelo enroladinho, pinta de bad boy. Achei que G. estava num processo de recuperar sua “adolescência interrompida” pelo nosso longo relacionamento.

Olhei para ela, empoleirada na garupa, e parecia muito constrangida com aquele encontro. Esperei que ela soubesse ler, na minha cara indiferente, meu completo desinteresse por sua pessoa e suas escolhas. Eu não me permitia mais sentir ciúme. Só raiva. E você nunca mais soube dela?, Maristela não me deixa pingar o ponto final.

Não. Até ontem, quando voltei de Roraima. Ela estava no aeroporto, com o marido e os filhos. Não me viu, nem poderia me reconhecer com essa barba grisalha, óculos de sol e chapéu de Indiana Jones.

Como ela está hoje em dia?

Hum. Uma burguesa supermaquiada. Com um arzinho besta de quem se orgulha de suas “conquistas” na vida.

Então o rapaz da moto foi só um lance passageiro. É, deve ter sido um rolinho, como se dizia. Mas eu tenho certeza de uma coisa: ela foi influenciada pelo tal filme do Prince. Porque arranjou um boyzinho motoqueiro com o mesmo tamanico e o visual do cara. Assim, ela podia ser a morenaça da garupa. Ridículo. Vai ver, ela nem se tocou desse nexo com o filme.

Maristela tapa um bocejo, apaga o cigarro, e aciona o ventilador do teto, para dissipar a nuvem de fumaça.

Quer saber de outra?, decido contar logo a história toda. O tampinha da motoca morava naquele mesmo prédio onde você cresceu. Lembra que te perguntei, quando te conheci, sobre um motoqueiro que morava lá, e que eu nunca mais tinha visto?

Lembro. O nome dele era César. Foi assassinado no litoral. Morto a pauladas. Foi um choque no prédio. Parece que estava envolvido com traficantes. A polícia nunca pegou os assassinos. Faz vinte e tantos anos. Você custou a acreditar, quando te contei. Achei até que ele fosse seu amigo. Não digo nada. Ponho o Dom Casmurro sobre o criado-mudo e desligo meu abajur.

Sabe o que eu acho?, ela me provoca. Que você ainda não abandonou essa mulher. Bobagem, Mari. Foi você que me pediu uma história. Escuta, tem uma crônica do Rubem Braga sobre “a mulher que vai trair”. Já leu? É brilhante. Prefiro não dizer a ela que senti uma ponta de satisfação quando recebi aquela notícia velha: que o bad boy tinha persistido na carreira — e que bateu de frente contra o seu destino.

 

Luiz Roberto Guedes é poeta, escritor e tradutor. Autor de Calendário Lunático / Erotografia de Ana K (Ciência do Acidente, 2000), Armadilha para Lobisomem (Cortez Editora, 2005), O Mamaluco Voador (Travessa dos Editores, 2006) e organizador de Paixão por São Paulo – Antologia Poética Paulistana (Editora Terceiro Nome, 2004).
 
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