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Cultura sob proteção

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti

O fenômeno do crescimento populacional nas grandes capitais caminhou por muito tempo ao lado do descaso com a manutenção das estruturas básicas oferecidas para a sociedade. Esse contexto conduziu à queda de nível histórico-cultural de espaços antes notados por exibir riquezas.

No entanto, alguns esboços de conscientização começam a tornar possível a crença em um novo quadro no Brasil. O incentivo à conservação do patrimônio cultural vem conquistando cada vez mais espaço nos projetos arquitetônicos e políticos; o que antes era pensado somente no âmbito local – construções de grande valor histórico – está ganhando abrangência, envolvendo as cidades como um todo. Em artigos inéditos, o prefeito de Ouro Preto (MG) Ângelo Oswaldo de Araújo Santos e o arquiteto Roberto Loeb analisam a questão.



Um gol na grande área
por Ângelo Oswaldo de Araújo Santos

O conceito de patrimônio cultural ganha dimensões cada vez mais dilatadas e abrangentes, tendo entrado no campo de percepção imediata dos habitantes tanto das metrópoles quanto das cidades de menor porte. Os moradores passam a compreender a importância da preservação de bens referenciais da cultura local e do resgate de uma qualidade perdida ou ameaçada, mas querem mais. Para além da proteção de determinados edifícios ou manifestações, é preciso que alguma coisa se faça em favor da cidade em si, do seu meio ambiente e da paisagem, e isso já se destaca com clareza no interesse coletivo.

No século 18, vereadores das câmaras das vilas de Minas Gerais editavam acórdãos para impedir iniciativas que “desformoseassem” o sítio urbano, atentos ao que definiam como a “competente formosura” da “fábrica da cidade”. Essas noções se fragilizaram, no correr do tempo, e foram levadas de roldão pelo fenômeno do inchaço urbano verificado no Brasil, nas décadas finais do século 20.

A explosão fez com que as cidades se degradassem e se enfeassem. Esvaziadas as zonas centrais, muitas vezes invadidas pela violência das drogas e entregues à ruína das edificações antigas, as cidades se expandiram atropeladamente, na correria entre favelas, condomínios de luxo e lixões, engarrafamentos e assaltos. Um cinturão caótico asfixiou os núcleos centrais e banalizou as periferias, comprometidas de igual forma em quase todas as cidades de norte a sul. Mais feia, a cidade violada ficou mais violenta.

O planejamento urbano emergiu como bandeira da tecnocracia, ainda na vigência do regime autoritário, e, mais parecendo uma das faces do arbítrio, era descartado até com pruridos democráticos por parte de populistas contumazes. Demorou a ganhar conteúdo no cotidiano dos municípios e de suas prefeituras, às voltas com a incontrolável expansão, a demagogia eleitoral e pressões de toda ordem. Atrasou-se também a adoção do plano diretor imposto pela Constituição Federal de 1988, pois a maioria das prefeituras encomendou pacotes apenas para guardá-los em proposital esquecimento.

As cidades tendem hoje a reprogramar seu crescimento, preocupadas com a recuperação de áreas deterioradas e de construções abandonadas ou subutilizadas, dando ênfase ao primado da qualidade. As noções de território e região iluminam novas posturas. O patrimônio cultural não é apenas privilégio de alguns poucos sítios imobilizados pela pobreza em que se achavam na primeira metade do século 20, tendo por isso guardado características do período imperial ou colonial. Torna-se instrumento de conscientização a respeito do desafio urbano e do desenvolvimento social e econômico local e regional. O estabelecimento de circuitos turísticos e consórcios estimula a ideia.

Em Salvador, nos anos de 1970, a sede do governo migrou para uma espécie de condomínio fechado, que se chamou “Nova Brasília”, longe do centro histórico e de seu entorno antigo. Desde então, a capital baiana mergulhou mais fundo no drama da conservação adequada de seu monumental núcleo-histórico. Belo Horizonte viu agora o governo do estado deixar o centro e se abrigar em outro “condomínio”, projetado por Oscar Niemeyer na região norte.

Enquanto isso, até a arquitetura niemeyeriana dos anos de 1950, típica da capital mineira, carece de proteção pertinente. No entanto, diversas iniciativas mostram a capital mineira empenhada em revitalizar a zona central, como o Museu de Artes e Ofícios na estação da Central do Brasil, o restauro do cineteatro Brasil e a implantação do centro cultural do Sesc no antigo cine Palladium.

A estação ferroviária Pedro Nolasco, em Vitória (ES) virou um dos mais importantes centros de arte contemporânea do país, com uma programação de padrão internacional. O Rio de Janeiro se empenha em recuperar a velha zona portuária, restaurando as construções há muito abandonadas e projetando intervenções de grande impacto. Os exemplos de São Paulo, nas áreas deterioradas do centro, também são empolgantes. Tornam-se numerosos, Brasil afora, os projetos de reutilização de prédios de interesse cultural ou de bairros vocacionados para atividades que melhoram a vida dos cidadãos e a qualidade urbana.

Do menosprezo às áreas de marcada feição patrimonial, passa-se à preocupação com a força econômica desperdiçada. O fenômeno não se liga somente à recuperação imobiliária ou à requalificação de vetores urbanos. A criação de Inhotim, um centro de arte contemporânea em Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte, evidencia a força determinante da cultura na transformação da realidade socioeconômica.

Nada havia, naquele sítio, que pudesse sugerir uma iniciativa desse porte.

No entanto, instalado o acervo notável de obras de arte e de jardins, na fazenda situada ao lado da cidade, imediatamente efeitos inusitados se fizeram sentir nas mais variadas direções. Minas Gerais e Belo Horizonte foram inscritas nos roteiros e agendas internacionais, com o aumento considerável do fluxo turístico. Milhares de pessoas vão a Inhotim. Empregos aparecem, negócios se multiplicam, e o turismo ganha, por meio do atrativo cultural, o impulso prestigioso de que sempre se ressentira no polo de Belo Horizonte.

Em perfeita sintonia, a força da arte contemporânea proporciona, ainda por cima, uma conexão direta de Inhotim com o colar de cidades históricas à volta da capital de Minas. Cresce sempre mais o número de turistas que associam a visita à vanguarda do século 21 ao mergulho no século 18, a tal ponto que uma rodovia será implantada entre Inhotim e Ouro Preto, por sobre uma estrada cheia de curvas.

Cidades importantes, contudo, ainda não conseguiram alcançar essa louvável estratégia. É o caso Juiz de Fora, MG, com o seu fabuloso Museu Mariano Procópio, de 1921. Com uma das mais significativas coleções do período imperial existentes no Brasil, o Mariano Procópio continua fechado, à espera de investimentos que facilmente se reverteriam em benefícios socioeconômicos para a cidade e o estado, incidindo diretamente sobre a cultura do país.

É essencial que se amplie o debate sobre o tema, a fim de que seja levado à mesa das decisões dos municípios, obtendo a chancela dos governos estaduais e federal, bem como o entusiasmo do setor privado. Os gestores municipais pedem planos de fomento e apoio para que possam concretizar essa linha de metas. No momento em que tanto se fala em preparar a cara do Brasil para a Copa do Mundo, é necessário que se tenha coragem para enfrentar o desafio urbano. E é pela via da cultura que compreendemos e podemos equacionar o drama da cidade brasileira, visando não apenas o gol efêmero de 2014, mas a conquista de um espaço melhor para viver.
“Tornam-se numerosos, Brasil afora, os projetos de reutilização de prédios de interesse cultural ou de bairros vocacionados para atividades que melhoram a vida dos cidadãos e a qualidade urbana”

Ângelo Oswaldo de Araújo Santos é jornalista, escritor e prefeito de Ouro Preto (MG)

 


Qual sonho, que motivação pode levar um homem a dedicar tempo, esforço e recursos para planejar e tornar realidade um museu no meio do mato e distante de qualquer centro urbano civilizado, e ainda ser reconhecido internacionalmente? E que sonhos e paixões podem levar um casal colecionador de arte a colocar recursos próprios para projetar e construir um museu aberto ao público, o primeiro do gênero no Brasil? Por que o país mais populoso e poderoso do mundo asiático resolve investir 150 bilhões de dólares para tornar a vida de seus cidadãos mais produtiva e acessível às oportunidades de trabalho e desenvolvimento?

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Cultura e Patrimônio
por Roberto Loeb

A seguir, três histórias escolhidas em tempos contemporâneos ao sabor de aparente acaso formam o contexto de algumas reflexões sobre Cultura e Patrimônio.

INHOTIM, EM MINAS GERAIS

A cerca de 60 quilômetros de Belo Horizonte e depois de uma hora e meia de viagem em ônibus, visitar Inhotim é sem sombra de dúvidas uma descoberta inesquecível. Em 2004, Bernardo Paz inicia em Brumadinho a instalação do Complexo Cultural dedicado à Arte Contemporânea, que é seguramente única no mundo. Numa área de cerca de 100 hectares de paisagem natural e belíssimos jardins com uma das maiores coleções brasileiras de palmeiras, o Museu Inhotim se distribui em cerca de 25 pavilhões independentes, ao quais se chega a pé, ou por meio de carros elétricos que percorrem toda a área.

Cada um desses pavilhões abriga instalações de artistas brasileiros, além de estrangeiros de mais de 30 nacionalidades. No mês de setembro de 2012, Inhotim inaugurou mais seis importantes espaços, dos quais o maior, com área aproximada de 3 mil metros quadrados, é dedicado à obra de Tunga, artista plástico nascido no Rio de Janeiro e conhecido internacionalmente.

O pavilhão de Lygia Pape, o galpão de Cardiff & Miller, os de Cildo Meirelles, Adriana Varejão, Doug Aitken, Matthew Barney e tantos outros são visitados anualmente por milhares de pessoas, brasileiros, estrangeiros, artistas, colecionadores, curadores, especialistas e cidadãos do mundo.

Além dos 100 hectares dedicados aos pavilhões e imensos jardins, Inhotim possui 300 hectares de reserva natural, constituindo, juntamente com o centro de pesquisas e formação de paisagistas, botânicos e jardineiros, um dos maiores centros de preservação de espécies, com aproximadamente 165 famílias botânicas, 851 gêneros e aproximadamente 3 mil espécies de plantas vasculares [que possuem raiz, caule e folhas].

A infraestrutura de acolhimento conta com diversos restaurantes, cafeterias, loja, centro de recepção e informação, monitores, guias e amplo estacionamento para visitantes. Já teve início, agora em 2012, a construção dos primeiros módulos de hospedagem, com todas as facilidades de hotelaria, que quando concluídos possibilitarão estadia de vários dias em Inhotim. Providência essencial, pois em menos de 2 a 3 dias é praticamente impossível visitar Inhotim tranquilamente.

Inhotim emprega centenas de pessoas da cidade de Brumadinho e se tornou importante agente de transformação social e cultural das famílias e comunidades da região. Cabe ao estado de Minas Gerais melhorar as condições de acesso e investir na transformação social, cultural e econômica dessa região, ainda pobre e pouco desenvolvida. As construções que se veem no caminho de acesso a Inhotim são pobres, maltratadas, e os pequenos sítios, inóspitos e desestruturados.

RIBEIRÃO PRETO

Dulcinha e José Carlos Figueiredo Ferraz, após anos de “colecionismo” de Arte Contemporânea e intensa busca de apoios e patrocínios, muitas vezes prometidos e não realizados, constroem o Instituo Figueiredo Ferraz para abrigar e expor a sua extensa coleção. Com recursos próprios, muita visão e generosidade, o pavilhão com Arquitetura Contemporânea é, com certeza, na sua escala e foco, o primeiro museu particular aberto ao público no Brasil. Exposições do acervo, exposições que vêm de fora, artistas convidados, cursos, palestras, publicações completam o programa permanente do Instituto ?Figueiredo Ferraz em Ribeirão Preto.

CHINA

Alarmados com os inquietantes índices de desaquecimento da economia, os chineses tentam reverter a desaceleração através de pacote de investimentos da ordem de 150 bilhões de dólares, noticia O Estado de S.Paulo em sua edição de 8 de setembro de 2012.

O governo chinês procura reativar a economia por meio de 60 projetos de infraestrutura urbana. Entre os projetos aprovados com prioridade, continua o Estado, estão 25 linhas de metrô e 13 rodovias que vão cobrir milhares de quilômetros em todo o país. O cuidado com o desenho urbano, a valorização da arquitetura e dos espaços culturais e a proteção do imenso patrimônio dessa sociedade milenar fazem prever com esse plano de investimentos um novo impulso de crescimento na China.

O que essas três histórias têm a ver com Cultura e Patrimônio? O entrelaçamento entre as forças políticas, econômicas, culturais e sociais pode ser indutor do desenho de uma urbanidade humanista e transformadora, com foco num mundo cada vez mais denso e povoado. O que podemos legar para as futuras gerações é patrimônio moral, ético, ambiental e construído. Essas e muitas outras “histórias” formam continuamente novas tramas de relacionamento social numa sequência e velocidade de aceleração crescente.

“O entrelaçamento entre as forças políticas, econômicas, culturais e sociais pode ser indutor do desenho de uma urbanidade humanista e transformadora, com foco num mundo cada vez mais denso e povoado”

Roberto Loeb é arquiteto, autor de projetos como a Nova Fábrica da Natura e o Centro da Cultura Judaica, em São Paulo