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Celebridade, uma religião?

A sociedade de consumo e a cultura pop alimentam a indústria das celebridades explorando a imagem de mito de cantores, atores, modelos e apresentadores de televisão. Na Índia, país em que o fanatismo pelo cinema é como o do brasileiro pelo futebol, os atores mais famosos, como Shah Rukh Khan, Amitabh Bachchan e Kajol, são venerados como deuses.

Existem inclusive templos construídos em homenagem a alguns deles. A adoração às celebridades na contemporaneidade pode ser comparada ao fanatismo religioso? Em artigos inéditos, a psicanalista Fani Hisgail e o sociólogo Waldenyr Caldas analisam o fenômeno.
 

A Multidão Solitária
por Waldenyr Caldas

No início do século 20 e até mesmo um pouco antes da Segunda Guerra Mundial, a comunicação entre os povos não era tão intensa nem instantânea como em nossos dias. A revolução operada pela tecnologia da informação com o uso dos computadores ainda nem existia como projeto.

Os chamados mass media, entre eles o próprio rádio, não tinham a força social e política, muito menos o poderoso apelo popular contemporâneo. Mesmo assim, os jornais, o cinema e as revistas, dentro dos seus limites para a época, davam conta do que se passava com a política e os políticos, os artistas, esportistas, escritores e até os acontecimentos policiais.

Assim, os veículos de comunicação desempenhavam satisfatoriamente o trabalho de manter a sociedade informada sobre si mesma, além de dar conta dos acontecimentos internacionais. Isso significa, em outros termos, que já havia algo muito parecido com as formas de comunicação atuais, mas com uma diferença significativa: o atual estágio da sociedade nada mais tem a ver com aquele período.

O que era semelhante muito rapidamente transformou-se em outra realidade. Vivemos hoje o que teóricos e estudiosos como Jean Baudrillard, Zygmunt Bauman, entre outros, chamam de Sociedade de Massa.

Com o advento desse novo modelo de sociedade, a força dos meios de comunicação de massa passa a ser determinante na dinâmica do cotidiano das pessoas e das relações sociais. Aliás, muito mais do que isso. Não por acaso, eles são vistos por boa parte dos estudiosos como o quarto poder.

Tanto podem informar com eficiência, o que, aliás, é sua razão precípua, quanto podem desinformar, pelo excesso de informações desencontradas e imprecisas. São muitos os exemplos empíricos, não apenas da força política dos mass media, mas também do extraordinário poder de persuasão e dissuasão que eles exercem sobre a sociedade.

Pois bem, é justamente nesse contexto de um trabalho persuasivo ou dissuasivo que vamos encontrar a construção do mito. Este é um fenômeno essencialmente identificado com nossa contemporaneidade. Cria-se a imagem da celebridade, do homem de sucesso, de pessoas com poderes que vão além da natureza humana, do ser humano perfeito, entre tantas outras formas, que o elevam muito acima dos padrões médios do cidadão comum.

Quase sempre se trata de uma pessoa carismática, ou seja, do líder carismático do qual falava o sociólogo Max Weber. Mas esse aspecto é apenas o início de toda uma trajetória de reverências. No decorrer do tempo, essa idolatria nos leva a ver aquela celebridade como algo sobre-humano, muito próximo da canonização ou, quando menos, de uma divindade atribuída por um segmento considerável da sociedade.

É evidente que essa imagem não surge do acaso, muito menos de uma fabricação vazia das pessoas que passam a divinizar essa celebridade. Importante registrar que esse grupo não está sozinho na divinização do mito, que, por si só, incorpora sob forma simbólica as forças da natureza e os aspectos gerais da condição humana.

E aqui há um elemento importante que estimula e consolida a crença popular: o mito se materializa na figura do grande ídolo cercado por uma multidão solitária, que parece procurar amparo e conforto psicológico. A solidão coletiva é uma das características mais fortes da chamada sociedade de massa contemporânea.

O próximo passo então é a divinização desse ídolo, que passa a dialogar diretamente, sem intermediários, com seus seguidores. Esse ritual é diferente do sistema de crenças que conhecemos e sabemos, ele existe no nível abstrato. A entidade divina nunca se materializou para os seus fiéis, e nem por isso deixa de ser crível a todos eles.

Diferentemente da celebridade, que, após ser divinizada por seus fiéis, permanece com eles materializada. Há muitos exemplos empíricos a serem citados sobre o que foi comentado acima. Certamente um dos mais impressionantes, senão curiosos, é o caso do culto ao ex-jogador da seleção argentina de futebol Diego Armando Maradona.

Na cidade de Rosário foi fundada, em 1998, a “Iglesia Maradoniana”. Seu fundador, Hernan Amez, criou essa entidade exatamente nos moldes da Igreja Católica, substituindo apenas a figura de Jesus Cristo pela de Maradona. Nela acontecem casamentos e batizados. Atualmente essa igreja tem aproximadamente 50 mil fiéis espalhados por 60 países, entre eles o Brasil.

Em 2006, o cineasta argentino Carlos Sorin dirigiu o filme cujo nome é O caminho de San Diego. Embora o gênero seja comédia, a figura de Maradona é levada a sério por Sorin. Em certo momento, em um diálogo do filme, uma das personagens diz o seguinte: “O povo precisa acreditar e isso não pode ser visto com ironia”.

Em 2008, o consagrado cineasta Emir Kusturica concorreu com um ?documentário em Cannes intitulado “São Maradona”, em que aborda a veneração ao grande jogador. No Brasil, os veículos de comunicação e, por extensão, o público transformaram a cantora baiana Ivete Sangalo em uma versão contemporânea da deusa Hator, uma das maiores divindades do antigo Egito, a deusa da música, da dança e da fertilidade.

Os exemplos dessa idolatria, desse culto exagerado às celebridades são muitos e sempre semelhantes. As motivações sociais e psicológicas que podem levar uma pessoa a essa condição é que devem ser minuciosamente pensadas. Uma coisa, porém, parece estar acontecendo, especialmente no tocante ao plano da produção cultural de massa: percebe-se hoje uma espécie de “cumplicidade” quase compulsória entre aquilo que os mass media oferecem como produto cultural e aquilo que o grande público recebe sem a ele resistir ou ao menos questionar.

O estímulo ao consumo visual, auditivo e material sempre foi elemento primordial na sociedade do capital.
Nesse aspecto, portanto, o chamado quarto poder atribuído aos meios de comunicação tem todo sentido. Grande parte da produção econômica do nosso país depende de um trabalho de publicidade e marketing para ganhar espaço no mercado interno e externo.

Esse elemento é fundamental na lógica da economia interna do capitalismo e se baseia na conhecida lei da oferta e da procura. Mas, esse mesmo raciocínio vale também para outras coisas, como, por exemplo, a política. Há muitos casos de candidatos que, sem nenhum projeto político e apenas com bom trabalho publicitário sobre sua imagem, foram eleitos. Assim se faz um político sem nenhuma competência e identidade com a coisa pública. Enfim, um impostor.

No caso da celebridade é um pouco diferente. Os mass media podem até trabalhar intensamente sua imagem, mas ela precisa ter um mínimo de competência naquilo que faz; caso contrário, seu destino será mesmo o ostracismo. Seja como for, o culto exagerado às celebridades, tudo indica, reside mesmo na “cumplicidade perversa” entre os mass media e o público. Nesse caso, prevalece a supremacia do mais forte, muito embora não exista a intenção deliberada de ludibriar seu parceiro e cúmplice.

“(...) o culto exagerado às celebridades, tudo indica, reside mesmo na ‘cumplicidade perversa’ entre os mass media e o público”

Waldenyr Caldas é professor de Sociologia da Comunicação na Universidade de São Paulo (USP) e autor de A Cultura da Juventude (Editora Musa, 2008), Temas da Cultura de Massa: Música, Futebol, Consumo (Arte e Ciência, 2000), entre outros.


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Celebridades: Modo de Usar
por Fani Hisgail

A audiência é a condição para haver um famoso! Sabemos que ninguém é capaz de deixar de lado alguns vultos que já foram referência de identificação e exemplos de valor e admiração em função dos feitos realizados. Quando uma pessoa se distingue pelo mérito, pelo saber e demais qualidades, o que está em questão é o reconhecimento e a admiração.

Em casos de políticos e estadistas que se destacaram em nome dos direitos da nação e de personalidades ilustres nas diversas áreas e especialidades, como fotógrafos, pintores, poetas, escritores consagrados pela produção artístico-literária ou músicos pela musicalidade, composições e melodias, entende-se que a arte implícita na obra é o resultado de uma mente criativa e singular. 

Foi no começo do século 20, com o cinema mudo e o aparecimento do rádio e da fotografia, acrescido do romance-folhetim, que o termo celebridade surge associado ao personagem desempenhado pelo ator. Charlie Chaplin, ator, comediante e diretor excepcional, influenciou o mundo e gerações com seu humor pastelão ao comunicar-se através da mímica numa época em que grupos de imigrantes chegavam aos Estados Unidos.

O personagem que o notabilizou foi o vagabundo, no filme que agradou multidões com o andarilho maltrapilho com sapatos grandes, chapéu-coco, uma bengala de bambu e um bigode de broxa. Mas o que saltava aos olhos dos espectadores era como se exprimia por gestos refinados de um cavalheiro e um mestre ao transpor as barreiras da linguagem quando transmitia a sua mensagem.   

Seguida da televisão e, mais recentemente, da internet, a concepção que reina e os significados dados à palavra celebridade dos quais a mídia se vale distanciaram a recepção do sentido inicial que a cultura das massas criou para o entretenimento e para a arte. No âmbito das celebridades factoides e efêmeras, os elementos que operam na engrenagem da fama e do estrelismo contam com a seleção da informação e o apoio de todos os que estão envolvidos com o mercado consumidor de ícones populares.

As celebridades, no contexto atual, são exemplificadas por apresentadores de TV, atores de novelas, jogadores de futebol, modelos de moda e, até mesmo, pessoas simples que ganharam notoriedade em razão de alguma injustiça ou comoção social. Figuras que protagonizam os ideais projetados de um público espectador, ávido por heróis que representam tipos de aparência pessoal com respeito à moral, ao caráter, ao dinamismo e à coragem, as atitudes positivas perante as adversidades da vida, além do que é próprio da cultura do povo e os sentimentos da massa.

As campanhas de marketing do mercado consumidor de celebridades exploram ao máximo a fronteira entre a privacidade e a exposição íntima como espetáculo. Os artefatos produzidos nos celebrity shows, nas revistas de fofoca, programas de auditório, novelas e telejornalismo, além das redes sociais na internet, são imagens com que o público mais simpatiza, almejando ficar mais parecido com o que foi visto.

A associação entre o que a imagem impõe com conteúdos estéticos e o consumo de moda íntima feminina – lingeries, sutiãs, calcinhas e camisolas – e produtos de beleza para o corpo e o cabelo – xampus e condicionadores, hidratantes e esmaltes de unha – são corriqueiras. Gisele Bündchen, Xuxa, Angélica, entre outras mulheres, desenvolveram a própria marca ligada à autoimagem como referência de saúde e forma esbelta.

Jogos de espelhos, miragens que evocam promessas de juventude e beleza; o corpo e a pessoa assumem um estatuto central no processo de identificação com o Outro perfeito. Com o seu ego ideal estressado entre a imagem virtual produzida pelas mídias e a cruel dureza das percepções desagradáveis que se tem sobre si, o espectador titubeia e anseia por fórmulas que evitem a sensação do mal-estar deixado como resto. 

O anseio da massa busca se identificar com os traços e as qualidades do ídolo, incorporado como ideal do ego segundo os modelos mais variados. A confluência entre o sujeito e o objeto a ser alcançado é evidente nos casos, por exemplo, de ídolos já falecidos – Michael Jackson –, e as pessoas que o imitam nos gestos, na dança e na aparência física, podendo reproduzir a devoção e a abnegação.

O culto que se presta ao famoso mira na direção da idolatria servindo de espetáculo ao famigerado público. Entretanto, os shows de entretenimento e diversão podem servir de bálsamo para o grupo social que se alimenta desse mercado.

Há também aqueles indivíduos que conseguem cativar o grupo e se apossar da confiança e da simplicidade do povo, tais quais os enganosos gurus que pregam falsos dogmas. Com frequência, os mais vitimados carecem de discernimento ou conhecimento desses perigos. Os pobres, os doentes e as crianças, assim como os idosos, estão mais suscetíveis aos abusos da exploração e da salvação do pecado, perpetuado pelo fanatismo e pela intolerância. 

A ilusão de que há uma cabeça que detém um fascínio sobre os fiéis lidera as estruturas desses grupos. Nesses casos, a audiência nutre por longo tempo a veneração da figura, da imagem que evoca o semblante do ser, apoiada nos signos de uma cultura de negócios, com a intenção de tornar os ?fiéis servos voluntários. Essa aparelhagem participa da crença em que a identificação surge como expressão de um laço social, porém manipulado pelos interesses do mau-caratismo de algumas pessoas.

Por fim, todo cuidado é pouco e as aparências enganam. Assim como o imaginário coletivo fascina os olhos da recepção, a audiência sustenta e exalta a ilusão de completude. Contudo, apesar das miragens, o gosto amargo do real permanece, para impor uma certeira realidade, a de que envelhecemos, enquanto projetamos naqueles que são celebrados os hologramas da nossa consolação.

Fani Hisgail é psicanalista e doutora em Comunicação e Semiótica. Autora de Biografia: Sintoma da Cultura (Hacker Editores, 1997), Pedofilia: Um Estudo Psicanalítico (Iluminuras, 2007), entre outros