Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

O bacalhau

O episódio mortificou-me o espírito. Sim, mamãe, domingo almoçarei com você. Nota solitária ouvida antes do tema sinfônico, o bastante para orquestrar a tempestade e a tormenta de tempos atrás: mas eu não vou, não seria capaz.

Por tão pouco um ânimo belicoso e eu, de minha parte, disposta a mostrar quão mal polida seria dali para frente a nossa relação. O sentimento em mim avivando-se com o sinal de um laço trivial na rotina de qualquer família. Contudo, eu não iria em hipótese alguma. De maneira que Mario por sua vez encontraria uma grande resistência.

A ideia repetia-se para mim soprando a brasa do ressentimento: evitar aquele encontro. Marta não havia convidado meu pai para a festa de 70 anos dela e agora eu pretendia amputá-la dos almoços com minha família – neste final de semana comemoraríamos em casa o aniversário dele e a Páscoa. Macerada pela imaginação ocupada em tecer planos, à noite, era eu quem estava vencida e experimentava a mais completa prostração.

Naturalmente, aos olhos de qualquer um, seria no mínimo nebuloso o motivo pelo qual aquilo poderia ter alguma importância. Não saberia contar em detalhes os lances um a um: não me lembro. O emaranhado de sentimentos em veios sucessivos entre mim e Dora erodiu a situação por si mesma barroca. Só sei que fui despencando aos poucos daquelas pretensões, enquanto minhas ideias fermentavam em graus mais e mais elevados: sei do que sou capaz.

Marta estaria sozinha naquele domingo. Mas, no atormentado sistema de honras e ofensas, era a última pessoa que eu gostaria de convidar. A família toda ia viajar, exceto Dora e Mario. E seria cruel não fazê-lo. Marta viria, é claro – com o que uma vontade foi vencida, mas não derrotado o rancor.  

O capricho com que Marta prepara as refeições acostumou-nos a um padrão ímpar de sabores etílico-gastronômicos. Ademais o apetite é um desconforto que clama por ser atendido. Mas não foi intencional a leve dependência que criou em todos nós àquela zona de conforto para a qual tendíamos naturalmente e em que generosa ela saciava a nossa evidente adição.

E, neste quesito, o que em mim deseja desgarrar-se costuma vir em ondas quase puritanas – cereais integrais, carnes magras, saladas sem salamaleques – que recusam a gula adiposa, mas natural, do alimento apetitosamente bom e de alegria inocente que eu mesma era incapaz de servir.

Um bem-estar difuso emanava daquela manhã. A mim caberia preparar a receita de bacalhau, não sem um sabor de desagravo. No sábado, consegui as postas exatas na banca do mercado em que até hoje somos fregueses. É provável que não as tenha demolhado o bastante. Na ocasião, lembro bem, eu fazia resenhas para uma revista mensal que, por um breve período, cobriu o melhor da cultura em São Paulo.

Na indecisão entre dois volumes a comentar no número seguinte, uma predisposição qualquer me fizera sugerir A expressão das emoções no homem e nos animais. Fui voto vencido, e lia não sem alguma dificuldade a autora búlgara bastante prestigiada. Nada daquilo parecia plausível, mas estava imersa de fato em intrincadas elucubrações, dessas que pretendem inferir das mais estranhas patologias algum conhecimento indispensável para tentar libertar a alma humana.    

Dora tinha então uns 15 anos. Da posição elevada e especial em que havia sido colocada, demonstrava prazer em retribuir o afeto incondicional que Marta nutria por ela. Talvez Dora apreciasse este comentário frequente: eram parecidas. Marta era uma mulher grisalha e de olhos suaves, exceto quando espontâneos os músculos das pálpebras inferiores contraídos remodelavam seu rosto.

Num brilho de pérolas negras, adornavam as bochechas de Marta, rosadas então por um sorriso tendencioso que lhe desabrochava na face, especialmente quando tinha diante de si um dos seus. Sim, aquilo era uma prova patente da seleção por parentesco.

Expressão clara de sentimentos de reciprocidade, a dieta correta de sua gentileza instrumental não conseguia mais esconder o afeto fictício de Marta pelos outros. E a providencial inconsciência com que envolvia numa rede prestativa de ternura a todos por igual, acusava de pronto qualquer reação amarescente como pura ingratidão.       

Admito minha maneira pendular de, ora reconhecer as dívidas que tenho com ela por seus cuidados com o meu bebê desde que voltara ao trabalho, ora ansiar loucamente por me ver livre de sua tutela, conquistar autonomia. Talvez o meu temperamento recluso – e uma ponta de inveja – forçasse meu desejo encarniçado de emancipação.

Pressentia que o melhor era fugir do centro de gravidade que Marta exercia e criar no círculo de minha própria família o eixo que, por sinal, deveria agora estar em mim. Mas os traços austeros de minha rotina lançavam sobre esses planos a mesma sombra das coisas feitas por obrigação. De alguma maneira, eu estava longe de conseguir o magnetismo físico e a clareza espiritual que uma revolução desse tipo requer.

Pois bem. O dia amanheceu chuvoso. Arrumei a mesa com cuidado e imaginei o lugar em que cada convidado sentaria. Haveria duas pessoas na cabeceira, cadeiras adicionais foram buscadas pela casa. Ao menos não estava calor, e a falta de tapetes, de almofadas que privavam o meu ambiente da maciez que se espera de estofados não sobressaia demais.

O aperitivo já estava servido e os queijos em seus veios azulados inspiravam certo temor. Marta foi a última a chegar. Abri o portão com um guarda-chuva, mas ela em passos ligeiros protegeu-se sob o beiral. Segurava uma caixa em que trazia uma sobremesa. O bem tem crédito e a ele somos sempre receptivos. Meu olhar tentou se redimir dos rumores de coxia. Mas o céu estava opaco e só os humores de vinho relaxavam um pouco a minha tensão.

O mau tempo anistiava Marta imediatamente. Mas a conduta dela acendia em mim uma impressão muito familiar: não sem alguma gentileza, ela passa rápido por alguns, como se percorresse um corredor humano, mas indiferente; porque algumas pessoas são meramente os meios a pavimentar a via de alvos e metas verdadeiras, aqueles a quem ela efetivamente dirige o seu amor.

Sentamos à mesa, enfim. Eu, uma intermediária, havia sido avara nas natas e por conta disso fora forçada a exagerar no tempo para o gratinado. O Bacalhau, de fato, estava um bocadinho salgado, talvez ressecado. A receita parece muito boa.

Sim, as regras valiam a pena, era só uma questão de aprimorar-lhe o preparo, ser generosa com as mãos e o tempo, fazer-se canal para um fluido em seiva saborosa que todos os vivos precisam mandar para dentro de si algumas vezes ao dia, fazendo de tamanhas disparidades a substância mesma de cada um. Eu por minha vez mastigava aquelas fibras e percebia partículas de amido que desciam fácil por minha garganta, conduzidas por algo que bem poderia ser um mingau.

Havia pedaços sensíveis de cheiro verde e os talos picavam minha língua. Alguém garantiu que o cheiro estava ótimo, mas até isso minha crônica anosmia impedia de avaliar. A torta trazida por Marta, em compensação, superava até a mais exigente das expectativas: era simplesmente deliciosa em sua camada crocante, recheada com uma massa úmida de chocolate meio amargo, que trazia apenas na cor uma doçura discreta, longínqua, que antigamente só na Bélgica se costumava encontrar.

Trouxe especialmente para você, Dora... sei que você adora. As duas estavam sentadas lado a lado, e compunham na mesa uma fase de beleza única e esplêndida, que o sabor da sobremesa insistia em enfatizar para a minha miséria culinária, cercada por aquela família homogênea e dependente quase por inteira de diferentes pares de óculos. Desde então firmei melhor a minha própria disposição: não mais do que um almoço por mês em minha casa. 

Maria Cecília Gomes dos Reis é escritora e tradutora, autora da tradução do texto de Aristóteles De Anima (Editora 34, 2006), pelo qual recebeu menção honrosa no Prêmio União Latina de Tradução Especializada, e das ficções O Mundo Segundo Laura Ni (Editora 34, 2008) e A Vida Obscena de Anton Blau (Editora 34, 2012).