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O cineasta bem-aventurado

Neville D’Almeida foi o cineasta que mais sofreu censura durante a ditadura militar. Rotulado como maldito, destacou em seus filmes vários assuntos da realidade que ainda hoje são atuais. Dentre eles a violência e marginalidade carioca, o consumo de drogas e a liberdade sexual da mulher brasileira.

“Todas as vezes que vejo Rio Babilônia, que está em cartaz há 12 anos na TV aberta e fechada, tenho uma grande emoção com o impacto daquelas cenas e vejo também que o filme está totalmente atual”, afirma. “O que é gratificante, porque às vezes você faz um filme e em poucos anos ele está superado.”

Neville dirigiu grandes atrizes, como Sônia Braga em A Dama do Lotação (1978), a terceira maior bilheteria nacional, Regina Casé em Os Sete Gatinhos (1980), ambas histórias baseadas na obra de Nelson Rodrigues. E Vera Fischer em Navalha na Carne (1997), adaptação da obra de Plínio Marcos.

A extensa programação do Sesc Santo Amaro dedicada à obra do cineasta, chamada Neville D’Almeida – Além Cinema, destaca a montagem da peça Navalha na Carne, com direção de Rubens Camelo; o show do músico André Abujamra, que tocará as músicas do filme A Dama do Lotação; e a instalação Cine Lotação, um ônibus que expõe vídeos e fotos de registros históricos do cineasta. Serão projetados, entre outros filmes, Matou a Família e Foi ao Cinema (1991), Rio Babilônia (1982), Jardim de Guerra (1970) e o inédito Mangue Bangue (1971), que Neville produziu após conhecer Hélio Oiticica (artista plástico). Como parte da homenagem, ocorre o lançamento do livro Neville Além Cinema. “Não é uma biografia, mas uma compilação retrospectiva de diversos trabalhos nas artes visuais e da minha trajetória artística”, explica o cineasta.

 

Meus filmes foram feitos com um envolvimento muito grande. Todas as vezes que vejo Rio Babilônia, que está em cartaz há 12 anos, na TV aberta e fechada, tenho uma grande emoção com o impacto daquelas cenas e vejo também que o filme está totalmente atual. O que é gratificante, porque às vezes você faz um filme e em poucos anos ele está superado.

O cinema é uma arte cativa de várias barreiras e limites, cheio de regrinhas nos contratos, com palavra final no corte e para escolher um ator. Quando faço o roteiro, penso na realidade, que é universal. Meu próximo projeto é o filme A Dama da Internet, que é uma sequência de A Dama do Lotação. Não é uma cópia do anterior, realizado no final dos anos de 1970, com a libertação sexual da mulher. Essa versão terá a postura de vingança ancestral por terem sido oprimidas, mas que hoje assumem o controle do desejo. O mais importante em um roteiro é o conceito, é em cima disso que crio as histórias.

Tive sorte de conhecer pessoas tão talentosas e de trabalhar com elas. Sempre admirei a liberdade do Nelson Rodrigues na escrita. Não existia essa liberdade no cinema, por isso pedi autorização para usar o Dama do Lotação. Era uma amizade poética e artística. Fiz questão de convidá-lo para acompanhar todos os dias de filmagens, durante os quais ele conversava com os atores. Nelson falou para Sônia Braga: “A sua personagem é como um salto triplo sem rede. Se você errar, se esborracha no chão”.

Cinema e arte

Conheci o Hélio Oiticica numa sessão fechada do meu filme Jardim de Guerra, que não podia ser exibido. Foi o Zé Celso Martinez Correa (ator e diretor de teatro) que o convidou. Ele nunca havia visto no cinema o uso de pôsteres do Trotski, Che Guevara, Mao Tsé-Tung, dos Beatles, Jimi Hendrix, como eu fiz.

O pôster é a democratização da arte. Aquela pintura que só você tem no seu castelo e seus convidados podem ver, você tira um milhão de cópias e todos podem ter em casa. Ficamos a noite toda conversando na casa dele e decidimos unir o cinema e as artes plásticas. Ele queria fazer cinema e eu queria fazer arte. Existia uma oposição contra a gente muito grande, tanto da ditadura como dos artistas tradicionais que não aceitavam a nossa linguagem. O Hélio me levou para conhecer o mangue e alguns meses depois de ele ir para Nova York fiz o filme Mangue Bangue.

Em 1964, quando fui aos Estados Unidos estudar cinema me apresentaram o Jorge Mautner (cantor e poeta). Nessa época ele tinha escrito o livro Deus da Chuva e da Morte (1962), que eu já admirava. Foi um encontro fantástico porque tínhamos uma visão ampla de teatro, artes plásticas, música brasileira e erudita, filosofia e do cinema mundial. Nós do Brasil temos uma cultura cinematográfica muito superior à dos norte-americanos, que têm uma alienação total.

Liberdade secular

Não sou o cineasta maldito, sou o cineasta bem-aventurado. Fui chamado assim porque fui o censurado mais proibido da história do cinema brasileiro. Ser o maldito não foi um rótulo que aceitei, não vesti o rótulo como uma capa para agir como o rei dos malditos. Fui maldito no outro sentido que a palavra tem, de mal dito, que a sociedade condena. Falam sem me conhecer, sem ver meus filmes e sem dar chance de defesa.

Rio Babilônia teve 18 minutos de cenas cortadas. Era por causa das cenas de sexo e do discurso do sexo. Renoir não pintava mulheres nuas? Gauguin não mostrava aquelas mulheres lindas do Taiti? Isso é arte. Isso é liberdade secular. E aqui no cinema se tem uma postura careta, religiosa, repressora, que diz o que pode e o que não pode mostrar.

Como um artista de verdade vai aceitar isso? A nudez não é sacanagem, não é pornografia, é arte, é a uma criação de Deus que pode ser vista de várias outras formas. A mente obscena e primária não vê o nu dessa forma. É necessário ter uma mente mais aberta. Hoje em dia é muito mais careta, existe um tipo de autocensura.

Rio Babilônia foi interditado no processo de censura praticamente um ano, depois que um conselho superior de censura que o liberou com 18 minutos de corte.

Eles queriam a interdição total do filme por mostrar o que estava acontecendo no momento, a corrupção, a decadência, e a liberdade sexual, que era muito importante.

Filme profético

Amo o Rio de Janeiro, moro lá há 45 anos, mas adoraria fazer filmes em São Paulo, São Paulo Babilônia ficaria lindo. Mostrei uma sequência de épocas cariocas e diria que alguns dos problemas sociais são mais agudos hoje do que eram naquela época.

Houve um aumento no número de favelas. As autoridades não tiveram a capacidade de organizar esses problemas, e se não forem organizados agora, daqui há 20, 30 anos vão perder o controle. Tem uma política de tomar as favelas de volta para a população, mas isso é só o princípio. É necessário um trabalho de urbanismo e engenharia.

As coisas que aparecem em Rio Babilônia aparecem nos dias de hoje. O filme é profético. As drogas, o problema da Amazônia, a corrupção, a sexualidade, o crime, e até a expansão populacional quando mostro uma maquete de um prédio nuns dos últimos planos do filme. Até a excursão de turistas na favela tem no filme.


“No cinema se tem uma  postura careta, religiosa, repressora, que diz o que pode e o que não pode mostrar. [...] A nudez não é sacanagem, não é pornografia, é arte [...]”

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