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O búfalo ainda na lista de espera

por Miguel Nítolo

É comum que ele seja confundido com o boi, dadas as semelhanças. Da mesma forma, muitas pessoas logo pensam no bisão quando seu nome é mencionado – comparação que não encontra paralelo na realidade porque um é selvagem, tem a parte anterior do dorso coberta por longos pelos e vive, em especial, nas pradarias americanas, ao passo que o outro, de pelo fulvo e ralo e pele preta, não demonstra ferocidade, podendo, portanto, ser criado no ambiente doméstico. Meses atrás, ao começar a contar a história de Rodrigo, interpretado pelo ator Gabriel Braga Nunes, a trama “Amor Eterno Amor”, da Rede Globo, ajudou a levar aos telespectadores um pouco mais de esclarecimento sobre o búfalo, animal que, a despeito do desconhecimento de boa parte dos brasileiros, pode ser encontrado de norte a sul do país. Na novela, Rodrigo faz o papel de um domador de búfalos, no Pará – não por acaso o estado com o maior rebanho desse mamífero ruminante –, tendo, em cena, conduzido manadas com centenas deles.

Originário da Ásia e introduzido no Brasil provavelmente em fevereiro de 1895 – foi trazido pelo criador paraense Vicente Chermont de Miranda, dizem os historiadores –, o animal está começando a ganhar maior divulgação e, em consequência, a despertar o interesse do consumidor por sua carne e seu leite. Segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), estatal envolvida com a implementação da bubalinocultura no país, Miranda comprou a primeira leva de búfalos do conde italiano Rospigliosi Camilo, de Roma, mas o embarque aconteceu no porto francês de Nantes, onde, não por acaso, se achava atracado o vapor de nome Brasileiro.

De lá para cá, o número de búfalos cresceu, mas não avançou tanto quanto poderia. De acordo com as estatísticas oficiais, o país tem em torno de 1,2 milhão de cabeças (a despeito de as associações de criadores informarem que há mais de 2 milhões), um rebanho pequeno diante da quantidade de bois, ao redor de 209 milhões. Como justificar a abissal diferença entre o número de bois e de bubalinos em território brasileiro? “Falta união e organização à cadeia produtiva, além de um trabalho de marketing que fosse capaz de levar às pessoas informações sobre a existência da espécie, mostrando que ela pode ser uma alternativa tanto para a produção quanto para o consumo de alimentos saudáveis, de qualidades nutritivas e organolépticas”, sugere André Mendes Jorge, professor adjunto da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus de Botucatu. “A escassez de parcerias entre universidade, produtores e indústria, visando o desenvolvimento de pesquisas que auxiliem no conhecimento e na produção racional do animal, tem sua parcela de culpa”, argumenta Caroline de Lima Francisco, doutoranda em zootecnia pela mesma escola.

Marília Viviane Snel de Oliveira, professora nos cursos de medicina veterinária e zootecnia das Faculdades Integradas (UPIS), de Brasília, salienta que “há muito preconceito e muita ignorância em relação ao búfalo”. Ou, como diz Otávio Bernardes, vice-presidente da Associação Brasileira de Criadores de Búfalos (ABCB), a falta de conhecimento sobre a exploração da espécie em ambiente tropical e o baixo interesse das agências de fomento pelas pesquisas na área também contribuíram para abrir o fosso entre as duas raças. Mas não é só. “Do ponto de vista mercadológico, a elevada dispersão dos rebanhos leva a escalas reduzidas de produção, dificultando a organização de cadeias comerciais relevantes”, ressalta Bernardes, que também é secretário-geral da Federação Americana de Criadores de Búfalos.

O “x” da questão

De fato, a escala de produção, especialmente para o mercado da carne, é um grave entrave para a popularização do produto, simplesmente porque se o consumo aumentar a oferta não vai conseguir acompanhar a demanda. E isso já está começando a acontecer nos estados do sul, especialmente no Rio Grande do Sul. As pessoas estão descobrindo – de acordo com criadores e entidades de classe do setor – que a carne de búfalo tem baixo teor de gordura e de colesterol em comparação com a bovina, uma notícia que pode ser confirmada diretamente no portal da ABCB (40% menos colesterol, 12 vezes menos gordura, 55% menos calorias, 11% a mais de proteínas e 10% a mais de minerais).

“Para colocar a carne nas redes de supermercados e nos açougues é necessário garantir a entrega o ano inteiro, em quantidade suficiente, o que não acontece na prática”, lastima a professora Marília. Ela diz que no tocante à comercialização dos derivados do leite de búfala a situação é outra, mais propícia para a bubalinocultura, a despeito da sazonalidade reprodutiva, com os partos concentrados numa mesma época, o que leva a falta do produto em outros períodos do ano. “A bem da verdade, essa é uma questão tecnicamente resolvida, cuja solução precisa ser mais difundida e assimilada pelos criadores”, esclarece Marília, que é doutorada em reprodução bubalina. “O Brasil, infelizmente, ainda tem poucos criadores de búfalos”, pondera.

Esse parece ser o “x” da questão. Diferentemente do que acontece com as grandes pastagens de bovinos, cujos rebanhos, muitas vezes, são contados às dezenas de milhares de cabeças, no caso dos búfalos ainda impera a modéstia, com plantéis que podem ter somente algumas cabeças ou alguns milhares de animais. Veja-se o exemplo do sitiante paulista Reinaldo Francisco Justo, que foi apresentado à bubalinocultura há menos de cinco anos. Ele começou com quatro búfalas, chegou a cem e hoje cria 30 animais, a maioria fêmeas, utilizando duas propriedades agrícolas arrendadas de 32 alqueires. “Confesso que fiquei em dúvida quando me ofereceram as primeiras cabeças, porque achava que o búfalo era bravio e destruidor de cercas.” Acostumado a criar bois, Justo se surpreendeu com a descoberta de que o búfalo tem praticamente o mesmo temperamento. “São mansos, calmos e tão maleáveis que quando recebem um abraço não reagem com agressividade”, informa. Encantado com a produtividade do leite de búfala na fabricação de queijos (rende mais que o leite de vaca), o sitiante revela que tem planos para aumentar novamente seu rebanho, com a triplicação do número de cabeças.

Na outra ponta surgem companhias do porte da Agropecuária Santa Rita, na ilha de Marajó, dona de mil cabeças de búfalos e uma história de sucesso em torneios leiteiros regionais e em premiações de cunho nacional, como o troféu The Best, nos anos 2008 e 2010, uma das mais expressivas láureas da pecuária brasileira. “Também produzimos matrizes e tourinhos para reprodução”, diz William Souza Filho, da Santa Rita. Ele conta que comercializa cerca de 500 litros diários de leite de búfala com laticínios paraenses e planta o milho que alimenta seu plantel no período de menor oferta de pastagem, vendendo o excedente de produção aos navios que transportam animais em pé.

Souza Filho ressalta que não aderiu à bubalinocultura por diletantismo. Muito pelo contrário, conforme ele mesmo relata, sua família, mineira de origem, está há quatro gerações no ramo leiteiro. “Morei até meados dos anos de 1970 no norte de Minas Gerais, onde meu pai criava gado da raça girolando, que produzia, diariamente, mil litros de leite que eram transformados em manteiga e queijo.” Assim que a família se mudou para o Pará, o búfalo entrou na vida dos Souza, que, em 1984, dispostos a investir no setor, compraram a Agropecuária Santa Rita. “Começamos de forma empírica, saindo atrás de animais bons de leite, primeiro na ilha, depois na região e, por fim, em outros estados, como Ceará e São Paulo”, conta Souza Filho.

Mais tarde, a Santa Rita deixou Marajó para se estabelecer em Nova Timboteua, a 140 quilômetros de Belém, às margens da rodovia PA 324. “Algumas dificuldades, entre elas as longas distâncias, motivaram a mudança.” Souza Filho explica que com pluviosidade média anual em torno de 2,5 mil a 3 mil milímetros, a região escolhida tem uma estação seca relativamente curta, entre setembro e dezembro.

Maior ilha fluviomarinha do planeta, localizada na foz do rio Amazonas e base territorial de vários municípios, Marajó foi, é e vai continuar sendo por um bom tempo a casa dos búfalos no Brasil. Não é possível afirmar com segurança quantas cabeças de gado há no lugar, considerando a existência de um desencontro de informações sobre os números da bubalinocultura. “Estimamos que mais da metade dos búfalos no Brasil se encontra no Pará, e também sabemos que o animal está presente em mais da metade dos municípios do estado”, afirma João Rocha, vice-presidente da Associação Paraense de Criadores de Búfalo (APCB). Mas, garante ele, parte considerável dos bubalinos de seu estado vive em Marajó.

Forte e rústico

Foi lá que, 117 anos atrás, Vicente Chermont de Miranda deu o pontapé inicial à criação do animal no país, um lugar que se revelou propício a esse tipo de negócio. Não há, em princípio, uma razão lógica para tanto, levando-se em conta a explicação dada pela Embrapa de que “os búfalos podem ser criados em qualquer local, tanto em terra firme quanto em áreas alagadas”. A realidade é que, segundo o criador Souza Filho, “o animal se deu muito bem nos terrenos encharcados da ilha de Marajó, que recebe chuva durante boa parte do ano”. Ou, então, conforme entendimento de João Rocha, “as variedades de gramíneas existentes na ilha e no baixo Amazonas contribuíram para o estabelecimento e a expansão da bubalinocultura, naquele imenso pedaço de chão”.

Rocha tem várias fazendas em Marajó: a Paraíso, no município de Cachoeira do Arari, dedicada à exploração de leite e ao fornecimento de bezerros de búfalos para engorda, a Paraíso III, em Salvaterra, voltada para a engorda, e a Campo Limpo, em Anajás, também para engorda (área arrendada). Além disso, no município de Abaetetuba, a 101 quilômetros de Belém, é proprietário da Paraíso II, onde faz a seleção e o melhoramento genético dos animais.

Forte e rústico, o búfalo é considerado, em Marajó, uma espécie de pau para toda obra, notadamente como animal de tração e de sela. E não são apenas as pessoas comuns que se valem das qualidades do bubalino como meio de transporte; também a polícia, como acontece no caso do município de Soure, que substituiu algumas de suas viaturas nos serviços de patrulhamento ostensivo pelo animal. São dez bubalinos, a “bufalaria” da PM, como são chamados, uma iniciativa da força pública local que data dos anos 1990 e só tem recebido elogios. “Nos alagados, só os búfalos conseguem seguir em frente e sem problemas, pois sua tração é muito forte, superior à do cavalo”, disse em recente depoimento um dos militares que passam boa parte do dia sobre os brutamontes fazendo a ronda na cidade.

O emprego do animal em atividades que fogem do convencional é uma particularidade quase que exclusiva dos estados do norte. Nos outros lugares, onde sua criação também é representativa, ele se presta, essencialmente, à produção de carne e leite. Há 50 anos, por exemplo, o búfalo chegou ao vale do Ribeira, em São Paulo, e dali se espalhou para outras partes do estado. “No ano passado, produzimos 621 mil litros de leite que foram comercializados em dois laticínios da região”, conta Luiz Carlos Portella, presidente da Associação dos Pecuaristas e Produtores de Leite (Proleite), entidade que reúne bubalinocultores dos municípios de Iporanga, Cajati, Jacupiranga e Barra do Turvo. A sorte da população de búfalos no vale do Ribeira, em torno de 26 mil cabeças (a maior do estado), está depositada nas mãos de 270 produtores. “Os associados da Proleite, na maior parte, são pecuaristas que tocam negócios em família”, diz Portella. Ele conta que a produção diária de leite na região, incluindo a oferta de associados e de não associados, gira em torno de 22 mil litros.

A expansão da bubalinocultura pode ser observada em todos os quadrantes, algumas vezes por iniciativa dos próprios ruralistas, noutras, estimulada por entidades governamentais que enxergam nesse ramo da pecuária um investimento recompensador aos empresários do campo. Pequenas empresas agrícolas dos municípios de Buerarema, Itabuna e Itapé, na Bahia, estão sendo motivadas a criar búfalos, como alternativa ao gado vacum, com vistas à produção de leite. Financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e operacionalizado pela Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola (EBDA), o projeto prevê a entrega de um macho e de duas fêmeas já em gestação a cada um dos participantes. “Por ora, estamos trabalhando com apenas duas propriedades rurais que faziam parte de uma lista de interessados e foram escolhidas com base em seu perfil e sua localização”, esclarece Antônio Vicente Dias, veterinário da EBDA.

Ele relata que os novos bubalinocultores conheciam o animal apenas de ouvir falar e não tinham informações sobre suas características, técnicas de manejo e vantagens sobre o boi. “O búfalo reúne grande potencial para ser inserido na agricultura familiar, sobretudo em regiões úmidas e subúmidas, como no caso dos municípios em que estamos atuando”, afirma Dias. Ele destaca que, “além de resistente a doenças, particularmente ao carrapato, o bubalino gera um esterco rico em nutrientes e, por assim dizer, um adubo de excelente qualidade”. O veterinário ainda ressalta que o leite de búfala tem valor de mercado superior ao da vaca por causa de suas propriedades – tem o dobro do teor de gordura, 30% a mais de proteína e quase 80% a mais de cálcio, segundo informações da ABCB.

Modernização

As vantagens financeiras do leite de búfala foram determinantes para que se implantasse no sudeste, com ênfase no estado de São Paulo, uma estrutura empresarial voltada para a industrialização específica de seus derivados. Acredita-se que a produção nacional seja de 90 milhões de litros anuais e que 150 estabelecimentos industriais estejam envolvidos com seu processamento. O crescimento do mercado de coalhada, manteiga, muçarela em barras e em bolas, queijo frescal e ricota levou a ABCB a criar, em 2000, um selo de pureza para atestar a qualidade do leite empregado na fabricação desses produtos. “Há criadores e laticínios que misturam leite de vaca ao de búfala”, explica Cláudio Varella Bruna, da ABCB. Ele relata que numa das coletas no varejo, realizadas pela entidade com a finalidade de encaminhar alguns produtos para análise, o “leite de búfala” continha 90% de leite de vaca. “As amostras são enviadas à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), à qual cabe dar a última palavra sobre a pureza do leite utilizado na fabricação dos derivados coletados”, esclarece Varella, que é proprietário de um laticínio e da Fazenda Vale Alto, no município paulista de Natividade da Serra, onde mantém um rebanho com 75 matrizes.

Muitas vezes o criador é levado a “piratear” o produto porque, conforme explicações de Otávio Bernardes, da ABCB, “o búfalo é uma espécie sazonal, isto é, sua reprodução tem relação com o período de luminosidade diurna”. As fêmeas entram no cio normalmente em dias mais curtos (outono e inverno) e, consequentemente, os partos são mais concentrados no verão. Esse fenômeno é tanto mais intenso quanto mais distante da linha do equador os animais forem criados. “Dessa maneira, em determinadas épocas do ano, cai de forma expressiva a oferta de leite bubalino, o que pode levar alguns produtores a misturá-lo com o bovino para dar conta da oferta, mesmo que isso comprometa a qualidade do produto”, diz Bernardes.

Sabedor das potencialidades do mercado de derivados do leite de búfala, um grupo de empresários do ramo de laticínios decidiu investir na modernização de suas instalações fabris. Motivados pela ABCB – que não se cansa de bater na tecla de que a produção brasileira de muçarela deve se orientar pelos padrões italianos, reconhecidamente os mais avançados do planeta na área –, sete laticínios estão mantendo contato com especialistas da Itália, o berço da muçarela de búfala. Recentemente, técnicos desse país estiveram no Brasil em visita a produtores de derivados de leite de búfala, quando puderam conhecer nosso selo de pureza e concluir pela viabilidade do sonho da ABCB. “Eles garantiram que é perfeitamente possível aos laticínios brasileiros produzir muçarela como se faz em seu país”, conta Varella. Na realidade, a principal diferença entre o queijo italiano e o brasileiro reside na consistência, uma vez que o primeiro é fresco, feito para ser consumido em até três dias, e o segundo, com prazo de validade maior, é mais seco.

O Búfala Almeida Prado, de Bocaina, a 300 quilômetros de São Paulo, pertence a uma lista de importantes laticínios de forte atuação no mercado. Fundado em 1980 pela empreendedora Maria Cecília de Almeida Prado e um dos primeiros a adotar o selo de pureza da ABCB, ele beneficia 5 mil litros de leite por dia, volume que deverá dobrar em breve, segundo a engenheira-agrônoma Veridiana Almeida Prado, diretora executiva da empresa, filha de Maria Cecília. Instalado na Fazenda Rio Pardo, o laticínio tem produção própria de leite, mas também o adquire de criadores de búfalas da região, em especial dos municípios de Bariri e Itaju. “Para cuidar dos animais e manter o laticínio em funcionamento, empregamos 30 pessoas”, relata Veridiana, informando que a Rio Pardo destina às suas búfalas 200 hectares, “numa região onde a terra vale ouro por causa da plantação maciça de cana-de-açúcar”.