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Eles não foram ao Municipal

por Cecilia Prada

A Semana de Arte realizada em fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, ainda está por aí, em celebrações diversas, atestando, 90 anos depois, que não foi somente um extravasamento de irados temperamentais juvenis, como muitos pensaram. Tampouco foi um evento programático que servisse para, como num passe de mágica, transformar do dia para a noite o cenário cultural do país. O modernismo brasileiro é estudado, hoje, num enquadramento mais amplo a partir de influências europeias presentes entre nós desde a virada do século 19 e, principalmente, após as exposições de Lasar Segall, em 1913, e de Anita Malfatti, em 1917, ambas em São Paulo – esta última considerada “o estopim do modernismo”, dado o escândalo que provocou na modorrenta Pauliceia de então.

Reconhecida como um “ponto de encontro” de artistas plásticos e escritores de vários naipes, mas que visavam a introdução de uma “nova expressão”, a Semana tornou-se, nas décadas subsequentes, objeto de acesa controvérsia e alternâncias extremas de avaliação crítica. Em 1942, a revista literária Dom Casmurro declarava-a “morta”. E Pietro Maria Bardi dizia que no cinquentenário do evento, em 1972 – ano em que também se comemoravam seus 25 anos à frente do Museu de Arte de São Paulo (Masp) –, havia tido muita dificuldade para organizar uma primeira mostra alusiva à Semana, devido a um difuso sentimento de vergonha ou de desvalorização em relação a ela.

Perdura ainda hoje o questionamento de sua importância, opondo duas correntes. De um lado o mito, o endeusamento desvairado de personalidades, a campanha subjacente ao impulso de procurar, e obter, uma hegemonia econômica paulista sobre a concorrência tradicional do Rio de Janeiro. De outro, a ferocidade de uma crítica ideológica que pretendia fazer tabula rasa da inegável revolução cultural, tratando-a como mera encenação burguesa apoiada pela “direita retrógrada” e que desaguaria, inclusive, na revolução constitucionalista de 1932 – como um movimento que, segundo palavras da professora Maria Eugenia Boaventura, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no artigo “A Semana de Arte Moderna e a Crítica Contemporânea”, “a pretexto de pressionar o governo central e exigir a democratização e a liberdade de imprensa, deu vazão ao ímpeto separatista dos paulistanos”.

Para acender a controvérsia, contribuiu a própria autocrítica de alguns participantes da Semana. Manuel Bandeira, considerado sem mais como “participante”, na realidade negou-se a tomar parte no movimento, declarando que os jovens organizadores eram contra o parnasianismo e outras formas de arte que ele prezava. Mandou, porém, seu poema “Os Sapos”, escrito em 1919, para ser lido no Municipal – o que aconteceu entre vaias da plateia. A pianista Guiomar Novaes, que participara com um recital em que tocara Villa-Lobos e clássicos como Debussy e Gottschalk, arrependeu-se publicamente, pouco depois, tendo realçado que, “em virtude do caráter intolerante que assumiu a primeira festa de arte moderna em relação às demais escolas de música, das quais sou intérprete e admiradora, não posso deixar de declarar meu profundo desacordo com esse modo de pensar”. Outro contestador, o escritor Afonso Schmidt, reagiria também contra “os excessos da Semana”. Muito mais tarde, em 1976, Yan de Almeida Prado, um ex-participante, engrossaria a lista dos que denunciavam o “mito” de 22, dizendo que aquilo não passara de uma brincadeira de rapazes trocistas.

Nenhuma censura, porém, igualou-se à feita por Mário de Andrade na conferência “O Movimento Modernista”, na Biblioteca do Palácio do Itamaraty, em abril de 1942. Ele confessou um exacerbado sentimento de culpa pela alienação política, sua e dos companheiros do evento, tendo dito que, “apesar da nossa atualidade, duma coisa não participamos: o amelhoramento político-social do homem”. Cedendo ao imperativo de uma fase “integralmente política da humanidade”, como Mário dizia, reafirmava, porém, os méritos autênticos do movimento, isto é, que o espírito destrutivo da Semana impusera a fusão do direito permanente à pesquisa estética, a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência criadora nacional.

O historiador Paulo Mendes de Almeida, em seu livro De Anita ao Museu, diz o seguinte: “Em primeiro lugar, [a Semana] era o que pudesse haver de mais heterogêneo, quando aspirava a ser principalmente heteróclita (que se desvia das regras da arte), como proclamavam os mais afoitos. Nela, se pode dizer, somente num ponto houve uma quase unidade ideológica: o da necessidade de mudar. De mudar, sem que se precisasse bem o que, nem para onde. Foi isso o que lhe deu o caráter eminentemente destrutivo, sendo sob esse aspecto, de resto, que ela assume para nós extraordinária importância”.

Bipolaridade cultural

À distância de quase um século, a controvérsia prossegue e sob três aspectos: 1) sua “exagerada centralidade”, já que pouco se fala de outros eventos do gênero que se desenvolveram quase simultaneamente em vários pontos do país; 2) a relativização do conceito de “ruptura” que lhe tem sido atribuído de maneira geral – reconhece-se hoje que essa ruptura foi mais uma intenção do que uma realidade, pois a partir de 1924 as diretrizes de 22 se moldariam em um caminho mais construtivo, com a integração de vários aspectos da cultura tradicional brasileira; 3) o questionamento da sustentada tabula rasa que costumeiramente se tem feito da arte brasileira no período anterior a 1922.

Do jeito como a história da Semana de 22 vem sendo contada, é-se levado a pensar que, afora meia dúzia de artistas e intelectuais sonhadores e rebeldes, e outra meia dúzia de patrocinadores, não havia absolutamente, na época, ninguém mais que se preocupasse e ocupasse de cultura e artes em uma cidade que já, desde o final do século 19, caminhava para se tornar a principal metrópole da América do Sul. Nada menos verdadeiro, a não ser que se desconheça uma dicotomia fundamental apresentada pela própria geografia urbana de São Paulo, e que se menospreze a expressiva contribuição cultural trazida ao país pelos grandes contingentes migratórios, principalmente de origem italiana.

Reconhecida é a coexistência, no espaço paulistano, de “duas cidades” contrastantes que desde o final do século 19 se desenvolviam paralelamente. Como diz Candido de Malta Campos, no livro Os Rumos da Cidade – Urbanismo e Modernização em São Paulo: “na Zona Leste, para além do Tamanduateí, os bairros industriais da Mooca, Brás e Belenzinho formavam um mundo à parte, regido pelos apitos das fábricas, abrigando em cortiços ou vilas a imensa população imigrante. Suas chaminés enfumaçadas eram vistas pelos paulistanos do centro como uma paisagem estranha e vagamente ameaçadora”.

Nesse “mundo à parte” – que mais tarde se estenderia também por regiões mais centrais, do Bom Retiro à Zona Norte da cidade –, concretizava-se a discriminação social respaldada na inferioridade de infraestrutura e de serviços públicos em contraste com os bairros da alta burguesia cafeeira. Nele porém estava também inserido um núcleo bem estruturado de artistas e artesãos, alguns originários da Itália, outros descendentes de italianos (oriundi). Eram famílias de construtores e empreiteiros empregados na construção e ornamentação das aristocráticas vivendas dos “barões do café” e dos grandes industriais – pintores de paredes, especialistas em decoração de interiores com técnicas europeias de marcenaria, marchetaria, entalhe e escultura em madeira. Seus trabalhos incluíam elementos art nouveau que ainda hoje permanecem em alguns poucos edifícios preservados daquele tempo.

Eram também, orgulhosamente, “pintores de domingo” – quando se reuniam para fazer excursões pelos arredores, pintando paisagens e pessoas no melhor estilo da “arte bem feita”, de desenho preciso, de colorido rico, segundo técnicas tradicionais. Esse movimento, dez anos mais tarde, se tornaria explícito no Grupo Santa Helena e – superadas as rivalidades – também se integraria a alguns dos revolucionários da Semana de 22 para formar a Família Artística Paulista, durante a década de 1930. Grandes nomes das artes brasileiras saíram desse segmento, como Alfredo Volpi, Francisco Rebolo, Aldo Bonadei, Clóvis Graciano e Mario Zanini. Sem esquecer que um de nossos maiores artistas, Candido Portinari, iniciou sua carreira como “o italianinho” de Brodowski, no interior de São Paulo – filho de imigrantes toscanos, aos 9 anos já pintava estrelas e anjinhos no teto da matriz local, junto com os italianos que respondiam pela restauração daquele templo.

Em 1922, a oposição entre os dois grupos era implacável e a situação poderia hoje ser reconhecida mesmo como “bipolar” – é o que faz, por exemplo, a pesquisadora Ana Maria Barbosa de Faria Marcondes em uma reflexão sobre “imagens bipolares de 22”, desenvolvida em 2006, em sua dissertação de mestrado em antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), “Travessia Periférica – A Trajetória do Pintor Waldemar Belisário: Um Estudo sobre a Desconstrução do Cenário Artístico Paulista”, infelizmente ainda inédita em livro.

Concentrando suas reflexões na figura de Waldemar Belisário Pellizzari – um pintor que, embora pouquíssimo conhecido, pelas suas próprias circunstâncias biográficas revelou-se como elemento primordial de ligação entre os grupos rivais –, ela nos obriga, também, a pesquisar ecos de sua presença profissional, bem como a consistência dessa “bipolaridade cultural”, em documentação de arquivos abalizados e no testemunho de seus contemporâneos.

“Filho da inquietação”

O termo, cunhado pelo historiador Mário da Silva Brito para designar os revolucionários jovens de 22, aplica-se perfeitamente a Belisário (1895-1983), cuja característica existencial foi a de conseguir manter um pé em cada um dos dois mundos artísticos que se defrontavam: era filho de imigrantes italianos naturais do Vêneto, mas nasceu no palacete de uma das mais aristocráticas famílias paulistanas, a de José Estanislau do Amaral (pai de Tarsila do Amaral) e foi criado como irmão de criação da pintora, tendo inclusive partilhado de alguns de seus privilégios, como aulas de pintura com mestres importantes. Seu pai, Antonio Pellizzari, era um artesão de múltiplas habilidades, técnico em máquinas de tecelagem, marcenaria e carpintaria. Ao que parece, fabricava móveis para as casas-sedes das 22 fazendas da família Amaral. Belisário ilustrou melhor do que ninguém, e em toda a sua ambiguidade e dilemas decorrentes, a figura do “agregado”, tão comum na estrutura social do Império e dos primeiros tempos da República – assim como também ocorrera com o grande escritor Machado de Assis.

Menino ainda, trabalhava como operário com a mãe nas indústrias Crespi, frequentando sempre, porém, a casa dos padrinhos. A mãe queria vê-lo como um simples “técnico em tecidos”. Mas o pai – segundo depoimentos do próprio pintor – favoreceu desde cedo seus sonhos de estudar arte na Europa, onde ele já estivera, com a família, quando tinha 7 ou 8 anos. Em 1910 o garoto, então aos 15 anos, não hesitou em viajar sozinho e viver várias aventuras na Itália, de onde só regressaria em 1914, no início da Primeira Guerra Mundial.

Nos anos seguintes pôde aperfeiçoar sua formação artística, estudando e participando de exposições, em São Paulo e no Rio, onde chegou a ganhar um prêmio em 1919, na XXIV Exposição Geral de Belas-Artes. Em São Paulo, estudou desenho no Liceu de Artes e Ofícios e pintura no ateliê de um mestre alemão, George Fisher Elpons (1865-1939), radicado em São Paulo desde 1913, e que se tornaria o mestre de muitos de nossos modernistas. Belisário fora trabalhar como modelo em seu ateliê, mas o grande interesse que demonstrava pela arte fez com que Elpons o dispensasse do trabalho e o convidasse a ser seu aluno de graça.

Pelo talento demonstrado e pela maneira ousada de viver e trabalhar, Belisário tinha tudo para assumir, em 1922 – já amadurecido, com 27 anos – a liderança do grupo de artistas que se tornariam, pelas suas circunstâncias de classe social e de insuficiência de verbas, os excluídos da grande festa modernista do Teatro Municipal.

Remexendo arquivos

Uma reportagem de Luiz Ernesto Machado Kawall, publicada no jornal “Folha de S. Paulo” em 29 de junho de 1975, retomava o tema dessa “exclusão” ao falar da exposição retrospectiva da obra de Belisário que então se realizava no Masp, na ocasião do octogésimo aniversário do pintor. E arrancou do professor Bardi, que como se sabe “nunca teve papas na língua”, esta declaração: “A Semana de 22 foi coisa de ricos; os pintores de parede, menos afortunados, os pintores de arrabalde, ficaram de fora [...]. Proponho um debate objetivo revisionista de 22, convocando críticos, jornalistas, historiadores, sociólogos, artistas...” – convocação que não surtiu, na época, o efeito desejado.

Tendo conhecido “a turma que tinha dinheiro” – inclusive um dos principais organizadores da Semana, Graça Aranha – no ateliê de Tarsila, é provável que Belisário conseguisse ser incluído no evento do Municipal, não fosse pelo fato de a pintora ter viajado para a França antes de sua realização. Abandonado à própria sorte, o ex-agregado dos Amarais foi, como dizia, “considerado um pária”, como os outros do seu grupo, em um tempo em que ninguém conseguia sequer uma sala para expor, a não ser os ricos. Ele argumentou que “o grupo principal de pintores e artistas que se consideravam revolucionários, como Oswald, Mário, Menotti [del Picchia], Guilherme [de Almeida] e outros, era o que dominava, ligado aos ricos e poderosos. Que fazer?”

Isolado, mas pintando, sempre, em Ilhabela – designada por amigos como “o seu Taiti”–, Belisário ficou de fora do movimento de 22, é certo, mas acabou fazendo a sua própria Semana. Em parceria com outro pintor, Henrique Manzo, ele organizou, em setembro daquele ano, o I Salão Paulista de Artes Plásticas, no Palácio das Indústrias, na Várzea do Carmo, com a participação de 53 pintores e dez escultores, num total de 279 obras. O público compareceu escassamente, os críticos não apareceram e os poucos que se interessaram malharam sem piedade “a temática nacionalista”, exceção feita aos quadros de Tarsila e de Anita Malfatti, que, para surpresa de muitos, participavam do evento.

A guerra das duas facções terminou, no campo das artes plásticas, ou pelo menos abrandou, no decorrer da década de 1930, quando o elemento “social” predominou ideologicamente sobre gregos e troianos e uma nova geração de artistas procurou integrar tendências formais modernistas com elementos mais tradicionais. Quanto a Belisário, continuou até o final da década de 1920 a trabalhar, estudar e pintar muito, mantendo um pé em cada ambiente – o proletário e o aristocrático.

Ainda segundo a pesquisadora Ana Marcondes, a característica “aparente falta de estilo” que se poderia deduzir da visão de conjunto da grande obra de Belisário, estendida ininterruptamente durante sete décadas, “expressa uma corajosa ação de retorno aos gêneros tradicionais, redimensionados pelo ato criativo que faz de sua arte um exercício de liberdade”, e que o levou a debruçar-se “sobre a pintura estabelecendo uma interdependência entre o artista e o artesão”.

Esse elo de união entre modernidade e tradição, que foi fortificado e ampliado durante a década de 1930, é amplamente estudado em outros autores, como Walter Zanini em A Arte no Brasil nas Décadas de 1930-40 – O Grupo Santa Helena, com o mesmo foco nos vestígios das artes aplicadas europeias, no “denominador comum da experiência da pintura decorativista, no cultivo de um artesanato específico”. Um mérito, de acordo com Zanini, que o próprio Mário de Andrade não deixava de registrar com admiração, pois os artistas de origem proletária, na maioria ligados à imigração italiana, eram em sua opinião “expressionalmente criadores, na pesquisa da expressão nova e dum fazer melhor”, um grupo “ao qual coube descobrir e revelar a paisagem suburbana da cidade” e que – diz ainda Mário, no “Ensaio sobre Clóvis Graciano”, citado por Zanini – “é da maior importância para a pintura brasileira”.

A revisão da ideia de ruptura modernista que vigorou até hoje em relação ao movimento paulista de 1922 é objeto atual de reflexão e crítica de um bom número de historiadores da arte, sociólogos e filósofos, e as editoras aproveitam o ano comemorativo para lançar significativa quantidade de obras com esse caráter. Entre elas, cumpre destacar a coleção “Modernismo +90”, composta de 11 livros, que vem sendo apresentada desde março pela editora Casa da Palavra, do Rio de Janeiro.