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Cheiro de atraso a céu aberto

por Miguel Nítolo

Poucas coisas são tão aviltantes quanto esgoto correndo a céu aberto. Não rios poluídos que cortam as zonas urbanas e emporcalham o meio ambiente, mas a água malcheirosa e pútrida carregada de dejetos que serpenteia por entre ruelas e casas humildes e acaba, invariavelmente, desembocando em algum curso de água ou, não é incomum, parando pelo caminho. Isso, é claro, quando as pessoas desprovidas de saneamento básico têm em casa um vaso sanitário que pode estar ligado a coisa alguma ou, na melhor das hipóteses, a uma fossa negra. A despeito da gritante diferença entre algumas regiões do país, umas bem desenvolvidas, outras nem tanto, o esgotamento sanitário inadequado pode ser confirmado em basicamente todos os lugares, em menor ou maior escala.

As estatísticas traduzem em números o que os olhos veem. As informações que são disponibilizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e retratam como estava, em 2008, a situação do esgotamento sanitário no Brasil revelam que, a despeito dos avanços experimentados na área, o quadro ainda é francamente desafiador. A coleta de esgoto por rede geral, que em 2000 atendia a 52,2% dos municípios, passou a 55,2% naquele ano, como mostra a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (PNSB), num trabalho que investiga os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, além do manejo de águas pluviais e de resíduos sólidos. O estudo destaca ainda que, nos locais onde o serviço de coleta já existia, houve, no mesmo período, um incremento da ordem de 58% para 79,9% na quantidade de municípios que investiram na ampliação e na melhoria do sistema de esgotamento, e de 33,5% para 44% no número de domicílios atendidos.

De acordo com a PNSB, o avanço se deu em quase todas as regiões, com destaque para o centro-oeste, cuja taxa de melhorias ou ampliações passou de 50% dos municípios, em 2000, para 78%, em 2008, e também para o nordeste, que foi de 47,6% para 73,1%. A exceção ficou com o norte, que amargou um recuo de 53,1% para 48,3%. Os maiores percentuais foram encontrados no sudeste (85,4%), centro-oeste (78%) e sul (77,5%). “Em 2008, a ampliação ou melhoria do sistema aconteceu, principalmente, na rede coletora (88%) e nas ligações prediais (78,6%)”, informa o estudo, que trouxe ainda à tona a confirmação de que, em oito anos, o número de cidades que destinavam seus resíduos a vazadouros a céu aberto caiu de 72,3% para 50,8%. É sabido, todavia, que 30% dos municípios brasileiros lançam o esgoto não tratado em rios, lagos ou lagoas.

Outras revelações: apenas 13% dos municípios do norte têm esgoto (o correspondente a 2,5% dos domicílios), melhoria que ainda não passou de um conto de fadas para 2,49 mil localidades brasileiras, distribuídas, principalmente, nos estados da Bahia, Maranhão, Pará e Piauí. Trocando em miúdos: quase metade das cidades ainda não dispõe de rede de coleta, deixando ao improviso o destino do esgotamento sanitário.

Desastre ecológico

“Perplexidade. Essa é a melhor palavra para definir esse estado de coisas”, diz Edson Carlos, presidente executivo do Instituto Trata Brasil (ITB), entidade que coordena uma ampla mobilização nacional com o propósito de conduzir o país à almejada universalização da coleta e do tratamento de esgoto. Carlos observa que, por qualquer dado que se considere, seja do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), do Ministério das Cidades, seja do censo do IBGE, a situação é sempre a mesma. O fato é que os números chocam, e é possível mesmo que eles sejam ainda piores. “Muitas vezes, o morador diz ao recenseador que sua casa está ligada a uma rede de esgoto, já que ele aperta a válvula de descarga e tudo vai embora. No entanto, nem sempre o resíduo segue o destino adequado”, comenta Carlos.

O fato é que – e aqui a concordância é mais ou menos geral – “o esgoto é o maior vilão ambiental brasileiro”, como destaca Evaristo Eduardo de Miranda, doutor em ecologia pela Universidade de Montpellier, na França. “Segundo dados do IBGE, perto de 100 milhões de pessoas vivem no país sem coleta de esgoto, desastre ecológico responsável pela contaminação dos solos e motivo de graves doenças.” Pesquisador há três décadas da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Miranda assegura que a deficiência da coleta é a principal causa da degradação dos rios e do litoral. “Transformadas em armadilha para a saúde dos banhistas, as praias perdem seu encanto e, por conseguinte, a qualidade de local próprio para banho”, ele afirma, lembrando ainda que a falta de informação e de consciência acerca dessa matéria é muito grande. “O ‘ambientalismo’ focou seus projetos e programas em temas como a Amazônia, os primatas, as florestas e os ecossistemas, ignorando o esgotamento sanitário”, lastima.

Miranda salienta que os casos de Belém e de Porto Velho são emblemáticos. Ele relata que são muitos os locais em que o esgoto fica empoçado a céu aberto nessas capitais de estado, pois o caimento das ruas em numerosos bairros não segue na direção de seus principais rios, Pará e Madeira, respectivamente. “Quem já viu uma movimentação em defesa da Amazônia que evoque a dramática situação do saneamento nas cidades da região, as epidemias de dengue, de malária e outras, associadas à falta de saneamento? Na Amazônia das campanhas internacionais e nacionais desconhece-se a vida de seus 25 milhões de habitantes”, ressalta Miranda.

Belém e Porto Velho, aliás, figuram numa lista dos dez piores lugares em termos de saneamento no país, compilada pelo ITB a partir dos números do SNIS relativos a 2009. A relação é puxada por Canoas (RS), Jaboatão dos Guararapes (PE), Macapá (AP), Ananindeua (PA), Nova Iguaçu (RJ), São João de Meriti (RJ), Belford Roxo (RJ) e Duque de Caxias (RJ). Em outro ranking, que inclui os 81 municípios brasileiros com mais de 300 mil habitantes, a capital do Pará ocupa a sexta posição e a de Rondônia, a décima. “Por força dos poderes econômico e político, normalmente as capitais andam em ritmo bem mais acelerado que as cidades das periferias das metrópoles no tocante ao esgotamento sanitário”, esclarece a entidade, destacando ainda que isso acontece no Rio de Janeiro, especificamente nas cidades da Baixada Fluminense, “que pouca atenção deram aos esgotos”, mas também nas aglomerações urbanas da Região Metropolitana de São Paulo, tais como Carapicuíba, Diadema, Guarulhos, Mauá, Mogi das Cruzes e outras, que avançaram no fornecimento de água e até na coleta de lixo, mas alcançaram níveis pouco elogiáveis no que respeita ao tratamento dos esgotos. “Somente agora elas começam a investir mais forte na área”, informa o ITB.

O professor Gandhi Giordano, da Faculdade de Engenharia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), relata que a Baixada Fluminense sempre sofreu com o abandono, apresentando carências diversas: é uma região caracterizada como dormitório (parte de sua força de trabalho se destina a outros municípios, em especial o Rio de Janeiro) e que amarga sérias privações quanto ao abastecimento de água. “Nela, a deficiência de coleta e tratamento de esgotos culmina com a morte de dois rios que cortam a região, o Sarapuí e o Iguaçu. Há também um grande déficit habitacional e problemas sérios de saúde pública”, frisa.

Ocupação irregular

A varredura feita pelo IBGE chegou, inclusive, aos assentamentos irregulares conhecidos por favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, mocambos, palafitas, entre outros, aglomerados subnormais que em 2010 ascendiam à casa dos 6,32 mil e se achavam localizados em 323 municípios. “Eles concentravam 6% da população brasileira (11,4 milhões de pessoas), distribuídos em 3,2 milhões de domicílios particulares ocupados (5,6% do total). Vinte regiões metropolitanas abrigavam 88,6% desses domicílios, e quase a metade (49,8%) se localizava na região sudeste.” O instituto esclarece que os assentamentos frequentemente ocupam áreas menos propícias à urbanização, tais como as encostas íngremes da cidade do Rio de Janeiro, as áreas de praia em Fortaleza, os vales profundos em Maceió (localmente conhecidos como grotas), as baixadas permanentemente inundadas em Macapá, os manguezais em Cubatão e os igarapés e as encostas em Manaus.

Segundo as conclusões da pesquisa, o esgotamento sanitário era o serviço com menor grau de adequação (rede de coleta de esgoto ou fossa séptica) nas residências dos aglomerados subnormais analisados: 67,3% dos domicílios eram adequados, com 56,3% deles ligados à rede geral de esgoto e 11% à fossa séptica. Segundo o IBGE, era também o serviço que apresentava maior diferença percentual de adequação em relação às áreas urbanas regulares (85,1%). Uma curiosidade: o estado de São Paulo ocupava o primeiro lugar na lista dos aglomerados subnormais, com a inclusão nessa categoria de 60 municípios, 748,8 mil domicílios e 2,7 milhões de habitantes. Felizmente, há o que ser comemorado. O mesmo estudo do ITB que listou as dez piores cidades também assinalou as dez melhores, com maior cobertura de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto. São elas, por ordem de classificação: Santos, Uberlândia, Franca, Jundiaí, Curitiba, Ribeirão Preto, Maringá, Sorocaba, Niterói e Londrina. “O levantamento mostra que há sinais evidentes de avanços no setor de saneamento quando consideramos um período mais longo de tempo, por exemplo, de 2003 a 2009”, diz Edson Carlos. Todavia, ele afiança, se focarmos períodos mais curtos, de três a cinco anos, fica claro que os ganhos são pequenos e que não há uma melhoria expressiva na área, principalmente nos municípios com as maiores carências desses serviços. “A distância entre as melhores cidades e as piores está aumentando”, sustenta o presidente do ITB. De acordo com os dados, a população de Santos (417 mil pessoas à época da pesquisa, segundo o IBGE) convive – pelo menos no aspecto de saneamento – com índices de Primeiro Mundo: 100% de fornecimento de água e 99% de coleta de esgoto. Desde 1975, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), empresa de economia mista presente em 364 localidades, responde por esses serviços no município. “Nosso exemplar sistema de saneamento e drenagem foi planejado há 104 anos pelo engenheiro Saturnino de Brito, um verdadeiro gênio do sanitarismo brasileiro”, destaca Rosana Cristina Major, secretária de Comunicação do município. “As intervenções então executadas desencadearam um vigoroso processo de desenvolvimento, solucionando problemas históricos de enchentes e insalubridade.”

Rosana relata que o principal programa estrutural de desenvolvimento da história do município está em curso. Batizado de Santos Novos Tempos, ele abarca a macrodrenagem da zona noroeste, obras de segurança em encostas de morros, moradias para 7,4 mil famílias, recuperação ambiental, revitalização da área central, qualificação profissional e acesso à internet. Segundo a secretária, essas intervenções permitirão que a coleta de esgoto atenda a 100% da população santista, uma vez que os moradores das palafitas estão sendo gradativamente transferidos para apartamentos e casas em vias totalmente urbanizadas. A cidade de Santos recebeu da Secretaria de Saneamento e Recursos Hídricos do Estado de São Paulo o Plano Municipal de Saneamento Básico, que, elaborado a partir de uma parceria entre o estado e o poder local, apresenta um diagnóstico completo do município, objetivos de curto, médio e longo prazos, além de proposta e plano de investimento para abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana, manejo de resíduos sólidos e drenagem de águas pluviais urbanas. “O que estamos fazendo hoje tem importância para o Brasil. Falta pouco para que o saneamento de Santos se transforme num modelo para o país”, pontifica João Paulo Tavares Papa, prefeito municipal.

Bom exemplo

Quando decidem efetivamente enfrentar a questão do saneamento básico, dando vida aos tradicionais departamentos ou autarquias de água e esgoto, as prefeituras empenhadas em oferecer serviços de qualidade à população colhem bons resultados e podem acabar servindo de referência. A julgar pelas informações fornecidas por seu Departamento Autônomo de Água e Esgoto (Daep), Penápolis, no interior de São Paulo, a 480 quilômetros da capital e com quase 60 mil habitantes, é um bom exemplo disso. Lá, o índice de fornecimento de água e de coleta e tratamento de esgoto na zona urbana é de 100%. Segundo o Daep, a abrangência total foi alcançada em 1981, e o grande desafio agora é a continuidade dos serviços com qualidade e a introdução de novas tecnologias, com vistas à redução dos custos operacionais. A verdade é que as soluções para os problemas de saneamento enfrentam muitos entraves no Brasil. “As dificuldades devidas às licitações, as paralisações judiciais, a falta de licenças ambientais, questões que envolvem empreiteiras, a burocracia e a demora excessiva na análise dos processos emperram o andamento das obras”, observa Edson Carlos. Ele relata que levantamentos feitos pelo Instituto Trata Brasil, em março de 2011 e que focaram o andamento de 101 grandes obras de esgoto do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) em municípios com mais de 500 mil habitantes indicam que “60% delas estavam paralisadas, não iniciadas ou atrasadas e somente 4% finalizadas”.

Yves Besse, vice-presidente da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon) e da CAB Ambiental, entende que o descumprimento das diretrizes oficiais que versam sobre o saneamento básico (lei nº 11.445/2007, que, entre outros pontos, estabelece regras que visam à universalização do serviço) também é uma barreira que precisa ser transposta. Ele afirma que essa inobservância acontece principalmente “por falta de conscientização dos municípios e pela ausência de fiscalização por parte do Ministério das Cidades”. Besse sustenta ainda que a inexistência de saneamento básico provoca a morte de sete crianças por dia no Brasil, além de custos e impactos sociais fantásticos. “Para que a universalização desse serviço seja alcançada, é necessário investir R$ 270 bilhões, que é o valor atualizado de R$ 200 bilhões divulgado pelo Ministério das Cidades em 2000”, explica.

Edson Carlos, do ITB, lembra que a primeira fase do PAC, ainda no governo Lula, destinou quase R$ 40 bilhões, em quatro anos, a obras de saneamento. “Infelizmente, muitos projetos entregues pelas prefeituras eram malfeitos e mal concebidos tecnicamente. Então, antes mesmo que o governo e as municipalidades dessem início às obras, sabia-se que muitas delas acabariam ficando no papel. E assim ficarão até que o projeto, os prazos e os custos sejam refeitos”, pontifica. O professor Gandhi, da Uerj, tem uma explicação para isso. “Como os investimentos em saneamento ficaram abandonados por muito tempo, os profissionais foram mudando de área e não houve atração capaz de levar à formação de novos especialistas. Atualmente, há carência de pessoal capacitado para a elaboração de projetos para as prefeituras e companhias de saneamento. E sem projeto não há como solicitar financiamento ao governo federal”, afirma. Em depoimento num ciclo de entrevistas promovido pelo ITB, o titular da Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental (SNSA) do Ministério das Cidades, Leodegar Tiscoski, afirmou que, no passado, com algumas exceções, o saneamento esteve fora das prioridades dos governos, mas que, aos poucos, ganha corpo graças à crescente conscientização sobre sua importância. “Os marcos regulatórios, os planos municipais de saneamento ambiental (PMSA), a disponibilização de recursos, a presença de gestores públicos cônscios da necessidade e da importância de investir na área e a firme atuação do Ministério Público, por exemplo, estão dando um outro sentido à questão”, analisa Tiscoski. Os planos municipais de saneamento ambiental são um instrumento muito importante, uma vez que as prefeituras estão praticamente intimadas a apresentá-los até janeiro de 2014. O secretário da SNSA avisa que, atingida aquela data limite, os renitentes poderão se deparar com dificuldades para levantar recursos na esfera federal.