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Satélite não é bem de prateleira

por Carlos Juliano Barros

Nascido na capital cearense em 1956, Gilberto Câmara formou-se engenheiro eletrônico pelo conceituado Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), mas dedicou os capítulos mais importantes de sua trajetória acadêmica e profissional ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) – onde fez mestrado e doutorado na área de computação aplicada. Em dezembro do ano passado, depois de seis anos consecutivos como diretor do órgão que é a vanguarda do programa espacial brasileiro, responsável pelo desenvolvimento de satélites que exercem vigilância sobre o território do país, Câmara deixou o cargo em que teoricamente deveria ficar até 2013. Dentre outras missões à frente do Inpe, ele liderou a criação do mundialmente aclamado sistema de monitoramento do desmatamento da Amazônia, realizado a partir de imagens de satélite disponibilizadas gratuitamente na internet – um dos feitos de sua gestão de que mais sente orgulho.

Apesar dos inegáveis avanços obtidos ao longo de seu mandato, durante o qual o orçamento anual do Inpe pulou de R$ 100 milhões para R$ 250 milhões, a dificuldade para renovar o quadro de pesquisadores do instituto e a inexistência de uma política de governo clara para o desenvolvimento de ciência e tecnologia (C&T) na área espacial levaram Câmara a tomar a drástica decisão de sair do comando do Inpe antes do previsto. Todos esses assuntos são discutidos nesta entrevista exclusiva concedida a Problemas Brasileiros. Com fundo de música clássica, uma de suas maiores paixões, a conversa aconteceu no amplo gabinete que ele ocupava então na sede do instituto, localizada no município de São José dos Campos (SP). Um dos mais renomados cientistas brasileiros, Câmara deixa a diretoria do órgão, mas não larga o Inpe: vai dedicar integralmente seu tempo à carreira de pesquisador.

 

Problemas Brasileiros – Em 2011, o Inpe completou 50 anos e, de acordo com a consultoria espanhola Cybermetrics Lab, figura entre os 40 principais institutos de ciência e tecnologia do mundo. Se o passado é glorioso, o futuro preocupa?
Gilberto Câmara – Preocupa na medida em que temos de verificar como é que o Inpe reage e se enquadra nas estratégias de C&T do governo, no futuro. Fazendo um paralelo, o governo Lula investiu em C&T no ensino superior. Aumentou muito a verba para novas instituições e também o orçamento destinado a pesquisas nas universidades. Já o governo Dilma não tem ainda uma estratégia clara e coerente para C&T. Por um lado, ele reconhece que é importante aumentar a competitividade da indústria brasileira e ouve-se falar muito em inovação, mas ao mesmo tempo não está claro como isso vai ser feito. Existem os mecanismos tradicionais, de incentivos fiscais, redução de imposto para quem investe em inovação, mas uma parte da estratégia do governo é aplicar uma receita tradicional, dos anos 1960: a substituição de importações. Então, se você olhar a questão da Foxconn [empresa taiwanesa que pretende fabricar tablets no Brasil] ou a da [montadora de automóveis chinesa] Chery, o debate é aumentar a produção de bens no Brasil para reduzir as importações, mas não necessariamente a apropriação de conhecimento pelo Brasil.

PB – Nessa questão, o caso da Embraer é muito emblemático. Ela faz a montagem dos aviões, mas a tecnologia dos componentes é totalmente importada. Já o senhor defende uma política espacial e industrial genuinamente brasileira. Estamos caminhando bem nesse sentido?
Câmara – A gente não está nem bem nem mal. Não está claro para onde se está caminhando. Não posso dizer que esteja mal, mas existe um dilema que o americano chama de make or buy. No caso do avião, a Embraer nitidamente optou por uma estratégia de minimizar o risco, de comprar o máximo possível de fornecedores de fora e de montar um avião utilizando o que a Embraer tem hoje: marketing, cadeia de suprimentos internacional e concepção.

PB – O que não é pouca coisa...
Câmara – Não é pouca coisa. É um exemplo do intelligent buy, a compra inteligente. Ela compra no exterior aquilo de que precisa e tem um controle da cadeia de suprimentos e do design. Mas a propriedade intelectual das coisas é muito mais do fornecedor do que dela. Acontece que, na área espacial, existe uma questão adicional – algo diferente do que ocorre até na aviação e na computação –, que é o uso dual. A tecnologia de satélites e foguetes, originalmente, sempre andou muito próxima do lado militar. Então, por ser entendida pelo país como conhecimento que tem valor militar, de soberania, a questão do make or buy aparece de um jeito diferente.
A questão é: o que eu consigo fazer aqui no Brasil? Consigo fazer câmera? Sim. Consigo fazer o chip que vai dentro da câmera? Não. Então, posso comprar o chip de alguém que venda – porque não é qualquer um que vende. No make or buy, a Embraer está do lado do buy e o Inpe está do lado do make. Qual vai ser o futuro resultante dessa visão que o governo tem de fortalecer a indústria sem necessariamente dispor dos instrumentos de criação de conhecimento?

PB – Então, o investimento no programa espacial, mais do que uma política de governo, tem de ser uma política de Estado?
Câmara – Tem de ser uma política de Estado e não se pode tratar isso como um bem de prateleira. O que é um bem de prateleira? É algo assim: quero um computador, ligo para uma loja e pergunto em quanto tempo ela pode entregá-lo. Já se você tratar um satélite como um bem de prateleira, vai ter um satélite, mas nenhum conhecimento. Você pode comprar um satélite de telecomunicações, mas não o conhecimento que está ali dentro, que nem está à venda. Ninguém transfere tecnologia em área nenhuma, principalmente na de satélites, que tem muita dualidade pelo lado militar. Pelo contrário, criam-se impedimentos para que essa tecnologia seja utilizada. Então, o make or buy assume, no caso da área espacial, uma importância maior até que na área apenas de aplicações.

PB – Existe uma diretriz por parte do governo de fortalecer a indústria que só faz a montagem, em detrimento da que pensa em inovação?
Câmara – A diretriz da presidente é fortalecer a indústria. Se você perguntar a ela e ao [ex-ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Aloizio] Mercadante, a diretriz é essa. Sobre o fato de a indústria ser de montagem, não está claro para a presidente e para o ministro quanto a Embraer faz e quanto ela compra. Não quero dar nomes, mas o governo brasileiro não tem clareza hoje do que seja produção de inovação na área da aeronáutica, espacial e de defesa.

PB – Esse é um dos motivos que o levou a deixar o Inpe?
Câmara – Na realidade, é o fato de eu não ter neste momento o sentimento de qual vai ser a política industrial do governo, na área espacial. Apesar de a questão da inovação estar posta como vontade de governo, ele não sabe como fazer.

PB – O senhor aproveitou a celebração dos 50 anos do Inpe para alfinetar algumas autoridades e citou problemas de marco legal, dizendo que “nem sempre o que funciona para viadutos funciona para ciência e tecnologia”. Há um excesso de burocracia que inibe o desenvolvimento do conhecimento científico no Brasil?
Câmara – A Lei de Inovação [nº 10.973/2004] é do começo do governo Lula. Vejamos o que ela diz. Um órgão do governo, como a Fiocruz [Fundação Oswaldo Cruz], pode contratar uma empresa para fazer uma vacina. E se ela não entregar? Se fosse um viaduto, você poria na Justiça. Mas, se a empresa não entregar uma vacina, isso não acontece. Por quê? Porque, ao contratar a vacina pela Lei de Inovação, você disse: “Eu reconheço que isso é uma atividade de risco e que pode não dar certo”. Porque é muito mais complicado. Pela primeira vez, em 2011, a gente conseguiu convencer nosso pessoal a usar essa lei. O programa espacial só tem atividade de inovação, no mundo inteiro. Você poderia sair contratando as coisas pela Lei de Inovação. Mas quem disse que o Tribunal de Contas da União (TCU) ou a Advocacia-Geral da União (AGU) gostam disso?

PB – O senhor tem uma birra com o TCU?
Câmara – É menos com o TCU que com a AGU. Eles não entendem que, na compra de Estado de um bem científico ou tecnológico, você não está adquirindo uma caneta, mas um negócio intangível que está dentro dela. Então, eles dizem: “Eu quero que você compre esse bem, mas por que não licita?” Porque se eu abrir licitação posso até recebê-lo, mas o conhecimento não vai ser do Brasil, vai ser de fora. Então, apesar de existir, não deixam você usar esse arcabouço, o que faz com que a situação do gestor público hoje de C&T que quer promover a real inovação seja extremamente insegura.

PB – O senhor defende um novo marco regulatório ou prefere que o governo incentive o uso do marco que já existe?
Câmara – Eu acho que o governo tem de incentivar e dar segurança. O problema é a insegurança jurídica. Quando a AGU diz para o administrador público que, ao usar esses instrumentos, ele está violando a lei, arriscando-se e possivelmente sujeito a sanções e penas disciplinares que vão até a declaração de improbidade administrativa, ela está criando no gestor uma enorme insegurança.

PB – E o senhor sofre isso na pele?
Câmara – Sofro. Aguentei seis anos disso. A maior parte dos processos que a gente tem aqui no Inpe hoje são contra os pareceres da AGU. Eu passo por cima deles.

PB – O senhor obviamente já remeteu essas críticas ao ministro e à presidente. O que eles dizem?
Câmara – Não dizem. Não fazem. Na realidade, eles dizem: “Você tem razão”, mas não chegam para o advogado da União e mandam uma ordem para que se faça desse jeito. Não há coragem cívica de assumir que, para fazer inovação, o Estado tem de correr riscos. A sociedade brasileira, graças a Deus, chegou a um estado de rejeitar a corrupção. Isso, de certa forma, torna o agente público receoso de dizer: “Estou fazendo uma coisa que não é ortodoxa, estou comprando uma coisa que não é um viaduto, é um satélite, de um jeito em que estou escolhendo a empresa que vou colocar, porque essa empresa sabe fazer”. A lei [de inovação] permite isso, mas a AGU diz que se configura uma relação promíscua. Ela não quer que você tenha o direito de escolher, mas que faça uma licitação para que ganhe o preço mais baixo. Eu não quero fazer licitação porque quem pode ganhar não fabrica no Brasil, traz de fora, e não quero fabricado no exterior, mas que seja feito no Brasil. Isso implica um risco, que os gestores de Brasília não estão necessariamente dispostos a correr. Então, esse no fundo é o dilema do gestor hoje que quer promover inovação no setor público: ele não tem respaldo de Brasília.

PB – Como o senhor avalia a constituição da empresa binacional Alcântara Cyclone Space (ACS), parceria firmada entre Brasil e Ucrânia com o objetivo de lançar o foguete Cyclone, de tecnologia ucraniana, a partir da base de Alcântara (MA)?
Câmara – Esse é outro motivo pelo qual estou saindo [da direção do Inpe]. Acho que é uma parceria totalmente furada. A Ucrânia sabe fazer foguete. Então, que ele vai sair, não tenho dúvida. A dúvida é: esse foguete é competitivo no mercado? De onde vem? Ele vem dos mísseis. A produção de foguetes na Ucrânia foi encerrada com o fim da Guerra Fria. Agora, é preciso pensar que, embora eles saibam fazer, sabem fazer com tecnologia essencialmente dos anos 1960, que não evoluiu. Os franceses, os chineses e os americanos substituíram as velhas tecnologias da Guerra Fria por outras voltadas não mais para mísseis, mas para foguetes comerciais. O Ariane 5, francês, não é um lançador de mísseis. É concebido para ser um lançador eficiente de satélites, e lança dois satélites de comunicações de 5 toneladas cada um.

PB – E o Cyclone é pequeno...
Câmara – O Cyclone é pequeno. Lança um satélite de 1,5 tonelada. O Ariane 5 lança dois de 5 toneladas. Não dá para competir. O pedaço do mercado que ele vai tentar pegar é muito pequeno. Veja o caso do satélite que o governo brasileiro está comprando para a Telebras. A presidente disse que queria um satélite de internet banda larga que atenda a milhões de pessoas.

PB – Quer dizer que esse satélite da Telebras não vai poder ser lançado pelo Cyclone?
Câmara – De jeito nenhum, é um satélite de 5 toneladas. Então, o que a gente vai ter? Uma base de lançamento com um foguete dos anos 1960. Vai funcionar? Vai funcionar, mas não vai ser competitivo comercialmente. Vai dar ao Brasil capacidade de lançar satélite? Vai. Mas vai dar ao Brasil inovação e conhecimento na área espacial? Dificilmente.

PB – A conceituada revista “Science” já chegou a afirmar que o “sistema de monitoramento por satélite do desmatamento da Amazônia causa inveja ao resto do mundo”. Esse sistema sintetiza a função social que a tecnologia do Inpe deve ter?
Câmara – Costumo dizer que transparência gera governança. Governança ambiental é resultado do fato de que a informação está lá. Ela é gerada e é disponível. Se fosse gerada e não fosse colocada, você não teria governança, porque haveria a possibilidade de varrer para debaixo do tapete. E nos custou muito chegar até aqui.

PB – Esse sistema já rendeu inclusive um bate-boca entre o senhor e o ex-governador de Mato Grosso, Blairo Maggi, uma das principais lideranças ruralistas do país.
Câmara – E a gente saiu ganhando. Quer dizer, o Brasil saiu ganhando. Eu tenho muito orgulho mesmo de ter liderado o Inpe e de ser uma das pessoas que botou a cara para bater e falou assim: “O dado tem de ser público, tem de estar na rede”. Isso não foi uma coisa óbvia. Se amanhã alguém tirar da rede [as imagens de satélite], vai dar problema. O Brasil faz programa espacial porque precisa, não porque acha bonito lançar satélite. Isso é parte da construção de um país, de um projeto de nação.

PB – O que o senhor acha das propostas de mudança do Código Florestal?
Câmara – Obviamente, eu subscrevo 100% os documentos da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e da Academia Brasileira de Ciências (ABC) [contrários à reforma do Código]. O que aconteceu é que os ruralistas perderam alguns embates no Congresso, muito na época da [ex-ministra do Meio Ambiente] Marina Silva. Então, a primeira tentativa dos ruralistas foi acabar com o mensageiro. Porque durante muito tempo não havia mensageiro, podiam desmatar o que quisessem. Mas deu errado. A tentativa furou, a sociedade reagiu.

PB – Acabar com o mensageiro é tirar o sistema do Inpe do ar?
Câmara – Isso. É o que eles queriam. No dia em que foi embora, Marina Silva ligou para mim e disse: “Estou saindo porque não quero, de nenhuma forma, que haja o comprometimento da informação do Inpe”. Aí, os ruralistas pensaram: “Não dá para matar o mensageiro, então preciso tirar a legalidade do que o mensageiro está dizendo”. Então, qual é a questão por trás da reforma do Código Florestal? Limpar a barra dos ruralistas. Até 2003, quando a informação não era pública, não havia nenhum dado para dizer que o sujeito estava violando a reserva legal. O que mudou para quererem reformar? O fato de que agora existe a informação que permite que a lei seja cumprida. Isso vem do Inpe, mas é uma conquista da sociedade.

PB – O senhor mantém um blog na internet em que escreve sobre cinema, música clássica e atualidades. Num de seus posts, o senhor condenou os ambientalistas que se opõem à construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. Por que o senhor é a favor do empreendimento?
Câmara – Sou a favor dos transgênicos, da energia nuclear, da energia hidrelétrica, da energia eólica e contra o pré-sal. Meu carro só roda a etanol, independentemente do preço. Meu argumento é o seguinte: energia limpa é necessária para o Brasil. Se você não tiver Belo Monte, não vai conseguir substituí-la por um conjunto de energia limpa. Com a energia nuclear, daria. Mas ninguém quer. Então, Belo Monte surge como um mal menor diante das circunstâncias. Ao criar em Belo Monte o diabo encarnado, a gente esquece que o desmatamento nesse caso é pequeno. O impacto ambiental é grande, mas é muitas vezes menor que o que será criado se a Dilma aprovar a anistia aos desmatadores [com a reforma do Código Florestal].

PB – O que o senhor vai fazer depois de deixar a diretoria do Inpe?
Câmara – Durante o tempo em que estive na direção, continuei a orientar teses, publicar artigos e participar de eventos científicos. Vou dedicar 100% de meu tempo a essa carreira, da qual nunca abri mão. Vou sentir muita falta dessa capacidade de influir diretamente nas discussões de políticas públicas. Mas não vou mudar nada, vou simplesmente ampliar o tempo que dedico às atividades acadêmicas. Isso é muito prazeroso.