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Vou de bicicleta

O incentivo ao uso de bicicletas e a criação de condições para que essa prática seja possível no espaço urbano fazem parte dos projetos de deslocamento dos bairros sustentáveis. Os benefícios desse meio de transporte são diversos. Andar de bicicleta não polui, promove hábitos saudáveis, reduz engarrafamentos, além de ser viável e barato.

Mas, para que o deslocamento ocorra de modo eficiente e seguro, é necessário que a malha cicloviária, viária e urbana estejam integradas. Em artigos inéditos, a engenheira Ana Rocha Melhado e o arquiteto e urbanista Ricardo Corrêa analisam o fenômeno.

 

Bicicleta, alternativa de mobilidade
por Ricardo Corrêa

A mobilidade nas cidades brasileiras a partir de meados do século passado vem priorizando cada vez mais o transporte individual motorizado em detrimento ao coletivo e mesmo aos individuais não motorizados, conhecidos como modos suaves, que são pedestres, ciclistas e demais meios de baixo impacto. Em um primeiro momento, a priorização do transporte individual era sinônimo de modernidade.

A cidade de São Paulo já estava em rápido crescimento, na década de 1920, quando Prestes Maia desenvolveu o Plano de Avenidas, ainda em um momento em que o número de automóveis era muito pequeno. Então se deu o início da vinda das montadoras para o Brasil, a exemplo da GM, que se instalou no bairro paulistano do Ipiranga em 1925.

O reflexo dessas iniciativas no aumento da frota de veículos é surpreendente: entre 1920 e 1939, só no estado de São Paulo, o número de carros de passeio salta de 5.596 para 43.657 ante uma população de mais de sete milhões de pessoas (números irrisórios se comparados com hoje). Somente no pós-guerra, com o então presidente Juscelino Kubitschek, em meados da década de 1950, é que a expansão do parque automobilístico foi retomada.

O que se viu foi a rápida retirada dos bondes das ruas de São Paulo, que eram responsáveis por grande parte das viagens da cidade em relação aos transportes rodoviários. A velocidade dos bondes, próxima de 30 km/h, era muito mais compatível com a velocidade de pedestres e ciclistas, o que tornava a cidade muito mais segura para os modos suaves de transporte.

Para se ter ideia, a probabilidade de morte de um pedestre ou ciclista com um veículo motorizado a 30 km/h é próximo a 10% e sobe para mais de 85% se a velocidade da via for de 60 km/h, velocidade alcançada rapidamente pelos carros nas vias de nossas cidades.

Segundo informações do Ministério das Cidades, de acordo com o modelo automobilístico vigente, com o crescimento populacional nas cidades aumenta-se a velocidade de circulação dos automóveis e diminui-se a circulação de pedestres e ciclistas nas ruas, pela insegurança de circular nas vias de tráfego rápido.

Nas cidades brasileiras com menos de 100 mil habitantes, mais de 50% da população circula a pé ou de bicicleta. Esse número cai para pouco mais de 25% em cidades com população superior a um milhão de habitantes, justamente quando deveríamos ter cidades com maior densidade em que seja possível fazer grande parte das viagens a pé ou de bicicleta.

Se no início do século passado não tivéssemos optado pelo modelo rodoviarista, que favorece o crescimento espraiado das cidades e consequentemente provê infraestrutura de forma que todos desejem ter um carro – e assim favorecendo quem tem maior poder aquisitivo e dificultando o deslocamento da população de baixa renda que não tem acesso ao carro –, teríamos outras opções de mobilidade.

Os bairros sustentáveis têm como premissa, no que se refere à mobilidade, justamente buscar um melhor equilíbrio entre os modos de transporte, priorizando os modos de transporte suaves e coletivos. Uma das principais maneiras de se obter essa melhora é a implantação do conceito de moderação de velocidade (do inglês traffic calming), em que, com o próprio desenho do sistema viário, diminui-se a velocidade dos automóveis.

Para priorizar esse modelo de transporte é necessário justamente optar pelo adensamento urbano, em que se planeja maior densidade urbana com habitação, comércio e serviços. O automóvel não favorece esse uso, justamente por ocupar grande espaço nas ruas. Assim, a bicicleta passa a fazer parte do planejamento urbano, passando a ser uma alternativa de transporte.

A bicicleta, além de propiciar agilidade aos deslocamentos curtos porta a porta, é uma ótima maneira de ir até o transporte de alta capacidade, como trem e metrô, aumentado, assim, o raio de atração de uma estação, ou seja: a distância considerada confortável para uma pessoa ir a pé é 600 metros ou dez minutos; com os mesmos dez minutos de bicicleta, a distância percorrida equivale a praticamente três quilômetros.

Na Holanda, país europeu onde as temperaturas médias variam de -5º a 22º, chove moderadamente todo ano e o relevo é plano, há uma excelente infraestrutura para o ciclista em todo o território, e aproximadamente 40% dos passageiros dos trens de todo o país vão até as estações de bicicleta.

O desenho das vias com moderação de velocidade favorecendo os modos suaves pode ser o catalisador de diversas mudanças não só para os modos suaves, mas impactando transversalmente diversos fatores da infraestrutura urbana. Através de modificações do desenho viário com alteração do tradicional asfalto por pisos semipermeáveis, por exemplo, é possível reter e diminuir a velocidade de escoamento da água da chuva.

Outra medida que favorece a retenção das águas é a implantação de canteiros drenantes, que escoam a água da chuva, que é assim absorvida aos poucos pelos lençóis freáticos após ter sido filtrada por um sistema de pedras e telas instalado nesse canteiro.

A implantação de bairros sustentáveis a exemplo do que está acontecendo inicialmente no sul do Brasil pode servir de exemplo para um processo de transformação das cidades brasileiras. Esses conceitos urbanísticos podem ser incorporados não só nos bairros sustentáveis, mas também em todas as cidades brasileiras.

O Brasil gasta praticamente três bilhões de reais por ano em acidentes envolvendo carros, mais da metade do valor envolvendo todos os outros modos de transporte, como caminhões, ônibus urbanos e motos. A reestruturação do desenho urbano das cidades e, consequentemente, a redução da velocidade urbana iriam impactar diretamente esses números.

A mobilidade urbana afeta diretamente a mobilidade social. Uma cidade que planeja a mobilidade dando opções para toda a sua população ao mesmo tempo favorece os indivíduos e, consequentemente, melhora os gastos sociais. Desse modo o planejamento cicloviário impacta diretamente a vida das pessoas e o governo no que tange a aspectos sociais, pois, independentemente da renda, as pessoas passam a ter alternativas semelhantes de mobilidade.

No âmbito econômico, como o custo dessa mobilidade é muito baixo se comparado com os outros modos de transporte e a utilização da bicicleta favorece cidades mais compactas, é possível ter menores redes urbanas de água, esgoto, coleta de lixo, escolas, hospitais etc. Pelo aspecto ambiental, diminui-se a poluição atmosférica e sonora.

Melhora-se também a segurança, pois uma cidade com mais pessoas na rua torna-se mais segura. E em relação à saúde, pode propiciar inúmeros benefícios para a saúde física e mental, diminuindo muito os custos com a saúde pública. O planejamento cicloviário e o desenho mais humano das cidades propiciam, assim, um ciclo virtuoso à sociedade e ao indivíduo.


“(...) De acordo com o modelo automobilístico vigente, com o crescimento populacional nas cidades, aumenta-se a velocidade de circulação dos automóveis e diminui-se a circulação de pedestres e ciclistas nas ruas, pela insegurança de circular nas vias de tráfego rápido”

Ricardo Corrêa é arquiteto e urbanista, diretor da TC Urbes, consultoria especializada na elaboração de estudos, planos e projetos em mobilidade, acessibilidade e requalificação do espaço público urbano.



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A Bicicleta como Alternativa de Mobilidade e os Bairros Sustentáveis
por Ana Rocha Melhado

Quando se fala de bairros sustentáveis, o tema mobilidade é um dos mais importantes a serem abordados, principalmente em grandes metrópoles. Mas, primeiramente, o que entendemos por “bairro sustentável”? É possível desenvolvermos esse conceito em cidades com mais de 20 milhões de habitantes?

É mais coerente tratar desse tema, em cidades europeias, por exemplo, que já possuem uma malha de transporte público eficiente? São inúmeras as questões, todas propícias à época em que vivemos, de transformação dos valores e do conceito de qualidade de vida, que, em um passado não muito distante, era associado ao deslocamento por meio de carro particular e próprio, o sonho do brasileiro em paralelo ao da casa própria.

Entende-se por bairros sustentáveis uma determinada área que tem por meta o compromisso de atender aos objetivos de gerenciar o consumo energético e o de água potável; garantir um desenvolvimento econômico, por meio do uso misto, proporcionando espaço para lazer e coesão social, fornecendo equipamentos públicos destinados à cultura, escola, comércio e, por fim, otimizar o deslocamento urbano, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida.

A mudança de comportamento da sociedade e do setor público é tão acelerada que, se estivéssemos escrevendo esse artigo há alguns meses, alguns leitores estariam pensando, creio: “Sistema de bicicletas públicas, visando oferecer à cidade uma opção de transporte sustentável e não poluente? Como assim? Realidade ou sonho?”

O Rio de Janeiro, primeira cidade a implantar o projeto de mobilidade sustentável, conta hoje com 60 estações e 600 bicicletas, distribuídas nos bairros de Copacabana, Ipanema, Leblon, Lagoa, Jardim Botânico, Gávea, Botafogo, Urca, Flamengo e Centro. Em São Paulo, maior cidade brasileira, o programa é mais recente; e não menos ambicioso.

O projeto tem quatro principais objetivos: introduzir a bicicleta como modal de transporte público saudável e não poluente; combater o sedentarismo da população e promover a prática de hábitos saudáveis; reduzir os engarrafamentos e a poluição ambiental nas áreas centrais das cidades; e promover a humanização do ambiente urbano e a responsabilidade social das pessoas. No mapa disponível no site www.mobilicidade.com.br/bikesampa.asp é possível ver as estações já ativas e em estudo, abrangendo um grande raio de atuação.

Mesmo que voltado a pequenos percursos, se implantado dentro de bairros, independentemente da topografia do local, o uso da bicicleta, sem dúvida, possibilitará ao cidadão uma forma alternativa de deslocamento, além de contribuir significativamente para o incremento de sustentabilidade do próprio bairro.

Os principais argumentos associados ao uso da bicicleta com o conceito de sustentabilidade, analisando pelos três pilares (ambiental, social e econômico), são o fato de ela agregar atributos que contribuem para a democratização do uso da via pública, com redução do custo nos deslocamentos diários; a melhora da qualidade de vida; a geração de saúde aos usuários; a redução da emissão de poluentes; e, além de tudo, o fato de ser acessível e viável economicamente.

Contudo, algumas questões precisam ser trabalhadas em paralelo, pois o conceito de sustentabilidade nunca tem um único ponto de vista, é sempre multidisciplinar. Alguns deles são a falta de espaços específicos destinados à circulação de ciclistas; a falta de vestiários com chuveiros nos empreendimentos corporativos e demais estabelecimentos, como shopping centers, para que os usuários desse meio de transporte possam tomar banho antes de começar a trabalhar, por exemplo, ou realizar atividades sociais; a falta de segurança no trânsito; a má qualidade do ar e o clima tropical brasileiro.

Cidades europeias como Amsterdã e Paris são adeptas dessa mobilidade de transporte. A primeira desde a década de 1970 e a segunda a partir dos anos 2000. Destaca-se também a nossa vizinha Bogotá, na Colômbia, que conseguiu revolucionar seu sistema de transporte.

Em Amsterdã, 26% dos deslocamentos diários na cidade são feitos de bicicleta, 34% de carro e 40% no transporte público: metrô, bonde VLT e ônibus (dados obtidos do urbanista Alfredo Sirkis, no site sirkis.interjornal.com.br). Em Amsterdã, há uma perfeita integração da malha cicloviária com a viária e urbana, requisito básico para a eficiência desse meio de transporte. Paris, conhecida na Europa pelos seus EcoQuartiers, Bairros Sustentáveis, aderiu ao sistema Vélib em julho de 2007 com 10 mil bicicletas e 750 estações automatizadas. Hoje, conta com cerca de 20 mil em mais de mil estações.

O debate ainda é longo, mas, sem dúvida, estamos em um caminho sem volta, como já dizia o filósofo húngaro Ervin László, autor de World Shift Empowering or Evolution: “O mundo – natureza e sociedade ligadas em um sistema dinâmico – se aproxima de um ponto de bifurcação que pode resultar em colapso ou avanço. Para avançar, é preciso esquecer as velhas maneiras de pensar e de fazer as coisas”.

Estamos no caminho certo. O evento “Bicicultura Brasil” realizado em Brasília, em junho, reuniu especialistas e representantes de várias cidades brasileiras e de diferentes países, com o intuito de discutir, por meio de experiências positivas, como tornar viável uma malha urbana, onde as bicicletas possam circular com rapidez e segurança, contribuindo para o desenvolvimento urbano sustentável.

Termino este artigo apropriando-me do slogan do evento, convidando a todos a esta reflexão: “Biclicletas por um mundo melhor”, realidade ou utopia? Vamos mudar o nosso hábito de deslocamento?


“(...) Se implantado dentro de bairros, (...) o uso da bicicleta, sem dúvida, possibilitará ao cidadão uma forma alternativa de deslocamento, além de contribuir significativamente para o incremento de sustentabilidade”

Ana Rocha Melhado é engenheira, professora pós-doutora do Curso de Engenharia Civil da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e diretora da PROACTIVE, consultoria especializada em gestão de projetos e sustentabilidade empresarial.