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Espírito livre

“Ela é a bola da vez da arte brasileira.” A declaração do curador e escritor Lauro Cavalcanti resume a opinião de especialistas sobre a posição da artista plástica e visual Lygia Pape (1927-2004) no atual cenário da arte contemporânea. Ao lado de outros expoentes da arte neoconcreta, como Hélio Oiticica e Lygia Clark (com quem forma a santa tríade do movimento), a fluminense de Nova Friburgo construiu uma obra lapidar, poética e original, que agora ganha evidência por meio da remontagem de dois balés criados por ela no final da década de 1950 (veja boxe Dança das formas), no Sesc Bom Retiro, e pela grande exposição Espaço Imantado, na Pinacoteca do Estado de São Paulo. “Ela está sendo revelada, e muito mais olhada, tanto pelos jovens quanto pelo circuito internacional de exposições”, afirma Cavalcanti, que também é curador e escritor.

O convívio com a artista se deu no período de faculdade, nos anos de 1970, quando foi aluno de Lygia no curso de arquitetura, na Universidade Santa Úrsula, no Rio. “Fui assistente dela durante dois anos”, diz o curador. “Nessa época, viajávamos muito – eu, minha namorada e ela –, íamos para Arraial do Cabo [município do estado do Rio de Janeiro], onde ela tinha casa. Enfim, foi um contato muito estreito mesmo.” Ele conta que, na visão de Lygia, a arte deveria extrapolar linguagens, suportes e até os ateliês dos artistas. “Para ela, a questão de dar aula era, em si, um trabalho de arte”, observa. “A visão que a academia tinha da arquitetura era rígida e desencantada. E Lygia era como um sopro de vida dentro da faculdade.”

Espaço imantado

Um dos exemplos que Cavalcanti usa para ilustrar o espírito livre da arte de Lygia é o da concepção dos chamados espaços imantados, que ela desenvolvia por meio de ações caracterizadas como “campos magnéticos” para a interação social espontânea. Segundo ele, a artista ilustrava essa ideia usando a imagem do vendedor de rua, figura que “magnetiza” seu metro quadrado da calçada, chamando atenção com sua mercadoria e seu diálogo com os transeuntes, como um imã. “Tem a ver com você criar situações especiais”, acrescenta.

O espaço, aliás, era grande foco de interesse para Lygia. “Criação, espaço, tempo. Três das grandes questões enfrentadas e reelaboradas em suas relações pelo neoconcretismo”, analisa o professor e crítico de arte Paulo Venâncio Filho. O especialista refere-se ao movimento criado, em 1959, como uma espécie de resposta orgânica ao concretismo, surgido no início dos anos de 1950, e que buscava uma atualização da arte brasileira em consonância com estéticas internacionais e também num diálogo com novas disciplinas. Lygia Clark e Hélio Oiticica estavam entre os artistas que formaram, na época, juntamente com Lygia Pape, o chamado Grupo Frente.

Venâncio Filho explica que entre as obras de Lygia que demonstram essa preocupação está sua série de obras/livros – o Livro da Criação (guache sobre cartão, 1959-1960), o Livro da Arquitetura (têmpera e cartão, 1959-1960) e o Livro do Tempo (têmpera sobre madeira, 1960-1965). Chamados pelo professor de “a trilogia básica da experimentação neoconcreta”, os trabalhos revelam, segundo sua análise, como os vetores criação, espaço e tempo, para a artista, não podiam ser separados.

Antes da internet

Lygia perseguia essa constante experimentação criando peças e obras em diferentes linguagens: design, vídeo, cinema, instalações, ações de rua. Para a fotógrafa Paula Pape, filha da artista e diretora presidente da associação cultural Projeto Lygia Pape (cujo site é rico em informação e imagens: ?www.lygiapape.org.br), essa pluralidade indicava uma “pessoa rápida, cheia de vontade de conhecer coisas novas, de juntar essas diferentes linguagens numa manifestação pessoal”.

Na visão de Paula, a artista pretendia chegar a uma nova leitura das coisas – e ir além disso, se possível. “Acho que esse movimento da Lygia de lidar com diversos meios de expressão foi algo tão natural, quase uma antecipação ao que vivemos hoje com a internet”, diz a fotógrafa. “Pois ela tinha uma velocidade que a maioria das pessoas só alcançou depois desse evento [a rede].

A internet dela era o telefone, eram horas de bate-papo e trocas de ideias, a máquina de escrever nunca parava, era um frenesi, um dínamo.” Paula conta também que ajudou a mãe artista na montagem de diversas exposições, como O Olho do Guará (Rio de Janeiro,1983), Amazoninos (Rio, 1990) e Branco sobre Branco – na verdade uma “obra/carnaval” realizada na avenida Rio Branco, também no Rio, em 1994. “Sempre fomos muito próximas”, afirma Paula.

Dessa proximidade, inclusive no campo profissional, Paula lembra de uma Lygia Pape em ação. “De vez em quando eu a via na sala atacando alguma coisa”, lembra. “Eram ataques mesmo, movimentos rápidos e precisos. Por alguns dias ficava a mexer com materiais, tinha uma coisa de brincar com eles, ela gostava muito de experiências.”

“Tudo está aí”

E foram muitas as experiências até sua morte, em 2004. Entre elas, para o vídeo – como La Nouvelle Creation, de 1967, no qual a artista manipula imagens da NASA (National Aeronautics and Space Administration), a agência espacial norte-americana, para sugerir o nascimento de um homem novo; e as Ttéias, trabalhos que adotaram diversas “concretizações” entre 1977 e 2000 – uma delas a de fios dourados sobre formas quadradas.

O conjunto de suas realizações inclui até a criação do logotipo de uma famosa marca de biscoitos e massas, entre as décadas de 1960 e 1970. “Pela própria natureza, a obra da Lygia Pape se recusa a ser absorvida por uma história formalista ou por qualquer tipo de narrativa excludente”, avalia o curador espanhol Ivo Manuel Borja-Villel – que assina, juntamente com Teresa Velázquez, a curadoria da exposição da Pinacoteca. “Difícil de classificar, plural e com uma evolução marcada por frequentes idas e vindas – as Ttéias que criou no final de sua carreira têm origem em alguns dos Desenhos [obra de Lygia] dos anos de 1950 –, a trajetória de Pape escapou a uma parte dos nossos historiadores e críticos.”

Ainda segundo observação de Borja-Villel, o trabalho da artista evoluiu em direção a “práticas cada vez mais comprometidas com o seu meio”. “Não ficou insensível às ditaduras que assolaram a América do Sul desde meados dos anos de 1960”, exemplifica o curador. “Tampouco à ?realidade do povo indígena e às condições de vida das classes mais desfavorecidas. Foi por isso que concebeu ações que exigiam um compromisso cada vez maior, tanto dela como do espectador.”

Para Paula Pape, uma das principais características das obras de Lygia era fazer crescer o potencial de cada situação. “Ela percebeu muito rápido que tudo faz parte do agora, e tudo se transforma muito rapidamente, não ficava pensando se ia fazer isso ou aquilo, as ideias e sensações brotavam nela como uma ‘semente permanentemente aberta’”, afirma, citando uma frase proferida por Hélio Oiticica sobre a amiga. E cita também uma dita pela própria artista: “Para ver algo basta este existir, tudo está aí, pronto para ser revelado”.


Sob o signo da ruptura

Nomes definitivos das artes brasileiras integraram, ao lado de Lygia Pape, o movimento neoconcreto

Os artistas que criaram o neoconcretismo, e que produziram dentro de sua filosofia de renovação de estética e linguagem nas artes brasileiras, estão hoje entre os maiores nomes no cenário artístico tanto nas artes visuais, quanto na poesia. Em 1959, nomes como Amilcar de Castro (1920-2002), Ferreira Gullar, Franz Weissmann (1911-2005), Lygia Clark (1920-1988) e Lygia Pape assinaram o manifesto que criou o movimento – surgido, segundo o texto do documento, como uma reação “particularmente em face da arte concreta levada a uma perigosa exacerbação racionalista”.

Pintor, escultor e performer, o carioca Hélio Oiticica (1937-1980) é possivelmente um dos neoconcretos mais conhecidos do grande público. São deles os chamados penetráveis, obras que consistiam em espaços de convivência abertos ao espectador – daí o nome. Oiticica foi também o criador dos bólides, recipientes cheios de pigmentos e matérias diferentes (água da Praia de Ipanema e o asfalto da Avenida Presidente Vargas, entre elas); e dos parangolés: obras de tecido que podiam ser vestidas como se fossem roupas.

Outro nome do movimento é o do escultor mineiro Amilcar de Castro, famoso por suas esculturas feitas com chapas de aço e ferro recortadas em formatos geométricos. Destaque também no campo do design gráfico, Castro entrou para a história da imprensa brasileira ao reformular o projeto gráfico do Jornal do Brasil, nos anos de 1960, revolucionando o modo como as páginas de jornais eram desenhadas até então.

Também na área da escultura, outra importante figura no neoconcretismo brasileiro foi o austríaco radicado no Brasil Franz Weissmann. A principal característica de sua obra são os módulos vazados, como a chapa de ferro com o círculo vazado ao centro, que servia de matriz para uma série de variações. “A chapa vazada, de fato, mostrava todas as suas potencialidades quando era desafivelada da lógica da seriação”, observa a professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), também historiadora e crítica de arte, Sonia Salzstein Goldberg, em texto publicado no site oficial do artista (www.fw.art.br).

Entre as mulheres, além de Lygia Pape, outra Lygia marcou presença na criação e evolução do grupo: Clark (1920-1988), pintora e escultura que participou ativamente da criação do Grupo Frente, do qual Pape era integrante. São de sua autoria, entre outras obras, a série de esculturas Bicho (alumínio, 1970) e a aquarela sobre cartão Caravela (1952).

Por fim, já no campo da poesia, os nomes mais recorrentes são o do maranhense Ferreira Gullar – cujos trabalhos também se estendiam até a crítica de arte – e Reynaldo Jardim (1926-2011), que colaborou com Lygia Pape nos Balés Neoconcretos. Gullar é um dos que mais explicitamente discorda do grupo concretista paulista e redige – em resposta ao artigo Da Psicologia da Composição à Matemática da Composição – o texto Poesia Concreta: Experiência Fenomenológica, 1957, que marca sua ruptura com o movimento e funda a vertente do Neoconcreto. Já Reynaldo Jardim, além da poesia, também assinou reformas gráfico-editoriais em jornais como A Crítica (Manaus), O Liberal (Belém), Gazeta do Povo (Curitiba), Jornal de Brasília e Diário da Manhã (Goiânia).


Dança das formas

Trabalhos de dança criados por Lygia Pape “escondem” os bailarinos para não desviar a atenção do espaço

Intitulados Balé Neoconcreto Nº 1 (foto) e Balé Neoconcreto Nº 2, ambos os trabalhos foram apresentados no Brasil uma única vez, no ano de suas criações – respectivamente 1958, no Teatro Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, e 1959, no também carioca Teatro Glaucio Gil. As montagens não têm as figuras humanas como centro do espetáculo. Os bailarinos não aparecem em cena, ficando escondidos em grandes formas geométricas.

De dentro, eles as empurram pelo palco. O objetivo era criar um novo sentido espacial. Mais de 50 anos depois, as coreografias foram mostradas novamente ao público, em apresentações, no Sesc Bom Retiro, realizadas nos dias 30 e 31 de março.

A responsável pela remontagem é a fotógrafa Paula Pape, filha de Lygia, que dirigiu os espetáculos juntamente com Né Barros. Paula conta que os curadores espanhóis Ivo Manuel Borja-Villel e Teresa Velázquez, responsáveis pela mostra Espaço Imantado – em cartaz, até 13 de maio, na Pinacoteca do Estado de São Paulo – visitaram a associação cultural Projeto Lygia Pape, em 2010, dando início a todo o projeto, incluindo a remontagem dos balés.

“Foi uma época mágica para mim”, conta Paula. “Eu estava muito envolvida com a documentação, fotografias, poemas que nunca tinha lido e visto. Enfim, reencontrei a Lygia de uma forma muito alegre.” Borja-Villel, inclusive, considera as coreografias “peças-chave” na obra de Lygia Pape. “Trata-se de coreografias controladas e movimentos sempre em linha reta que remetem à página escrita”, esclarece o curador. “Concretamente, a um poema de Reynaldo Jardim (1926-2011), com quem Lygia colaborou na ocasião. Não há nada de teatral, físico ou expressivo ali. O Balé é um poema no tempo e no espaço.”

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