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Reflexões sobre o “Projeto Terceira Idade” do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, que regulamenta o direito de prioridade processual

ALEXANDRE DE OLIVEIRA ALCÂNTARA

O direito fundamental à razoável duração do processo 

A Justiça brasileira é muito criticada por sua morosidade, levando anos para solucionar um litígio. Tanto isso é verdade que, no âmbito constitucional, a Emenda Constitucional no 45, de 8 de dezembro de 2004 (Reforma do Judiciário), acrescentou ao elenco dos direitos fundamentais do art. 5o da Carta Magna: “LXXVII- a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Estamos diante do direito fundamental à razoável duração do processo. Todos os cidadãos têm direito a uma Justiça célere. Bulos (2009, p. 592), ao comentar esse princípio, pergunta:

Adiantou alguma coisa a constitucionalização do princípio em epígrafe? A princípio não. O fato de um assunto vir consignado em termos constitucionais explícitos não significa, necessariamente, que o veremos concretizado. Se é certo que a atuação do Conselho Nacional de Justiça pode colaborar, até certo ponto, para reduzir a malfadada morosidade, pelo controle dos “deveres funcionais dos juízes” (CF, art. 103-B, §4o), mais exato ainda é que o problema, presente em todo mundo, não se resolve de uma hora para outra!

Parece que o citado autor tem razão. Pouco adianta a Constituição Federal dizer que o cidadão tem direito a um processo célere, pois a sua efetivação vai depender de uma série de medidas, que o espaço deste pequeno ensaio não permite discutir. O que deve desde logo restar bem claro é a seguinte assertiva: se o cidadão em geral tem direito à celeridade processual, com muito mais razão deve ter acesso a esse direito a pessoa idosa.

A prioridade processual no Estatuto do Idoso

O Estatuto do Idoso, Lei Federal no 10.741, de 1o de outubro de 2003, dispõe sobre um título dedicado ao Acesso à Justiça (arts. 69/71), no qual se destacam os dispositivos que preveem a possibilidade de criação de varas especializadas e exclusivas do idoso (art. 70), e assegura a prioridade na tramitação dos processos e procedimentos e na execução de atos e diligências judiciais em que figure como parte ou interveniente pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, em qualquer instância (art. 71).

A prioridade na tramitação dos processos no âmbito do Poder Judiciário é uma conquista merecida e justa aos idosos. Infelizmente, como já afirmado, nossa Justiça é muito morosa. A pessoa que chegou à velhice não deve e não pode ficar esperando uma eternidade para ver o seu caso resolvido. A demora na solução, inclusive, traz sérios problemas de saúde: ansiedade, angústia, desânimo, depressão, etc. Mais do que justa é essa prioridade. Imaginem quantos idosos esperam, por exemplo, decisões judiciais acerca de revisões de valores de aposentadorias? Alencar (2005, p. 340) enfatiza o significado desse direito:

A prioridade de tramitação para a pessoa idosa não significa que esta seja mais digna que as demais pessoas, nem que o princípio da dignidade da pessoa humana só se aplique aos idosos. Não. Em verdade, para se entender que a relação entre prioridade de tramitação para as pessoas idosas e o primado do homem atende ao postulado da isonomia, deve-se ter presente a noção do princípio da diferença, consistente em uma distribuição que melhore a situação de todas as pessoas – trazendo benefício ao idoso que o iguale à pessoa que esteja em melhores condições de expectativa de vida –, visando a efetivar a justiça social, especialmente quando confere esperança à pessoa idosa de que seu conflito será solucionado em prazo mais curto, aumentando, assim, a efetividade do princípio da dignidade humana de forma compatível com o princípio da igualdade.

Resta claro, por esses argumentos, que o direito de prioridade processual conferido ao idoso não fere o princípio da isonomia, mas, ao contrário, busca efetivá-lo, promovendo ainda a dignidade da pessoa humana.

No Estado do Ceará, o Tribunal de Justiça lançou o “Projeto Terceira Idade” e pela Resolução n° 14, de 17 de junho de 2004, regulamentou o direito de prioridade da pessoa idosa desde a distribuição, autuação, processamento, tramitação, julgamento e realização de todos atos processuais das ações, bem como recursos e incidentes (art. 1o). 

Segundo a Resolução, o idoso poderá requerer a concessão da prioridade pessoalmente ou por meio de representante legal (art. 2o). A fim de identificar os processos com pedido de prioridade, foi criada uma etiqueta verde-oliva, que será afixada na capa dos autos, onde constará a indicação: “Prioridade Estatuto do Idoso – Lei n° 10.741/03”, na tonalidade branca (art. 3o).

Quando a prioridade for requerida desde a petição inicial, já com o documento comprovante da idade, a indicação do referido direito será feita por meio de um carimbo posto na primeira página da petição exordial, com a mesma indicação prevista no art. 3o (art. 4o).

O folder explicativo do “Projeto Terceira Idade” traz ainda o conceito do direito de prioridade:

A prioridade consiste em um atendimento mais célere ao idoso. Na prioridade, portanto, não há uma escolha entre favoritos, ou preferidos, nem o atendimento ao idoso é feito porque ele é um “coitadinho”. Em outras palavras, pode-se dizer que o direito de prioridade, assegurado pelo Estatuto do Idoso, criou para todos a obrigação de atender primeiro o cidadão que já chegou à casa dos 60 anos, com o mesmo padrão de excelência de todos os outros cidadãos que buscam o Poder Público.

Outrossim, o “Projeto Terceira Idade” criou placas de sinalização visual, que deverão ser afixadas nos locais de atendimento ao público, com a seguinte indicação: “Atendimento Prioritário ao Idoso”. Transcorridos seis anos de vigência do Estatuto, cabe a pergunta: O direito à prioridade está sendo observado no âmbito da Justiça cearense? Para responder a essa pergunta utilizamos os seguintes dados: a) A experiência na atuação na Promotoria de Justiça, onde temos observado o “esquecimento”, por parte dos operadores jurídicos (juízes, promotores de justiça, defensores públicos, advogados e serventuários), desse legítimo direito de nossos velhos. Quantas vezes nos deparamos com processos esquecidos em que figuravam, como uma das partes, pessoas idosas cansadas de esperar por uma decisão Judicial. Em alguns desses processos havia o pedido de prioridade e até súplicas pedindo o julgamento que teima em não ocorrer; b) A análise do procedimento de controle sobre o cumprimento ou não do direito à prioridade por parte do Judiciário.

Em relação ao segundo item, para nossa surpresa e inquietação constatamos que não há como saber se as unidades judiciárias do Estado do Ceará estão observando a prioridade processual para os idosos. É impossível o Poder Judiciário dizer hoje quantos idosos figuram como partes ou intervenientes nos milhares de processos que tramitam em suas comarcas, e como consequência, se a prioridade está sendo cumprida.

Como chegamos a essa conclusão? Muito simples. Pela análise dos diversos formulários estatísticos que são remetidos pelas unidades judiciárias, tanto à Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará como para a Corregedoria Nacional de Justiça, órgão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em todos esses relatórios analisados não há qualquer dado, qualquer referência a estatísticas sobre a questão da prioridade aos idosos.

A questão é: como podemos cobrar a efetividade do direito à prioridade processual para os idosos se não sabemos efetivamente quais e quantos processos dizem respeito a esse contingente populacional? Realmente não temos como melhor averiguar o cumprimento da prioridade no âmbito da Justiça cearense, e certamente nos demais estados da Federação. Na verdade, o que não é prioridade para a Justiça? Podemos elencar as seguintes prioridades estabelecidas por diversas leis, regulamentos, resoluções, recomendações e solicitações vindas de órgãos administrativos, como o Conselho Nacional de Justiça: a) processos de habeas corpus; b) processos penais com réu preso; c) processos penais à beira da prescrição; d) processos penais de alta relevância social (crimes violentos, crimes contra o sistema financeiro nacional, crimes de lavagem de dinheiro ou envolvendo organização criminosa; e) processos penais de competência do júri; f) procedimentos penais cautelares (interceptação, busca e apreensão, etc.); g) cumprimento de cartas precatórias criminais; h) cumprimento de cartas de ordem criminais; i) cumprimento de cartas rogatórias; j) mandados de segurança com pedido de liminar; l) mandados de segurança em geral; m) “ações” populares; n) “ações” civis públicas; o) procedimentos por improbidade administrativa; p) processos com pedido de tutela antecipada; q) processos com audiência realizada; r) processos com conclusão antiga; s) processos em que figure como parte ou interessado deficiente físico ou mental; t) processos em que figure como parte ou interessado portador de moléstia grave; u) processos iniciados antes de 2005 – o CNJ disse que todos deveriam ser julgadas até o final de 2009...

Na verdade, a promessa legal de todos esses casos de prioridade processual, incluindo a prioridade aos idosos, faz parte de uma “legislação simbólica” no sentido pertinente da análise de Neves (2007, p. 23):

(...) Aponta para o predomínio, ou mesmo hipertrofia, no que se refere ao sistema jurídico, da função simbólica da atividade legiferante e do seu produto, a lei, sobretudo em detrimento da função jurídico-instrumental.

Essa legislação simbólica, no dizer desse constitucionalista, apresenta uma tipologia, cujo conteúdo pode: a) confirmar valores sociais, b) demonstrar a capacidade de ação do Estado e c) adiar a solução de conflitos sociais por meio de compromissos dilatórios. No caso da prioridade processual aos idosos prevista no Estatuto do Idoso, qual a interpretação perante esses possíveis conteúdos da legislação simbólica? Pode ser dito que a prioridade significa a confirmação social do respeito à pessoa idosa. Em contrapartida, pode significar que, perante a mobilização social dos idosos, essa prioridade processual (conquista legal) seja uma estratégia do Estado para demonstrar a sua capacidade de ação e, por último, um subterfúgio para calar e adiar a solução de conflitos sociais envolvendo idosos.

Sobre esse último aspecto, cabe o exemplo e a pergunta: numa Vara Federal Previdenciária, na qual 90% – ou mais – das demandas são concernentes a idosos, como será estabelecida a “prioridade” entre os “prioritários”?

Considerações finais

Os mecanismos criados pelo “Projeto Terceira Idade” do Tribunal de Justiça do Ceará, entre os quais: etiqueta verde-oliva afixada na capa dos autos indicando a prioridade, placas de sinalização visual e a própria obrigação direcionada ao órgão julgador para decidir com prioridade os processos das pessoas idosas, mostraram-se insuficientes.

É óbvio que o efetivo respeito pelo princípio da razoável duração do processo e a prioridade processual para os idosos requerem uma política de maior investimento no Poder Judiciário, mas podemos lançar mão de medidas imediatas que busquem essa finalidade. Podemos apontar como propostas: a) um programa de educação continuada com vistas a conscientizar todos os operadores jurídicos (juízes, promotores de justiça, defensores públicos, advogados e serventuários) a internalizarem a necessidade da observação da prioridade processual aos idosos; b) criação de mecanismos de melhor controle de cumprimento desse direito, como a demonstração, por meio dos relatórios elaborados por todas as instâncias da Justiça brasileira, apresentando quantos processos têm como parte(s) ou interveniente(s) pessoa(s) idosa(s); quantos desses processos foram julgados, etc. A esses relatórios seria dada ampla publicidade, inclusive enviando-os a entidades de defesa da pessoa idosa; e c) melhor estruturação (servidores qualificados, equipamentos...) de todas as instâncias da Justiça brasileira.

Cabe lembrar ser de fundamental importância para a melhoria de todos os serviços públicos a efetiva participação cidadã. Os movimentos sociais dos idosos, o Conselho Nacional e os Conselhos Estaduais e Municipais de Defesa das Pessoas Idosas devem ficar atentos e cobrar a observância do direito à prioridade processual. Tudo isso com a ressalva de que nosso sistema legal hipertrofiado prevê um elenco quase inesgotável de prioridades processuais, em que a pessoa idosa é mais uma das prioridades!

Referências bibliográficas

ALENCAR, Rosear Antonni Rodrigues Cavalcanti. Comentário ao art. 71. In: PINHEIRO, Naíde Maria (Org.). Estatuto do Idoso comentado. Campinas: LZN, 2005.

BRASIL. Estatuto do Idoso. Lei no 10.741, de 1 de outubro de 2003. Brasília: Gráfica do Senado Federal, 2003.

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. (reformulado e atualizado de acordo com a Emenda Constitucional no 57/2008). 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

CONSTITUIÇÃO da República Federativa do Brasil promulgada em 5 de outubro de 1988/obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. 35. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. (Coleção Saraiva de Legislação).

NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. (Coleção Justiça e Direito). 

Projeto Terceira Idade (folder). Guia de Orientação ao Servidor. (Resolução no 14, de 17 de junho de 2004). Tribunal de Justiça do Estado do Ceará.