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Saúde na cidade

texto: Chico Spagnolo e Alexandre Agabiti Fernandez fotos: Flavita Valsani

A população urbana mundial ultrapassou a rural recentemente, inaugurando uma nova etapa da história da humanidade, o que trouxe novos e extraordinários desafios para os atores envolvidos na formulação e implementação de políticas públicas em diversas áreas. Na década de 1950,  o planeta tinha 86 cidades com mais de um milhão de habitantes. Hoje  são 400, sendo 15 no Brasil.  A região metropolitana de Tóquio é, de longe,  a mais populosa, com 35,6 milhões de habitantes; seguida pela Cidade do México, com 19.1 milhões; Nova York, com 19 milhões; Bombaim, com 18,8 milhões, e a Grande São Paulo, a quinta colocada, com 18,5 milhões de pessoas.

Segundo dados do Banco Mundial, cerca de 90% do crescimento da população urbana acontece nos países em desenvolvimento – como o Brasil –, a uma velocidade entre cinco e dez vezes superior à verificada nas economias industrializadas avançadas. Esse descompasso na velocidade do crescimento populacional coloca os países em desenvolvimento no epicentro da atual transformação demográfica global. É justamente nesses países que se concentra a maior parte da população pobre do planeta, a que mais sofre com as condições inadequadas de moradia, vive sem acesso aos serviços básicos e ainda está exposta à contaminação ambiental típica do desenvolvi- mento, como a poluição por produtos químicos e a poluição atmosférica.

O ritmo avassalador da expansão da urbanização, associado à multiplicação do número de cidades, dificulta o controle do crescimento, leva a um desenvolvimento não planejado das comunidades e implica em sérias agressões ao meio ambiente – que por sua vez influenciam a saúde e a qualidade de vida. “A urbanização sem precedentes, com desdobramentos físicos, sociais e econômicos, fez com que a cidade se tornasse um ambiente insalubre porque as chamadas necessidades básicas da população não são supridas”, afirma o Dr. Nelson Gouveia, do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

No começo do século passado, algumas iniciativas de planejamento urbano no Brasil foram bem-sucedidas no que se refere ao saneamento básico. Um exemplo disso é o projeto da rede de esgotos e de águas pluviais da cidade de Santos, criado pelo engenheiro sanitarista Francisco Saturnino de Brito (1864-1929) em 1912, o mais avançado do país na época. O sistema livrou a cidade de epidemias e foi de- terminante para sua qualidade de vida. “Brito mudou o modo de pensar e desenhar a cidade, foi um pioneiro cuja influência ultrapassou nossas fronteiras ”, afirma Ângelo Bucci, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

"Em 1926, Brito fez um projeto com barragens para regular a vazão do rio Tietê, que passaria a ser um armazenamento hídrico substancial à população. O sistema de barragens ajudaria a evitar enchentes, mas o projeto foi vetado”, explica Bucci. “Em São Paulo, a opção foi urbanizar sem que as obras de infra-estrutura acompanhassem o crescimento da população. Ou seja, houve ocupação das margens do rio, mas não foram previstas áreas para o aumento natural das águas. Tais ações imediatistas foram catastróficas no futuro”, observa.

Mas existem alternativas. Bucci diz estar otimista, porque essas questões estão se tornando foco de interesse internacional, há mais mobilização dos moradores e hoje temos condições de fazer obras que nunca fizemos. “Não é um problema de escolha de projetos, mas o de regular os interesses. A palavra-chave é infra-estrutura. A falta  de áreas verdes em São Paulo, o saneamento básico, todos esses parâmetros podem ser traduzidos como medida da saúde de população. O órgão que rege as construções de obras se chama Código Sanitário Brasileiro: há uma grande conjunção entre saúde e planejamento. O problema é que a saúde é vasta, engloba o controle de doenças urbanas, mas não é só isso, também é ter áreas verdes”, analisa.

O impacto provocado pelos processos produtivos na saúde dos moradores das cidades é uma questão bastante complexa. Os processos produtivos e os padrões de consumo de- terminam a organização social, geram pressão sobre o ambiente e podem ser vistos como frutos ou como produtores de desigualdades relacionadas ao acesso aos serviços de saúde e à distribuição de riscos. “Os problemas ambientais na cidade, decorrentes da urbanização predatória sobre o ecossistema, revelam também a fragilidade das políticas de saúde que contemplam a relação com o ambiente”, afirma Nelson Gouveia.

A crescente preocupação com a saúde nos grandes centros urbanos vem chamando a atenção de profissionais de diversas áreas, e uma disciplina voltada aos temas relacionados à saúde – especificamente no contexto urbano – está se consolidando em todo o mundo: a saúde ambiental urbana.

Os aspectos essenciais da saúde ambiental urbana contemplam a infraestrutura de serviços como água, saneamento, coleta e destinação adequadas de lixo, serviços de saúde, controle da poluição atmosférica, além de moradia e emprego. No Brasil, a oferta dos serviços de saneamento básico apresentou uma grande expansão nas últimas décadas, mas tem sido insuficiente para suprir a demanda. “Apesar do aumento percentual da população servida por saneamento adequado nas diversas regiões brasileiras, e da diminuição na mortalidade infantil por doenças diretamente relacionadas a esse serviço, como a diarréia, ainda persiste um grande diferencial entre as regiões brasileiras, principal- mente em relação à cobertura de saneamento básico. E mesmo dentro das regiões com melhores índices de cobertura de saneamento ainda existem grandes diferenciais intrarregionais e intraurbanos, que se refletem nas condições de saúde das populações vivendo nestas áreas”, observa Gouveia.

Outro problema do meio ambiente urbano é o lixo. No Brasil são produzidas anualmente cerca de 83 milhões de toneladas de lixo. Desse total, apenas 40,5% tem destinação adequada (36% para aterros sanitários, 3% para compostagem, 1% reciclado por separação manual e 0,4% para incineração). Ainda existe um sério agravante: uma parte considerável desse lixo não é nem sequer coletada e termina em ruas, terrenos, rios e córregos. “Isso aumenta o índice de enchentes em épocas de chuvas e também provoca a proliferação de moscas, ratos e baratas, que ocasionam problemas di- retos e indiretos à saúde”, comenta.

Nosso modelo de desenvolvimento também ocasiona considerável poluição atmosférica, notadamente por emissões de monóxido de carbono (CO) oriundas de veículos automotores, que provocam uma série de doenças respiratórias e cardíacas. Segundo relatório divulgado em março pelo Ministério do Meio Ambiente, em 2009 as emissões de monóxido de carbono por parte de automóveis e motocicletas corresponderam a 83% do total desse gás no transporte rodoviário. Os ônibus responderam por apenas 2% das emissões.

Tais dados revelam o fracasso do modelo de transporte adotado no país, que privilegia o individual em relação ao coletivo, ao contrário do que acontece nos países desenvolvidos, principalmente os europeus. Ao longo das últimas três décadas, entretanto, a emissões de monóxido de carbono vêm caindo, apesar do crescimento da frota de veículos, que pulou de 7,5 milhões em 1980 para 21,1 milhões em 2008. Isso foi possível graças ao estabelecimento de políticas públicas que determinaram limites máximos de emissões de CO no fim dos anos 1980. As emissões de CO por veículos atingiram o recorde de 5,5 milhões de toneladas em 1992, caindo para aproximadamente 1,5 milhão em 2009.

A liberação de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera como resultante da queima de combustíveis fósseis, entre- tanto, não para de crescer: pulou de 60 milhões de toneladas em 1980 para 140 milhões em 2008. Um dos responsáveis pelo aquecimento global, o CO2 não teve limites de emissão estabelecidos pelo governo.

Por outro lado, a urgente implementação da redução do conteúdo de enxofre na gasolina e no óleo diesel tem sido sucessivamente adiada por pressão da indústria automobilística e de refinarias. Foi só depois de grande pressão da sociedade civil que o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) aprovou, em setembro do ano passado, a resolução que antecipa para 2012 a adoção de um diesel menos poluente no Brasil. Essa aprovação da re- solução não garante que o novo diesel chegará ao mercado: a sociedade civil deve continuar alerta e exigir a aplicação da norma.

Sendo a cidade um todo fragmentado, disperso e em permanente mu­tação, com a criação de novas áreas de escritórios, novos bairros residenciais no lugar de antigos bairros industriais, condomínios de luxo indo para a periferia, surgem novas centralidades que implicam em efeitos significativos na saúde urbana. Distinguimos diferentes usos do espaço urbano, com di­ferentes conteúdos sociais: de zonas de pobreza absoluta a regiões residenciais fechadas e excludentes.

“As questões ambientais estão pro­ fundamente relacionadas às práticas cotidianas da cidade. Por causa disso, o método e a ação da saúde ambiental devem combinar conhecimento téc­nico e envolvimento com o mundo da vida”, argumenta Nelson Gouveia.

Neste contexto, a moradia é um es­paço de construção e consolidação do desenvolvimento da saúde, é o prin­cipal espaço de sociabilidade da fa­mília. Entretanto, o crescimento urbano nem sempre vem acompa­nhado de investimentos adequados em infraestrutura habitacional para garantir a qualidade ambiental nesse espaço construído e no seu entorno. Favelas e cortiços são abundantes nas grandes cidades brasileiras, impli­ cando em contingentes enormes da população vivendo em condições às vezes subumanas, sujeitos a inúmeros fatores de risco à saúde relacionados à má qualidade da habitação, como con­dições térmicas precárias, umidade, mofo, má ventilação, infestação por insetos e roedores, falta de água, es­ goto e coleta de lixo.

Um último fator de risco à saúde da população urbana é a exposição a agentes químicos por meio do ar, da água e dos alimentos. Avaliar o risco da população exposta é o primeiro passo para prevenir ou minimizar o problema. A detecção precoce de uma exposição perigosa pode diminuir bas­tante a ocorrência de efeitos nocivos à saúde. O monitoramento da exposição ambiental permite que se estabeleçam medidas de prevenção e controle.</p>

Prato (mal) feito

A urbanização e a globalização esta­beleceram novos modos de vida, im­ pondo formas de consumo alimentar, afetando o paladar e os aportes nutri­tivos. As novas práticas alimentares trouxeram vários efeitos perversos à saúde. “A população urbana consome atualmente altos níveis de gordura, açúcares e poucas fibras.

Isso agrega poucos nutrientes bons e acumula outros que podem causar algum problema de saúde”, afirma a Dra. Viviane Laudelino Vieira, nutri­cionista do CRNUTRI (Centro de Re­ferência para a Prevenção e Controle de Doenças da Faculdade de Saúde Pú­blica da USP).

Essa “dieta urbana” provoca o ex­cesso de peso, “problema que no mundo atual apresenta níveis mais alarmantes do que a desnutrição”, ob­serva. A alimentação pobre em fibras e rica em gorduras e açúcares traz mais problemas: pressão alta, diabetes, di­minuição do HDL (colesterol bom), entre outros.

O morador das grandes cidades mal tem tempo para se alimentar. As re­ feições feitas em conjunto, em casa, em horários fixos e com um cardápio planejado estão desaparecendo. Comer fora de casa se tornou rotina.
Os novos produtos alimentares fa­bricados pela indústria conquistam um público cada vez maior. Além da pobreza nutricional destes alimentos, muitas vezes eles não sofrem ne­nhuma forma de controle a respeito da origem, das condições de armaze­ namento dos ingredientes e das con­dições de produção.

O modo de vida urbano tem ainda outro aspecto nocivo: o sedentarismo. “Além da pouca prática de esportes, o habitante das cidades tem um baixo gasto energético nas rotinas diárias, em que anda pouco a pé. Até em casa ele se mexe pouco, graças ao controle remoto da TV.”

O desafio da saúde ambiental é criar melhor qualidade de vida a partir de práticas voltadas para os determinantes e condicionantes da saúde. Essas práticas procuram construir alternativas na promoção da saúde e prevenção das doenças, avançando na produção plural de espaços saudáveis para assegurar a defesa do ambiente e da saúde”, destaca Nelson Gouveia. Para tanto, é fundamental ampliar o conhecimento da cidade e de sua complexidade.

Alguns agentes da sociedade civil participam ativamente da construção desse conhecimento indispensável. Um deles é o Movimento Nossa São Paulo, que “pretende construir uma força política, social e econômica capaz de comprometer a sociedade e os sucessivos governos com uma agenda e um conjunto de metas visando oferecer melhor qualidade de vida para todos os habitantes da ci- dade”, segundo Maurício Broinizi, coordenador da Secretaria Executiva do Movimento.

Em 2008, a entidade apresentou aos candidatos à Prefeitura de São Paulo um documento com 1.500 propostas – sendo 200 na área da saúde – baseado nos indicadores do Observatório Cidadão, banco virtual de dados do Movimento, e no 1o Fórum Nossa São Paulo, série de reuniões realizadas em empresas, associações, sindicatos e escolas para recolher sugestões para melhorar bairros, subprefeituras e a cidade.

No ano passado foram apresentadas ao prefeito Gilberto Kassab referências de metas de qualidade de vida nos padrões internacionais e também municipais. “Mostramos dados de ONU, OMS, Unesco, mas também usamos como base de comparação dados das subprefeituras da cidade que alcançaram um bom nível”, conta Broinizi. Ainda em 2009, em parceria com o Ibope Inteligência, o Movimento Nossa São Paulo realizou a pesquisa IRBEM (Indicadores de Referência de Bem-estar no Município), que abordou 25 temas relativos à qualidade de vida na cidade. No campo da saúde, o es- tudo revelou que a população, representada por 36 mil pessoas ouvidas na pesquisa, ainda preza pelo aspecto assistencial diante dos quesitos preventivos e de promoção da saúde. “Há um índice elevado de reivindicações sobre a saúde da família e sobre a insuficiência de equipamentos para o atendimento. O objetivo da pesquisa é orientar ações de empresas, organizações, governos e toda a sociedade, tendo como foco principal o bem- estar das pessoas”, aponta o Dr. Mário Bracco, responsável pelo Grupo de Trabalho (GT) de Saúde do Movimento. “Nossa principal função é estimular as pessoas a ‘ocupar’ as cidades”, diz.

Em 30 de março de 2010, o Movimento lançou uma publicação que compara o IRBEM aos indicadores técnicos da cidade, às referências de metas pra melhorar os indicadores da cidade e às 223 metas lançadas pela Prefeitura na agenda 2012.

O Movimento Nossa São Paulo é um dos organizadores de uma iniciativa bastante conhecida, o Dia Mundial Sem Carro, que acontece em várias cidades desde 2001. Mais do que estimular as pessoas a deixarem seus carros na garagem durante um único dia, a proposta de mobilização tem sido enfatizar a luta por um transporte público de qualidade, por menos poluição do ar, por respeito ao pedestre, pelo incremento das ciclovias, pela mobilidade urbana.

Outra entidade com destacada atuação é o Centro de Promoção da Saúde (Cedaps), ONG do Rio de Janeiro. A instituição conseguiu formar, em 2009, um grupo com mais de 1300 pessoas – entre profissionais de saúde, educação, representantes comunitários e moradores capacitados na educação e prevenção de doenças. O grupo elaborou 1.100 projetos (números de junho de 2009) de ajuda direta a mais de 50 mil moradores. Segundo Kátia Maria Braga Edmundo, coordenadora executiva da organização, a atuação do Cedaps é estruturada nos pilares de “noção de território, fortalecimento da capacidade dos grupos populares e o estímulo de ações desenvolvidas pelas e nas próprias comunidades”.

“Verticalização afeta saúde mental”, diz aziz ab’saber

O geógrafo Aziz Ab’Saber estuda a ocupação do espaço há 65 anos. Para ele, a frenética verticalização paulistana e o sistemático desrespeito ao ambiente cobram seu preço, afetando a saúde, inclusive mental, de seus moradores. Leia a seguir trechos da entrevista que o estudioso concedeu aos Cadernos de Cidadania do SESC São Paulo.

Capitalismo vertical “É um tema muito sério. Ando preocupadíssimo com algumas coisas que vêm acon- tecendo e que estão relacionadas ao capitalismo verticalizado que quase não tem mais como ser controlado. Esse capitalismo verticalizado da gente que aplica dinheiro em massa na construção de blocos altos, de 30 a 40 andares, em lugares onde anteriormente existiam apenas casas e sobrados baixos.” “Então essa conquista do céu sem preocupação nenhuma, nem com os que vão morar lá nem com o tráfico que vai se intensificar até o impossível, é um dos maiores problemas que a ci- dade de São Paulo enfrenta. Afeta a saúde mental das pessoas pela dificuldade de transporte, pelos conges- tionamentos fantásticos.”

Transporte “Eu cheguei a São Paulo em 1940, acompanhei os problemas que foram acontecendo. São Paulo demorou demais para ter metrô. Por outro lado, quando iniciaram o metrô, fizeram linhas, mas não há uma rede. Em cidades que eu conheço existe uma rede de metrôs, tantos nos bairros centrais quanto nos mais afastados.”

Circulação e ambiente “São Paulo tinha, no começo do século passado, segundo as observações de Belfort de Matos [1862-1926], 18,6 oC de temperatura média na área que corresponde ao centro expandido. Agora tem 21,8 oC. Isso que está acontecendo dentro da cidade em relação ao calor também é muito sério.” “Arrasaram áreas pra preparar os prédios de vários andares. Onde está a preocupação dos governos? Eu penso num futuro em diferentes tempos, não apenas num horizonte de quatro anos.”