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A memória e a preservação do audiovisual

Eloá Chouzal é pesquisadora de imagens. Graduada em História pela Universidade de São Paulo, com pós graduação em Cinema Documentário pela Fundação Getúlio Vargas, trabalhou na pesquisa do filme Tropicália, dirigido por Marcelo Machado, e, mais recentemente, para o documentário Santos, 100 Anos de Futebol Arte, direção de Lina Chamie, que celebra o centenário do clube.

A senhora trabalhou na pesquisa do filme Tropicália, dentre outros projetos. Como foi esse processo?

Delicioso! Eu já tinha feito uma grande pesquisa anterior para um filme que acabou não indo ao ar, no aniversário de 60 anos do Caetano Veloso, em 2002. Eu já era uma espécie de “caetanóloga”. Quando o Marcelo Machado (diretor) foi chamado para fazer o Tropicália, ele me convidou a participar, porque eu já havia trabalhado com ele e ele sabia que eu já possuía um certo know how no tema. Ele me chamou para coordenar e fazer a pesquisa, e eu indiquei o Antonio Venancio, no Rio, para fazer a pesquisa também nos acervos de lá. Ir aos acervos, assistir a horas e horas de filmes, selecionar partes, decupar, acionar acervos no exterior, pesquisar online quando havia a possibilidade, estudar o tema para saber quem poderia ter material mais pessoal de fotos e super 8 – foi garimpagem pura. O que o processo de pesquisa exige de minha parte começa com paixão, estudo do tema, leitura para conhecer, paciência para pesquisar, garimpar e, claro, conhecimento profundo das fontes, também.

Qual a importância da pesquisa de acervo para a produção audiovisual?

A pesquisa em acervo só existe quando já se tem o conceito de que se quer mesmo fazer um filme histórico usando material de época. Isso é uma opção conceitual. As imagens de época ajudam a roteirizar e a compor os filmes. O uso de filmes “antigos” demonstra a importância do acervo. Porém, um acervo que apenas guarda está faltando com a sua missão. Quando se disponibilizam os filmes para pesquisa, dá-se a chance de que essas imagens antigas possam ser “ressignificadas”, isto é, de que elas possam ser usadas num documentário ganhando novos significados, vida nova, nova roupagem, novas cores, novo público. Esse arquivo passa a viver. E é meio dialético, porque ao usar filmes antigos, você mostra a importância do acervo, do arquivo que vai guardar seu filme, que um dia vai ser antigo, de época também.

Existe uma metodologia para a pesquisa de dados e imagens?

Acho que não. Cada pesquisador cria seu método. Eu criei o meu. Tenho necessidade de estudar primeiro. Assim, consigo acessar as diversas camadas dos temas da pesquisa. Em Tropicália, nós construímos, a pedido do Marcelo Machado, uma cronologia superdetalhada: uma tabela com várias colunas, com dados sobre o movimento, sobre a História do País e do mundo e sobre os arquivos de que dispúnhamos, que servia para todos da equipe. Tem gente que quer fazer filme de longa-metragem em um mês! Não dá. Eu estudo e vou a campo. Acervos pessoais, acervos de museus, o Arquivo Público do Estado, de TV, de jornais, revistas, cinematecas, bibliotecas. Os que estão online são mais fáceis, pois é possível fazer a pesquisa em casa. Fico horas fuçando. Muitas vezes, a gente sabe que as indexações dos bancos de imagens são mal feitas. E ainda existe o fator sorte. Tem hora que só ela explica alguns achados incríveis.

Como é tratada a memória do audiovisual pelos profissionais brasileiros?

Os profissionais estão valorizando cada vez mais essa memória. Existe um boom de documentários usando arquivo, nem sempre bem feitos, é claro, mas é visível o aumento exponencial da produção. E tem coisas incríveis como o filme A Música Segundo Tom Jobim, do Nelson Pereira e da Dora Jobim, todinho feito com imagens de arquivo, com pesquisa do Venancio. Isso é muito bom para os acervos, gera demanda, as pessoas percebem que o arquivo é importante, que os filmes guardam uma memória que deve ser preservada e disponibilizada. Temos muitos problemas com os acervos, de acesso principalmente. Acho que este é um dos maiores problemas que o pesquisador enfrenta no Brasil atualmente. Ia ser incrível para a produção audiovisual ter esses acervos todos digitalizados e disponíveis.

Ao longo da história da TV no Brasil, importantes acervos foram perdidos, seja por incêndios seja por falta de um arquivamento apropriado. Por que isso ocorre?

Aconteceram mesmo muitos incêndios nas televisões, a maior parte deles nos anos de 1960: dois incêndios na TV Excelsior, que inclusive a fizeram fechar, outro na Bandeirantes, na RBS, na TV Cultura (nos anos de 1980). Em geral, nunca se soube quais foram as causas. Muita coisa se perdeu. Também se faziam coisas como gravar por cima das fitas; isso era tão comum, que aconteceu até com os registros do homem na Lua. E também não havia uma cultura de preservação correta, imagino. A memória da televisão tem buracos imensos. De muitas novelas da TV Globo memoráveis só se têm o primeiro e o último capítulos. Os antigos festivais da Record estão com as imagens deterioradas por falta de cuidados lá na origem. Quando você precisa de imagens de época e começa a pesquisar, sofre, porque percebe tudo o que foi perdido.

Como as novas tecnologias contribuem para aprimorar o trabalho de pesquisa?

As novas tecnologias contribuem, por exemplo, com a possibilidade de digitalização dos filmes e fitas e sua consequente conservação num suporte que teoricamente não se deteriora. Agora, o trabalho humano por trás disso tudo tem de ser muito bem feito, com gente capacitada para indexar, catalogar, criar tags, decupar os filmes – para que o pesquisador encontre isso. Pois é assim que a busca online é feita, sempre por termos. Num arquivo da França, os Mutantes estavam catalogados como Mutantos. São erros de digitação assim que fazem com que um filme ou uma foto não sejam achados nunca.

O uso de imagens extraídas da internet tem sido cada vez mais comum. Esse fácil acesso é positivo?

Sim, a internet trouxe um mundo de imagens, e todo o mundo pode ser pesquisador com as novas tecnologias digitais. O que diferencia um profissional de “todo o mundo” é somente sua experiência, sua sabedoria, seu know how. Como com a informação, há excesso de imagens disponibilizadas na internet. Saber ir às fontes certas é que conta para fazer um bom trabalho. Apesar da internet e de todo um mundo disponível online, existe em filmes, em informações e em livros uma imensa produção do passado que não está disponível e dificilmente estará tão cedo. Talvez um dos grandes trabalhos não óbvios do pesquisador seja atuar nesse universo dos suportes que muita gente esquece, por achar anacrônicos. Meu coração acelera quando tenho a sensação de achar imagens preciosas “perdidas” por aí. Assim, o mais importante é o seu papel nesta cadeia de preservação, porque você, de certa forma, salva do desaparecimento um pedacinho da História em forma de imagens, lá onde ninguém mais faria esse resgate.

Leia a revista Sesc TV, edição 62, na íntegra em: