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O cinema dos Direitos Humanos

Francisco César Filho é formado em Cinema pela Escola de Comunicações e Artes da USP, e desde 2008 assina a curadoria da Mostra de Cinema e Direitos Humanos na América do Sul, que já soma cinco edições. Realizada em 20 cidades de todas as regiões do País, entre as quais Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, Rio de Janeiro, São Paulo e Teresina, a Mostra apresenta filmes de diferentes gêneros e origens e que abordam temas ligados aos Direitos Humanos. A Mostra, criada pela Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República para celebrar os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 2006, vem-se firmando como um espaço de reflexão, inspiração e promoção do respeito à dignidade intrínseca da pessoa humana.

Como começou sua carreira e em que momento passou a envolver-se com curadoria de mostras de Cinema?

Estudei Cinema no curso da ECA e tive a sorte de conviver com uma turma muito empreendedora e talentosa. Alguns de meus colegas foram as cineastas Tata Amaral e Anna Muylaert, só para citar dois nomes. Antes mesmo de pegar na câmera, eu já estava organizando o primeiro ciclo de cinema por lá. Queria assistir aos filmes, mas não estavam disponíveis no circuito. E toda minha trajetória tem compreendido essa organização e curadoria de mostras.

Quando e em qual contexto foi criada a Mostra de Cinema e Direitos Humanos na América do Sul?

Em 2006, ano de celebração dos 60 anos da Declaração dos Direitos Humanos, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República decidiu criar um evento que chamasse a atenção do público para o tema. Tinha de ser algo que mostrasse a dimensão dos Direitos Humanos, mas que não parecesse didático demais. Foi nesse contexto que surgiu a ideia da realização de uma mostra de cinema. A intenção era de que houvesse um rodízio de curadores desse evento. Fui chamado para assinar a terceira edição, e, nos anos seguintes, a Secretaria entendeu que eu deveria continuar. Em 2010, completamos cinco edições e ampliamos para 20 cidades de todo o Brasil. É uma honra assumir essa responsabilidade, porque não se trata apenas de arte e cultura. São temas sérios, importantes e urgentes para o País.

Como curador da Mostra, quais são seus maiores desafios? De que forma é realizada a seleção dos filmes?

Tenho alguns pontos de partida. O primeiro deles é contemplar os dez países produtores de cinema da América do Sul. Outro critério é que os filmes tratem de Direitos Humanos com o maior leque possível desse tema: violência, infância, mulher, etnias, educação, trabalho, meio ambiente sadio etc. A programação tem de caber num número pequeno de sessões: são seis dias de exibição, com quatro sessões diárias, em cada cidade. Desde que assumi o evento, apresentei a proposta de dar a ele características mais de um festival, seja na qualidade dos filmes ou no nome dos diretores. Mexi no desenho da programação criando duas atividades paralelas: uma Restrospectiva Histórica e uma Homenagem. Em 2010, o homenageado foi o ator argentino Ricardo Darín. Conseguimos trazer, para pré-estreia no País, seu novo filme Abutres (direção de Pablo Trapero), que foi um reconhecimento para nossa Mostra. Também foi criada uma convocatória, que circula pelos países sul-americanos. Assim, os diretores têm a chance de mandar seus filmes. Na primeira edição, recebemos 41 filmes. Agora, eles já chegam a 200. O desafio de assinar essa curadoria torna a missão muito sedutora.

E, na prática, a Mostra contribui para romper preconceitos.

Sem dúvida. Há muita incompreensão sobre esse tema. Muita gente ainda vê os Direitos Humanos como defesa de bandido. Não entendem que trabalho, saúde e meio ambiente também são Direitos Humanos. O grande mérito da Mostra é aproximar o público desse tema. O cinema é palpável, é querido, trabalha com sensações. Por meio dele, não precisamos tratar os Direitos Humanos de forma apenas racional. É isso que dá a repercussão nacional que a Mostra tem. Temas ligados aos Direitos Humanos são os intrínsecos à pessoa humana, ou seja, dizem respeito à vida.

A Mostra dá um panorama da diversidade de temas e linguagens sobre o tema Direitos Humanos, que não se restringe à escolha de documentários de denúncias.

Exato. Entendíamos que, se exibíssemos apenas documentários, atrairíamos os militantes da causa. Seria como “pregar para convertidos”. Quando se opta por trabalhar com filmes comerciais de ficção, o espectador pode curtir essas projeções sem se dar conta de que são Direitos Humanos. O público se envolve com os personagens e com a trama. Mas, quando abre o programa da Mostra, identifica quais temas dos Direitos Humanos estão embutidos naqueles filmes. Você vê, por exemplo, como o filme O Signo da Cidade (direção de Carlos Alberto Riccelli, 2007), que tem a Bruna Lombardi e o Juca de Oliveira no elenco, aborda a temática dos direitos dos idosos, da adolescência, das drogas e do aborto. Tudo num filme de ficção. É um caminho mais sutil, que tem os Direitos Humanos como pano de fundo. Mas também temos filmes que abordam a questão de forma mais direta, como o Pra frente, Brasil (Roberto Farias, 1982), que mostra um cidadão comum sendo preso e torturado para confessar um crime que não cometeu. Esse filme causou extraordinária polêmica na época de seu lançamento.

Quais contribuições o audiovisual traz na promoção do debate a respeito dos Direitos Humanos?

O audiovisual tem características maravilhosas em termos de instrumentalização: trabalha com o imaginário e com a sensibilidade. A experiência mais comum é você se fechar numa sala escura e mergulhar naquele universo, que lança mão de elementos da realidade para ser criado. Tal como o conteúdo, é uma ilusão de ótica aquela imagem em movimento, feita para que o telespectador tenha familiaridade com ela. E ele se deixa levar, permite envolver-se com a magia do cinema. Ele vivencia aquilo como algo real, mesmo que seja o universo fantástico proposto por Tim Burton. Isso é muito rico, porque o espectador absorve os ruídos e a música com sua sensibilidade. O resultado disso é algo apreendido pelo lado sensorial. E aí está a riqueza, que é maior do que em qualquer outro meio de fruição.

Como você avalia o cinema sul-americano atual?

A qualidade da produção cinematográfica sofreu transformações nos últimos cinco anos. Antes disso, já tínhamos boas produções no Brasil, na Argentina e no México. Às vezes sabíamos de algo vindo da Colômbia ou do Peru. Mas era mais difícil conseguir bons títulos. Só que a proliferação de equipamentos digitais expandiu a produção em todos os países e isso também se reflete na qualidade, ao ponto de, em 2009, o filme vencedor do Festival de Berlim ter sido uma produção peruana. Há cinco anos não se produziam filmes na Costa Rica e agora eles já ganham prêmios internacionais. Hoje, dá para se fazer uma Mostra de Cinema de Direitos Humanos com filmes representantes de todos os países.

E é possível identificar uma linguagem comum aos filmes sul-americanos?

Uma característica comum a esses filmes talvez seja a de se posicionar em relação à sociedade em que ele foi desenvolvido. Os filmes sempre estão falando de cultura e política para suas próprias sociedades. Temos tido, nas atuais safras de cineastas, muitos filmes que se relacionam aos Direitos Humanos. No Brasil, a gente vem tratando nossa realidade desde o Cinema Novo, nos anos 1960. Esse movimento foi extremamente importante. Talvez hoje já não fique tão evidente, mas foram os filmes do Glauber Rocha que mostraram para o País a miséria nordestina. Não havia imagens dela até então. Nem na TV. Isso foi revelado pelo Cinema Novo.

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