Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Itamar e a saudade que não passa

lembra?
de lá pra cá você vivia
trânsito constante
entre música e poesia
zona leste e zona oeste
parecendo até mania
lembra?
qualquer forma de ponte era fonte
discurso sempre presente
não tinha choro nem vela
você revelando-se por ela
lembra?
acontecia tudo por dentro
ao mesmo tempo
crítica, risos, lamento
lá estava você invicto convicto com seu invento
lembra?
é pra sempre o nunca mais!

“Essas músicas que estamos compondo são o nosso legado, pelo menos com isso você não precisa mais se preocupar”, logo de início ele me disse. Voltando do Mercadão de Pinheiros (pelo Largo da Batata), Itamar estava trazendo minha sacola, com verduras e frutas, me ajudando a levar pra casa, pra atender as crianças, eu questionava naquele momento as pessoas em suas vidas, a duras penas, debaixo do sol, lutando por mais um dia de sobrevivência nessa imensa cidade, inclusive nós, e ao chegar em casa, ele correu para o caderninho pra escrever e saiu assim:

ser rico é
ter dilemas apenas
já ser pobre
é só “pobrema”

Eu lhe mostrei um tema ao violão com muitos acordes, uns dez, e foi nesse tema que o poemínimo ficou! A minimúsica, de ritmo intrincado, rica em acordes e com letra tão curta, fez todo o sentido, batizamos de “ser rico”. A música popular contém o assunto, a vivência, um momento na sociedade e no mundo. É um retrato, um relato que nos revela, o que sentimos e como sentimos, os eternos dilemas da humanidade, é o que nos faz igual a todo mundo e todos têm algum dom; o nosso é falar sobre isso! “Temos que entender o caminho da nossa música. Temos que aprender com Cartola, Noel, Pixinguinha, Ataulfo, Luiz Gonzaga...”, ele me dizia volta e meia!

Itamar acordava bem cedo, lia, escrevia, tocava e se atirava de cabeça nesse movimento. Com a sua originalidade e afinco. Descia para o barracão (eu sou do tempo do barracão, um puxado no fundo da casa dele, refúgio para insônias, estudos e cantorias), no quintal sempre orquídeas (certa vez ele me presenteou com uma orquídea no aniversário, em setembro, estava linda e florida, mas ele não quis deixá-la comigo, veja só, disse que iria criá-la pra mim e devolveria em alguma outra primavera! E foi o que aconteceu!). A presença dele, com certeza uma entidade, muita energia no ar, na voz, nos gestos e meninice, coisa de guri! Mas quando ele tirava os óculos! Ficava quieto, muito quieto, nesses momentos o seu silêncio, um abandono desse mundo, ou um olhar vendo demais, cientista manipulando palavras, o pensador num quebra cabeça, quase não estava lá, algum caminho para chegar ao genial? Em si uma seriedade que impunha respeito!

Chegamos a fazer uma parceria pelo telefone, que foi Finalmente, gravada por Ney Matogrosso no seu álbum Vagabundo, com Pedro Luiz e a Parede. O telefonema começou assim: “Pega uma caneta e um papel, anota aí!” Eu fui escrevendo e no último verso: “chegou a hora, vamos ver”. Demorou um pouco e completou, dizendo: “finalmente, tchau” e desligou! Eu fiquei confusa, se o finalmente do fim era da letra ou do telefonema!

Já no Bomba H, tivemos que aumentar uma estrofe, a pedido do Ney que gravou no ano 2000. Itamar ficou entusiasmado com o desafio de elaborar mais sobre o assunto, foi logo fazendo umas três estrofes para que ele escolhesse, foi um luxo! Itamar costumava dizer “artistão” para um artista completo como o Ney Matogrosso, inventava suas expressões e desenterrava outras, do fundo do mato, as quais eu conhecia também, a gente se divertia com isso, e a conversa passava a ser como um dialeto em paralelo com a criação! Ou simplesmente quando ele vasculhava minhas composições e complementava os versos, colocava uma parte B ou um refrão, nessas canções acontecia uma verdadeira metamorfose antropofágica das duas pessoas. O álbum AMME trata disso, como por exemplo cito: Triste Dia (Alzira E/ Itamar Assumpção) na qual me retrato, através do olho dele!

Que triste dia

Não tem poesia
Tem cara feia
E estou presa na cadeia
De uma teia
Nenhum enredo
Sequer motivo
É só um dia de castigo
Que coisa chata
Vou dar um basta
Matar a tapas
Essa desgraça
Vou dar um corte
Ferir de morte
Essa besteira
Isso de qualquer maneira
Mas por favor
Entenda bem
Não se assuste não
Meu bem
O nosso amor vai bem além!

Enfim, uma grande satisfação ao finalizarmos cada uma das nossas composições! Não há saudosismo em meus relatos, apenas a saudade que não passa. Itamar Assumpção permanece!

Alzira Espíndola é cantora e compositora e foi parceira de Itamar Assumpção.

Leia a edição completa: