Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Indústria naval embarcou no pré-sal

Por: CARLOS JULIANO BARROS

Em julho de 2012, durante a cerigrama de Modernização e Expansão da mônia de entrega à Petrobras do navio Frota (Promef), da Transpetro, empresa petroleiro batizado com o nome do historiador Sérgio Buarque de Holanda, o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, deixou o comedimento de lado e, em seu pronunciamento à imprensa, comemorou efusivamente o renasci- mento da indústria naval brasileira. Na ocasião, Lobão falou de boca cheia que a estatal do petróleo responde atualmente pelo maior número de encomendas de embarcações em todo o mundo.

Fabricado no Estaleiro Mauá, em Niterói, berço da indústria naval brasileira – setor fabril que começou a dar seus primeiros passos em 1846 pelas mãos de Irineu Evangelista de Sousa, o barão de Mauá –, o Sérgio Buarque de Holanda é apenas o terceiro de um total de 49 novos navios que ganharão o mar graças ao Programa de Modernização e Expansão da Frota (Promef), da Transpetro, empresa controlada pela Petrobras. Lançado em 2004 como uma das principais vitrines da segunda edição do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 2), o Promef tem um orçamento de R$ 10,8 bilhões. Criada em 1998 e atuante em quase todo o país, com mais de 14 mil quilômetros de oleodutos e gasodutos, 48 terminais e 58 navios-petroleiros, a Transpetro é, de longe, a maior armadora da América Latina e a principal empresa de logística do Brasil.

Mas o apetite da Petrobras, elevado à enésima potência desde a descoberta do pré-sal em 2007, não para por aí. Somando a demanda por sondas e plataformas, a previsão é de que a empresa presidida por Graça Foster atinja um portfólio de 824 embarcações em 2020 – praticamente o dobro das 424 contabilizadas até dezembro de 2010. “Foi justamente a demanda offshore [relativa às atividades de extração de óleo e gás em alto-mar] que permitiu a retomada da indústria naval no Brasil”, afirma João Rossi, coordenador-geral das Indústrias de Transporte Aéreo, Aeroespacial e Naval do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC).

De fato, o horizonte para os estaleiros nacionais – as companhias que fabricam as embarcações – não poderia ser mais promissor. Sem condições de competir em pé de igualdade com as empresas congêneres do exterior, sobretudo chinesas e sul-coreanas, donas de tecnologia e custos de produção incomparáveis, a indústria naval brasileira, que na década de 1980 chegou a rivalizar com as maiores do mundo, necessitava de um choque de demanda de longo prazo e de uma série de incentivos financeiros para sair do fundo do poço.

A oportunidade de ouro apareceu, então, com o pré-sal: analistas calculam que o volume de pedidos de novos navios, sondas e plataformas para arrancar o petróleo do fundo do mar vai se sustentar por pelo menos duas décadas. O segundo passo para reerguer o setor veio com a arquitetura de uma série de medidas imaginadas com o propósito de reduzir tributos e aumentar a oferta de crédito, desde que as novas embarcações privilegiassem o chamado “conteúdo nacional”.

Em outras palavras, a ideia é dar prioridade aos fabricantes instalados no país, com o objetivo de movimentar toda a cadeia produtiva, gerando renda e empregos. “Em todos os lugares onde a construção naval existe, ela é um projeto do governo e da sociedade”, observa Ariovaldo Rocha, presidente do Sindicato Nacional da Indústria da Construção e Reparação Naval e Offshore (Sinaval), entidade que representa os estaleiros brasileiros. “Na China, os estaleiros são empresas estatais. Na Coreia do Sul, o governo dá forte apoio à construção naval, financia tecnologia e a formação de pessoal.”

Atualmente, estão em construção no Brasil aproximadamente 380 navios, incluindo 18 plataformas e 35 navios-sonda, num total de 6 milhões de toneladas de porte bruto – expressão que designa toda a capacidade de transporte, abrangendo não só a carga comercial, como a tripulação e tudo o que for necessário à locomoção (como combustível e água) e às pessoas (víveres, roupas etc.). Ainda é uma produção modesta, tendo em vista as 5,7 mil embarcações que estão sendo preparadas nos estaleiros de todo o mundo, com 140 milhões de toneladas de porte bruto. “Mesmo assim, é relevante nossa participação no total de petroleiros, navios de apoio marítimo e plataformas de petróleo”, explica Rocha.

O segmento já responde por 60 mil empregos diretos e, segundo o Sinaval, quando forem inaugurados os 11 novos estaleiros atualmente em construção, totalizando 47 unidades espalhadas do litoral norte ao sul do país, além das estabelecidas no Pará e no Amazonas – destinadas à construção de embarcações para uso fluvial –, a previsão é de que mais 15 mil postos de trabalho sejam criados. Metade de todos os estaleiros estará concentrada no maior e mais tradicional polo naval do país: a costa fluminense. Só nos próximos dois anos, calcula a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), a atividade dos estaleiros e de seus fornecedores vai movimentar a imponente cifra de R$ 15 bilhões.

Transporte e estaleiros fluviais

Apesar de ter crescido impressionantes 3.400% entre 1999 e 2010, o transporte de cargas por via fluvial no Brasil ainda é pouco expressivo quando comparado aos modais rodoviário e ferroviário. Segundo a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), cerca de 20,9 mil quilômetros de rios são utilizados para navegação no país. Por meio da construção de eclusas e de outras obras, o governo federal alimenta a ambiciosa meta de elevar de 13% para 29% a participação das hidrovias na matriz total de transportes do Brasil, até 2025. Hoje, os estaleiros nacionais que fabricam barcos para rios concentram-se principalmente no Pará e no Amazonas – até porque é na região norte que mais se utiliza o modal hidroviário. Esse é, definitivamente, um outro segmento de mercado em que as embarcações são de pequeno porte e de conteúdo tecnológico baixo. “O estaleiro que produz com eficiência a embarcação de uso fluvial difere bastante do que fabrica um navio grande ou mesmo uma plataforma”, explica o professor Floriano Pires Jr., da UFRJ. Tanto é assim que os navios do tipo Panamax, embarcações com capacidade para até 80 mil toneladas, que atravessam oceanos mundo afora e entram nos rios de maior calado da Amazônia para pegar, principalmente, carregamentos de soja e de minério de ferro, ainda são produzidos no exterior – principalmente na China e na Coreia do Sul. E vai demorar até que os estaleiros brasileiros consigam competir com os asiáticos na fabricação dessas modalidades de embarcação. De qualquer maneira, o incremento do transporte hidroviário é uma realidade e já vem movimentando a indústria naval brasileira. Prova disso é que o Estaleiro Rio Tietê, localizado no município de Araçatuba, no interior de São Paulo, iniciou suas operações no segundo semestre de 2012. E, como era de se esperar, a primeira encomenda foi feita pela Transpetro, por meio de dois pedidos: um comboio formado por quatro balsas e um navio empurrador para escoar a produção de etanol do interior paulista pela hidrovia Tietê-Paraná.

Cuidado com a euforia

Ressuscitado, esse nicho de mercado vem atraindo a atenção até mesmo de grupos que não tinham experiência na área. O Synergy, dono da companhia aérea Avianca, por exemplo, é o atual controlador do Estaleiro Mauá. Empreiteiras de grande porte, como a OAS, a Odebrecht e a UTC Engenharia também entraram no negócio. Contando com a parceria tecnológica da japonesa Kawasaki, elas se uniram à Petrobras no estaleiro Inhaúma, localizado na capital fluminense. Já o grupo EBX, do empresário Eike Batista, está prestes a concluir as obras de sua unidade instalada em São João da Barra, no litoral norte do Rio de Janeiro, empreendimento tocado em parceria com a gigante sul-coreana Hyundai – uma das líderes mundiais do ramo.

Não resta a menor dúvida de que os estaleiros nacionais atravessam um boom e de que as perspectivas são alentadoras. Porém, é preciso tomar cuidado com a euforia. Há quem diga que as medidas de proteção tomadas pelo governo nos últimos anos para ressuscitar esse segmento empresarial não têm sido acompanhadas das contrapartidas necessárias para erguer de fato uma indústria naval competitiva a longo prazo.

Os principais gargalos dizem respeito a investimentos em tecnologia e recursos humanos, bem como à organização de uma cadeia de suprimentos que abasteça eficazmente os estaleiros. Para se ter uma ideia dos desafios que vêm pela frente, estima-se que até o final de 2014 a indústria naval vá demandar pelo menos 1,5 mil engenheiros e outros 1,5 mil técnicos altamente especializados. E, não é novidade, o Brasil está enfrentando um sério déficit desse tipo de mão de obra.

“Há uma clara percepção de que, se não for acelerado o processo de qualificação de nossa produção, é real o risco de que a indústria naval volte a entrar em crise ao final desse ciclo de crescimento bancado pelas encomendas da Petrobras”, pondera Floriano Pires Jr., professor de engenharia oceânica do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Pouca gente sabe, mas no final da década de 1970 o parque industrial brasileiro fabricante de navios empregava 40 mil trabalhadores, época em que, como aconteceu em 1980, a produção local só perdia para a japonesa. O contexto, porém, era bem diferente: naquela época boa parte dos países, mesmo os menos desenvolvidos, mantinha empresas de navegação genuinamente nacionais que se responsabilizavam pelo transporte de cargas em seus territórios, respaldadas por medidas protecionistas.

“Infelizmente, na metade da década de 1980 essa indústria começou a descer a ladeira. Os mecanismos de proteção de marinha foram desativados e o setor foi rapidamente desregulamentado, provocando a redução da frota nacional”, expõe Pires Jr., da Coppe-UFRJ. Saltos tecnológicos e mudanças no sistema de logística marítima mundial acabaram asfixiando não só os estaleiros, mas também as empresas locais de transporte de cargas, que deram lugar a grandes multinacionais de logística, responsáveis pelo abastecimento de todo o planeta. Essa equação foi desastrosa para nosso parque naval. O encolhimento da atividade chegou a tal ponto que, no ano 2000, o número de empregos gerados pelos estaleiros brasileiros não passava de 1,9 mil.

Para garantir a retomada da indústria naval no país, foi necessário então fazer uma ampla reforma no marco legal que a regula, a partir da criação de uma série de incentivos. “O estímulo visava primordialmente à reativação dos estaleiros nacionais, ou seja, seu desenho tinha o objetivo específico de retomar as operações da indústria montadora, justificado pela grande geração de empregos”, conta João Rossi, do MDIC. O pontapé inicial foi dado em julho de 2004, com a publicação da lei 10.893. Em linhas gerais, a nova legislação redefiniu as formas de financiar a fabricação de embarcações no país ao estipular regras claras para a cobrança e a destinação do Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante (AFRMM), uma contribuição que incide sobre o frete de qualquer mercadoria descarregada nos portos brasileiros. Desde o advento da nova lei, o valor arrecadado com a AFRMM mais do que triplicou, saltando de R$ 710 milhões, em 2003, para quase R$ 2,4 bilhões em 2010.

Os recursos levantados por meio do novo tributo caem diretamente na conta daquele que é, sem dúvida, o principal instrumento financeiro de fomento à indústria naval brasileira: o Fundo da Marinha Mercante (FMM). Outra importante medida da lei 10.893 foi determinar a criação de um conselho, presidido pelo Ministério dos Transportes, para administrar esse fundo. Sua principal missão é escolher os projetos de navios, estaleiros e plataformas bancados com recursos do FMM. Só em 2012, foram contempladas 108 novas embarcações, a um custo total de R$ 9,6 bilhões. O dinheiro, porém, não sai diretamente dos cofres do fundo. Ele é repassado por instituições financeiras federais – como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal –, que se responsabilizam pela parte burocrática e assumem os riscos da operação financeira.

Cara e ineficiente?

Os recursos do FMM são liberados a juros bastante privilegiados – que variam de 2% a 8,5% ao ano, dependendo do empreendimento. Contudo, para ter direito a essas taxas mais do que atraentes, os projetos de novas embarcações devem utilizar um mínimo de conteúdo nacional, conforme prevê a resolução 3828 do Banco Central, de dezembro de 2009. Nos navios de carga, por exemplo, a exigência é de que ao menos 65% do valor final da embarcação corresponda a componentes fabricados no Brasil. Já para rebocadores e empurradores, que prestam atividades de apoio à navegação, o índice cai para 50%.

A engenharia legislativa que vem ressuscitando a indústria naval brasileira é complementada ainda por outras leis e decretos criados com o objetivo de desonerar a cadeia produtiva do setor e, principalmente, estimular a produção interna de componentes. Em 2008, os fornecedores de peças e equipamentos instalados no país foram isentados do pagamento do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). No ano seguinte, as alíquotas das contribuições para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/Pasep) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) também foram reduzidas a zero. Em artigo publicado no jornal “Valor Econômico”, o consultor na área de transportes e logística Nelson Carlini demonstra preocupação com as medidas tomadas pelo governo e alerta para o risco de se criar uma indústria naval cara e ineficiente. “Os preços das embarcações nacionais estão em média 80% mais altos que os da Coreia do Sul e do Japão, e mais ainda que os praticados por estaleiros chineses e vietnamitas”, ele escreve. Em sua avaliação, a exigência de contrapartida de conteúdo nacional acaba mascarando o altíssimo custo dos componentes de origem local. “Não é por outra razão que esta nova indústria naval só vende embarcações no Brasil, não tem sequer um contrato no exterior, e 90% de sua produção se destina ao setor de óleo e gás”, ilustra Carlini.

Para Ariovaldo Rocha, do Sinaval, comparar preços não é uma tarefa tão simples assim. “A própria Organização Mundial do Comércio (OMC) reconhece que, nesse setor, todos os países têm elaborados sistemas de subsídios”, ressalta. De qualquer maneira, pelo menos por enquanto, “a distância que separa os estaleiros brasileiros dos concorrentes asiáticos, em termos de produtividade, ainda é enorme”, admite Pires Jr.

Outro fator que pode prejudicar o desempenho da indústria naval no futuro é a grande quantidade de estaleiros espalhados pelos mais diversos estados do país. Na avaliação do professor da Coppe/UFRJ, é muito caro e complicado organizar a logística de insumos e recrutar mão de obra qualificada em lugares sem intimidade com a fabricação de navios. “Esse processo de espalhar estaleiros por aí, como se fossem uma indústria qualquer de indução de desenvolvimento regional, acaba gerando ineficiência”, diz Pires Jr. A opinião é compartilhada por João Rossi, do MDIC. Ele salienta que “existe uma clara estra- tégia comum, em todos os países líderes do setor naval, de estabelecer polos altamente especializados de empresas afins, também conhecidos por clusters”.

As notícias de atraso na entrega das embarcações também são motivo para apreensão. No caso mais emblemático até o presente momento, a Transpetro suspendeu, em maio de 2012, a encomenda de 16 navios feita ao Estaleiro Atlântico Sul, uma sociedade das construtoras Camargo Corrêa e Queiroz Galvão em Pernambuco. O motivo: a empresa entregou o petroleiro João Cândido quase dois anos após o prazo previamente acertado. É bem provável que a demora tenha decorrido da dificuldade encontrada pelo estaleiro para arregimentar mão de obra com conhecimentos básicos sobre aquele tipo de manufatura. “Por outro lado, não se pode desprezar o potencial transformador representado por tais empreendimentos, ou seja, há ganhos sociais bastante significativos que compensariam o atraso das obras durante a curva de aprendizado”, ob- serva João Rossi.

Para dinamizar suas atividades, alguns fabricantes nacionais têm recorrido a parceiros tecnológicos de fora do país. No caso do Atlântico Sul, por exemplo, o rompimento da aliança com a sul-coreana Samsung foi outro dos motivos que acabaram levando à suspensão das encomendas, considerando que apenas o estaleiro talvez não reúna condições para dar conta dos compromissos assumidos.

Para recuperar a confiança da Transpetro, a empresa foi obrigada a celebrar um novo acordo, desta feita com um grupo japonês, o IHI. “Essas parcerias são interessantes, mas desde que os estaleiros brasileiros invistam em capacitação e usem esses convênios para acelerar o próprio desenvolvimento técnico”, pondera o professor Pires Jr.

Trocando em miúdos, o principal desafio do setor é fazer com que os altos valores pagos pelas embarcações fabricadas no Brasil se traduzam em investimentos em recursos humanos, tecnologia e inovação – o que, na avaliação de Nelson Carlini, não tem ocorrido a contento. “Não estamos criando um parque industrial avançado, mas apenas copiando projetos, com preços elevados. Os estaleiros nacionais tornam-se assim meros montadores, sem domínio sobre os processos”, adverte.

De qualquer forma, aproveitar a demanda do setor de óleo e gás é uma oportunidade ímpar para desenvolver, sobretudo, mão de obra qualificada, tanto no chão de fábrica quanto na gestão de processos. “Certamente, quando a demanda do offshore nacional encolher, os estaleiros terão de adequar suas carteiras, seja para atender o setor correspondente estrangeiro, seja para competir em ramos mais tradicionais da marinha mercante, caso dos navios contenedores”, enfatiza João Rossi, do MDIC.