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O lugar do idoso na construção de sociedades sustentáveis: o exemplo da memória ambiental em Cardoso Moreira (RJ)

Introdução:

Este trabalho refere-se à pesquisa desenvolvida entre os anos de 2010 e 2012, que tratava de analisar os impactos socioambientais ocorridos na localidade de Bananal, em Cardoso Moreira (RJ), por meio da análise da memória dos idosos agricultores como ferramenta de educação ambiental.

Tendo em vista que são poucos os trabalhos científicos que utilizam a história oral na análise ambiental – geralmente são estudos que resgatam e procuram discutir acontecimentos políticos de uma determinada época, mas são poucos os que se interessam pelas questões relacionadas aos impactos ambientais –, esta pesquisa contribui com a discussão focando no desenvolvimento das áreas rurais.

O uso da história oral possibilita um processo de ressignificação das memórias de pessoas idosas, tanto para a sociedade como para o próprio sujeito depoente, tendo implicações sociais e terapêuticas, uma vez que as entrevistas possibilitam aos idosos uma autoavaliação, um questionamento e um repensar da própria vida (FREITAS, 2002). Essa ressignificação está presente na obra de Halbwachs, quando este autor diz que relembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens de hoje, as experiências do passado (HALBWACHS, 1990).

METODOLOGIA

As entrevistas foram classificadas em duas categorias: histórias de vida e entrevistas temáticas. A primeira, uma entrevista mais longa focando na trajetória do sujeito, exigiu tempo e aprofundamento em alguns pontos, pois se tratava de uma entrevista que se iniciava na infância e na primeira moradia até chegarmos aos dias atuais. A segunda categoria refere-se ao tipo de entrevista que versava sobre um determinado assunto (política, meio ambiente, reformas urbanas, etc.). Eram entrevistas curtas, sobre assuntos que surgiam nos depoimentos de histórias de vida e que necessitavam de mais detalhes para que as informações se ajustassem.

Todas as entrevistas, em ambas as categorias, foram gravadas e transcritas. Os depoentes assinaram o “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido”, concedido pelo Comitê de Ética da Furg. Os critérios de seleção dos sujeitos para o colhimento das histórias
de vida foi: ser natural de Cardoso Moreira ou ter passado grande parte da vida na cidade, preferencialmente na localidade de Bananal; ter mais de 60 anos e assim ser considerado idoso pela Organização Mundial da Saúde (OMS); possuir as funções cognitivas preservadas.

As entrevistas focaram em três eixos norteadores: casa, trabalho e política. Inicialmente, foram realizadas breves conversas sobre o cotidiano dos sujeitos, sem a utilização de um roteiro, mas abordando brevemente assuntos relacionados aos eixos mencionados. A partir dessas conversas, foi possível delimitar o campo de análise, a localização da história de vida a ser contada por esses sujeitos no tempo e no espaço, a forma de abordagem, o uso da linguagem e os temas promissores. A partir desta conversa, foram elaborados roteiros de entrevista individuais, que buscavam o aprofundamento de temas, períodos e assuntos referidos na pré-entrevista.

Além de uma bibliografia apropriada, também foram de suma importância as anotações feitas no diário de campo, as imagens colhidas ao longo do percurso e as fotografias cedidas por alguns depoentes.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Cardoso Moreira está localizado na região Norte Fluminense. Com cerca de 12.540 habitantes, distribuídos em 514.882 km2 (densidade de 24,36 hab./km2), localiza-se a 330 km de distância da capital e ocupa hoje o 89º lugar no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) entre os 92 municípios do Estado do Rio de Janeiro.

Originalmente, a cidade encontra-se ligada a Campos dos Goytacazes, município ao qual pertenceu até o ano de 1989, quando se emancipou. Os dados censitários do IBGE das décadas de 1980/1990/2000/2010 apontam que a população rural de Cardoso Moreira diminui a cada ano, ao contrário da dinâmica populacional do estado e da região Norte Fluminense, que crescem a cada pesquisa (Tabela 1).

O que os dados da tabela apontam é a forte migração da população para cidades vizinhas. Constatamos então que nem todos os municípios do estado foram beneficiados pela instalação das indústrias petrolíferas na Bacia de Campos.

Mas o que mais impressiona é a diminuição da população residente em áreas rurais, principalmente porque a base econômica do município, mesmo antes da emancipação, é a agropecuária. Um dos motivos dessa migração foi a má condição em que se encontram as terras agricultáveis e a escassez de recursos hídricos, principalmente na localidade de Bananal.

De acordo com os dados sistematizados por Carvalho e Totti (2006), entre 1980 e 1990, 42% dos moradores das áreas rurais do município migraram para áreas urbanas ou para outras cidades.

A forma de produção sem uma preocupação com o meio ambiente, associada ao descaso do Poder Público com os aspectos socioambientais, fez com que as matas nas encostas fossem praticamente liquidadas para dar lugar ao gado. Por não haver saneamento ou sistema de esgoto, os dejetos foram depositados em fossas sanitárias abertas no solo sem preparo apropriado ou jogados diretamente nos córregos, tornando a água imprópria para o consumo e influenciando negativamente na biota. Com
os recursos esgotados, a migração tornou-se a principal alternativa dessa população.

Concentrar-nos-emos neste artigo em apresentar um dos exemplos de como a memória do idoso foi importante na identificação do processo de ocupação e degradação ambiental na localidade de Bananal, tratando especificamente do caso da depoente Maria Dimea Carvalho. Nascida em 1948, viveu durante 40 anos nessa localidade, antes de se mudar para Niterói, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, em busca de melhores condições de vida para os seus cinco filhos.

A sua história se cruzou com a de Mauricio Zanon, técnico da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), durante o período de coleta dos depoimentos. Um dos responsáveis pela elaboração do projeto de “Desenvolvimento Rural Sustentável em Microbacias – RIO RURAL”, Mauricio nos havia relatado sobre a dificuldade de acesso às nascentes do Valão do Vinhático, principal córrego daquela localidade e que atravessa diversas propriedades que o utilizam para irrigação e uso com o gado.

Até aquele momento, a equipe da Emater não havia conseguido acessar a área, impedida por um grupo de fazendeiros que sempre bloqueava o avanço dessa equipe. Seria impossível finalizar o projeto sem os dados de GPS colhidos naquela área. E foi exatamente ali, naquela área de nascentes, que a Sra. Maria Dimea passou a infância e a juventude.

A entrevista ocorreu nos dias 16, 17 e 18 de agosto de 2011, sendo que no dia 18 a conversa se realizou durante um passeio no sítio em que Maria Dimea viveu. Desde 1979 ela não visitava a propriedade e, durante este tempo, sustentou um sentimento de mágoa com o lugar. Causou-lhe espanto saber que os fazendeiros estavam impedindo a passagem da equipe, pois, segundo os seus conhecimentos, tratava-se de uma família que não possuía qualquer poder sobre tal propriedade. Portanto, embora não houvesse o que temer, o fato mostra-nos como ainda há no interior dos estados uma espécie de arcaísmo na estrutura agropecuária brasileira, onde alguns donos de terras, descendentes de antigos coronéis, tentam exercer determinado poder sobre os organismos municipais e estaduais.

E foi preciso enfrentar esta condição, junto com a Emater e com a depoente, para conseguirmos entrar na propriedade e realizar a pesquisa. A entrevista do dia 18 foi um grande desafio para a depoente e para os pesquisadores. A cada passo, fantasmas e magoas vinham à tona, ao mesmo tempo em que se revelava um passado ambiental impensável para uma região que se mostra tão degradada.

Financeiramente, nas décadas de 50 e 60, a situação de sua família era semelhante à de qualquer outra cuja economia doméstica se baseava na agricultura familiar. De acordo com Souza e Ponciano (2006), a partir de 1960, quando foi adotada a estratégia de modernização da agricultura no país, as culturas de exportação tiveram um aumento de produtividade significativo, ao passo que a produção dos agricultores familiares do Norte Fluminense ficou sujeita ao controle dos preços. Algumas consequências desta inserção esmagadora da agricultura industrial no cotidiano dos pequenos produtores de Cardoso Moreira foram o crescimento no
contingente de trabalhadores temporários, desalojados do meio rural, sem vínculos empregatícios e em condições precárias (CRUZ, 2004).

Maria Dimea: Era muito difícil. Quando a coisa apertava, a gente ia pro Rio (de Janeiro) ganhar dinheiro e depois voltava. Comprava roupa nova, sapato e depois voltava. Mas isso quando já era quase adulta. A narrativa de Maria Dimea demonstra como nas  lembranças desses sujeitos estão intrinsecamente ligadas a história ambiental do lugar e as suas memórias. A antiga casa, onde faleceu o seu pai, relaciona-se, por exemplo, aos antigos coqueirais de onde emanavam águas.

Maria Dimea: Essa casinha ali que meu pai morreu dentro dela. Tá vendo, Rafael. Lá, lá naquele coqueiral... lá naquele coqueiral tinha água e daqui você via a água descendo. Ai, que coisa triste.

Rafael Dias: Por que triste?

Maria Dimea: Porque não tem mais nada, né. Não tem mais água, tinha muita água. E lá naquela casinha meu pai morreu. Era bonito.

Não tínhamos avistado, até então, a casa onde ela passara a infância. Enquanto caminhávamos, dúvidas e lembranças eram verbalizadas. Sua grande preocupação era com o atual estado da estrutura da casa.

Maria Dimea: Mida (Cremilda, sua irmã) disse que a casa não tá mais lá, que derrubaram e fizeram um quartinho em que bois dormem dentro.

Para Yi-Fu Tuan (1983) a permanência do sujeito na casa é um elemento importante na ideia de lugar. As coisas e os objetos são mais resistentes que os seres humanos, sempre vulneráveis, com suas fraquezas biológicas e mudanças de humor. No entanto, na ausência das pessoas certas, os lugares perdem significado, sendo que sua permanência física (seja esse lugar um cômodo, uma casa, um bairro) deixa de emanar a sensação de conforto e passa a ser uma irritação. O lugar em si pouco oferece sem a relação humana. Talvez a ausência do pai, decorrente do falecimento, tenha sido um dos motivos para o desenvolvimento da mágoa
que Maria Dimea sentia pelo lugar. Mas, à medida que caminhávamos, com a possibilidade de recontar e a conscientização da importância de sua história para a pesquisa ambiental, esses sentimentos opressores foram dissipando-se.

Tuan (1983) contribui nesta discussão com aquilo que define como um “lugar da memória”. Esses lugares da memória são transitórios e pessoais. Podem ficar gravados no mais profundo das lembranças, mas não são guardados como fotografias em um álbum nem percebidos como símbolos comuns: mesmo associados a objetos, quando lembrados produzem uma intensa satisfação. Foi essa satisfação que Maria Dimea demonstrou ao se aproximar da casa e verificar que sua irmã tinha fornecido uma falsa
informação: a casa estava lá.

Maria Dimea: Gente, Cristo amado! Como a pessoa destrói uma coisa dessa? Olha, ainda tem um pedaço da casa. Deve ter o fogão! (...) Olha, a casa tá toda aqui! Mentira de Mida (sua irmã). A casa tá aqui, gente! Ih, o fogão tá aqui! O fogão de papai, aqui o fogãozinho. Bate uma foto minha no fogão!

Em nossas lembranças mais profundas a casa está presente e a esta se conectam as nossas lembranças de meninice.

A casa não vive só no dia a dia, no curso de uma história, na narrativa da nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os tesouros dos dias antigos. Quando na nova casa retornam as lembranças das antigas moradas, transportamo-nos ao país da Infância Imóvel, imóvel como o Imemorial. Vivemos fixações, fixações de felicidade. Reconfortamo-nos ao reviver lembranças de proteção (BACHELARD, 2000).

A casa materna é o centro geométrico do mundo e a cidade cresce a partir dela em várias direções (BOSI, 2003). A partir deste núcleo, partem as ruas e calçadas onde nossa vida se desenrolou.

Maria Dimea: Aqui mamãe tinha um jardinzinho, era tudo cercadinho (...). Não tem mais vestígio de nada. Isso aqui era fundo, sabe? Tinha um valão. Tá tudo aterrado! Isso aqui, não era nada assim. Nada assim... Tem um pé de jamelão por aqui? Olha lá o pé de jamelão. Isso aqui ia reto assim, mais alto, bem mais alto. E o pé de jamelão era lá embaixo. Ele nasceu na beira do valão. Tinha água aí. Água, muita água. Não era assim não. Dava pra tomar banho, mais ali pra cima, na lajinha, onde tinha pedra.

Quando diz que “está tudo aterrado”, ela se refere a uma antiga área alagada, logo na frente de sua antiga casa, que sustentava o córrego que nascia ali. Sua água era utilizada na lavoura e na pecuária. Em razão do desmatamento nas vertentes logo acima, a área foi sedimentada e hoje é somente um areal.

Um mundo social que possui uma riqueza e uma diversidade que não conhecemos pode chegar-nos  pela memória dos velhos. Momentos desse mundo perdido podem ser compreendidos por quem não os viveu e até humanizar o presente. A conversa evocativa de um velho é sempre uma experiência profunda: repassada de nostalgia, revolta, resignação pelo desfiguramento das paisagens caras, pela desaparição de entes amados (...). Para quem sabe ouvi-la, é desalienadora, pois contrasta a riqueza e a potencialidade do homem criador de cultura com a mísera figura do consumidor atual (BOSI, 1994, p. 42).

A memória da senhora Maria Dimea trouxe contribuições para o projeto de mapeamento da Microbacia do Valão do Vinhático. Por intermédio de suas informações foi possível completar uma importante etapa de colhimento de dados em GPS, além de apresentar informações históricas que revelaram aspectos físicos e ambientais sobre o passado da região.

Algumas considerações

A memória não só identifica o impacto como promove e amplia a possibilidade de ações de intervenção ambiental, porque traz as necessidades e os anseios dos sujeitos envolvidos com as atividades econômicas, políticas e sociais realizadas no lugar analisado. Portanto, amplia a noção geográfica embasada somente em imagens e números, incorporando a experiência humana aos estudos ambientais. A memória desses antigos sujeitos fornece às gerações de hoje uma gama de informações úteis para reflexões sobre como a sociedade se desenvolveu e quais necessidades sociais implicaram aquelas atitudes de manejo (hoje consideradas) incorretas.

Para Halbwachs (1990), as lembranças precisam ser pensadas a partir dos quadros sociais que antecedem os indivíduos, o que nos leva à consideração sobre a relação de autonomia e dependência que existia entre os diversos níveis de construções coletivas. Este vínculo com outras épocas adquirido por meio da memória desses grupos sociais, representados pelos anciões, que carregam em si a consciência de tudo o que viveram, traz alegria, conforto e propicia um momento para que tais sujeitos apresentem suas faculdades, suas competências, as quais nós temos de começar a valorizar. De acordo com Bosi (1994), sua vida ganha uma finalidade se encontrar ouvidos atentos, ressonância.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Ática, 2000.
BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
___________. E. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

CARVALHO, A. M.; TOTTI, M. E. F. Dinâmica, organização e qualidade de vida da rede urbana. In: CARVALHO, A. M.; TOTTI, M. E. F. Formação histórica e econômica do Norte Fluminense. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.
CRUZ, J. L. V. Modernização produtiva, crescimento econômico e pobreza no Norte Fluminense (1970-2000). In: PESSANHA, R. M.; SILVA NETO, R. (Orgs.). Economia e desenvolvimento no Norte Fluminense: da cana de açúcar aos royalties do petróleo. Campos
dos Goytacazes, RJ: WTC, 2004.
FREITAS, S. M. História oral: possibilidades e procedimentos. São Paulo: Humanitas – FFLCH-USP, 2002.
HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
IBGE. Dados censitários. Disponível em: <www.ibge.gov.br>. Acesso em: 12 out. 2011.
SOUZA, P. M.; PONCIANO, N. J. O perfil da produção agrícola na região Norte Fluminense: uma análise das alterações ocorridas no período de 1970 a 2000. In: CARVALHO, A. M., TOTTI, M. E. F. Formação histórica e econômica do Norte Fluminense. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.
TUAN, Y. F. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983.